Em tempos de antidepressivos e ansiolíticos, qual o lugar da Psicanálise?

Foi no meio médico que a Psicanálise surgiu, ainda no final do século XIX, e desde então ela tem sido bastante questionada. Os críticos mais ferozes alegam que psicanálise não funciona e que a ela faltaria o embasamento das evidências científicas. No entanto, apesar dos muitos opositores, incontáveis psicanalistas continuam a se formar e inúmeras pessoas dessa prática a se beneficiar, levando adiante experiências analíticas e testemunhos que mantém a Psicanálise bem viva no mundo contemporâneo. A propósito, um mundo onde não é difícil perceber diferentes formas de mal estar psíquico, que resultam, entre outros problemas, no uso excessivo de psicofármacos. Eis um cenário interessante para pensarmos o lugar da clínica psicanalítica, especialmente o da clínica lacaniana, com seus desafios e perspectivas nos dias atuais.


A psicanálise encontrou lugar para florescer nos furos deixados pela clínica médica, e justamente aí segue havendo muito espaço para avançar. Não raro tais furos configuram-se verdadeiros buracos, tamanha a incapacidade de o conhecimento da Medicina dar conta de determinadas queixas dos pacientes. Isto é notavelmente verdadeiro para as enfermidades que afetam o corpo sem que haja lesão anatômica ou alteração bioquímica evidente, a exemplo da fibromialgia e do transtorno de pânico, e para as queixas psíquicas, catalogadas pela Psiquiatria em uma série cada vez mais extensa de transtornos da saúde mental meramente descritivos. Desde Freud algumas dessas lacunas eram apontadas, bem como o papel que a Psicanálise teria em tal contexto:

É certo que, dentro da medicina, a psiquiatria se ocupa em descrever os distúrbios psíquicos observados e agrupá-los em determinados quadros clínicos, mas há momentos em que os próprios psiquiatras duvidam que suas exposições puramente descritivas sejam merecedoras do nome de ciência. Os sintomas que compõem esses quadros clínicos são desconhecidos em sua origem, em seu mecanismo e em sua inter-relação; não lhes correspondem alterações comprováveis do órgão anatômico da psique, ou as alterações são tais que não contribuem para explicá-los. Tais distúrbios psíquicos só admitem influência terapêutica quando podem ser identificados como efeitos colaterais de alguma afecção orgânica. Essa é a lacuna que a psicanálise busca preencher. Ela pretende fornecer à psiquiatria o fundamento psicológico faltante; espera descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico. (FREUD, 2014, p. 27)

Se hoje acusam a Psicanálise de não dispor de evidências, o que se mostra um tanto falacioso, conforme argumentam Leite e Couto (2023), é fato que a ciência médica, mesmo aquela que supostamente estaria amparada por evidências, está repleta de falhas e enviesada por conflitos de interesse não declarados da indústria farmacêutica. E provavelmente o campo clínico mais carente de evidências científicas dignas deste nome seja mesmo o da psiquiatria, no qual as medicações são prescritas de modo empírico (GøTZSCHE, 2016). Afinal, na esmagadora maioria dos casos não há um substrato bioquímico defeituoso a ser reparado nos quadros de depressão, ansiedade, bipolaridade, déficit de atenção e hiperatividade, esquizofrenia, autismo, nem em qualquer outro transtorno da saúde mental, de modo que os efeitos de um tratamento psiquiátrico farmacológico são, até certo ponto, erráticos (WHITAKER, 2017). Antes de se iniciar o consumo do medicamento, não se sabe exatamente se o benefício esperado será obtido, tampouco é possível prever se e quais efeitos adversos ocorrerão. Somente a posteriori saber-se-á, e cada caso deve ser avaliado em sua singularidade.

Aqui, neste lugar de não saber a priori e na particularidade da resposta dos indivíduos, é preciso reconhecer, encontramos semelhança nas clínicas psiquiátrica e psicanalítica. No entanto, há uma diferença fundamental entre elas: a psicanálise não se detém na simples descrição desses fenômenos para categorizá-los em transtornos ou enfermidades, ela se presta a escutá-los e contextualizá-los no que Lacan nomeia como a cadeia de significantes do sujeito do inconsciente, extraindo daí as verdades singulares que constituem uma pessoa e seu modo de inserção na linguagem. Isto, por sua vez, dá indícios da estrutura clínica a predominar em cada caso (neurose, psicose ou perversão) e da direção que se deve dar ao tratamento.

Antes de prosseguirmos, deve estar claro que a linguagem é uma cadeia simbólica, ou, dito de outro modo, uma sucessão de símbolos que podem (ou não) produzir sentido. Com isso, também podemos colocar um pouco mais de luz sobre o conceito de significante:

O significante é a unidade mínima do simbólico e tem como característica o fato de jamais comparecer isolado, mas sempre articulado com outros significantes. O que produz o processo de significação é a articulação entre os significantes, constituindo, assim, uma cadeia. A menor cadeia significante é formada por um par. Ou seja: é preciso pelo menos dois significantes para que se realize a criação de sentido. Justamente por isso a definição de significante causa estranheza, na medida em que inclui o próprio termo: significante é o que representa um sujeito para outro significante. (JORGE; FERREIRA, 2005, p. 45)

E agora estamos preparados para entender o conceito de sujeito do inconsciente. Este seria aquilo que está sempre deslizando em uma cadeia de significantes, sendo que o significante produz efeitos à revelia do sujeito, então, sem que o sujeito se dê conta, ele está sendo comandado pelo significante (JORGE; FERREIRA, 2005, p. 46). Assim se explica o famoso aforismo lacaniano de que o inconsciente é estruturado como linguagem.

Naturalmente, a determinação da cadeia de significantes na qual desliza cada um de nós, sujeitos, está intimamente relacionada ao discurso (linguagem) do outro humano, ou seja, os discursos pelos quais somos atravessados e aos quais estamos assujeitados desde antes de nascermos, condicionando nossa humanidade ao campo do Outro. Somente existimos enquanto seres humanos porque fomos falados, porque outro alguém, humano, falou sobre nós e para nós, assim nos inscrevendo na linguagem:

Desde que o homem quer apenas falar que ele se orienta na topologia fundamental da linguagem, que é muito diferente do realismo simplista ao qual se prega muito frequentemente quem crê estar à vontade no domínio da ciência. [...] No que somos o sujeito que pensa, estamos implicados de maneira muito diferente, na medida em que dependemos do campo do Outro, que estava lá há um bocado de tempo antes que viéssemos ao mundo, e cujas estruturas circulantes nos determinam como sujeito. (LACAN, 2008, p. 232-33)

Podemos dizer, portanto, que o trabalho da psicanálise se dá na profundidade da linguagem, aos poucos possibilitando mergulhos no discurso e mudanças na posição subjetiva do sujeito do inconsciente, para aqueles que se sujeitam à experiência analítica, a qual deve levar em consideração essa topologia fundamental da linguagem sempre em três registros enlaçados: real, simbólico e imaginário. Por isso, o psicanalista não se ocupa de tamponar sintomas, mas sim de colocar o paciente (analisante) em trabalho a partir deles, ao contrário do que se propõe a fazer os psicofármacos e outras drogas. Para a Psicanálise, o sintoma é uma formação de compromisso com a vida. Não por acaso, é preciso estar vivo para ter sintomas, e o labor da análise, embora não tenha como objetivo principal eliminá-los, costuma ter efeitos terapêuticos pela via indireta, pois faz com que os sintomas se tornem outra coisa, com que produzam uma novidade na cadeia de significantes.

Claro que o trabalho da análise demanda tempo, haja vista a topologia do sujeito só se elucidar
numa segunda volta sobre si mesma. Tudo deve ser redito numa outra face para que se feche o que ela encerra, que certamente não é o saber absoluto, mas a posição de onde o saber pode revolver efeitos de verdade (LACAN, 1998, p. 369). Assim, a clínica psicanalítica prioriza a elaboração lenta e a busca incessante das verdades de cada sujeito, percorrendo para isso caminhos repletos de percalços, dúvidas, faltas e renúncias, indo na contramão das demandas do mundo moderno, onde velocidade e pressa são a regra, onde impera o gozo desenfreado, onde se anseia controle de tudo, excessiva segurança e saber absoluto.

Essa subversão do status quo da modernidade é provavelmente um dos principais desafios que a Psicanálise enfrenta em nossa época, de modo que nem toda gente dá conta de entrar em análise pessoal e menos gente ainda consegue sustentá-la, levá-la longe. Logo, penso que se o futuro reserva para a Psicanálise um lugar, este será subversivo e marginal, algo que tem sido seu destino desde sua criação. Ao que tudo indica, apesar de permanecer à margem, seu espaço continuará existindo e seguirá tendo grande importância às pessoas que puderem e quiserem dele se valer.

De fato, em tempos de antidepressivos, ansiolíticos, estimulantes, estabilizadores de humor, antipsicóticos e diversas outras substâncias psicoativas, disponíveis no curto espaço entre o começo de uma consulta médica e a emissão de uma receita (às vezes não mais do que 10 ou 15 minutos), encontramos promessas que parecem ser uma saída mais fácil para o sofrimento, e muitos daqueles que estão desesperados com a dor de existir são capazes de acreditar em qualquer coisa que possa lhes servir de alento. Entretanto, sem invalidar a importância dos psicofármacos em determinadas circunstâncias, há quem tenha uma noção minimamente crítica e cultive o amor pelas verdades, componentes que abrem perspectivas para a Psicanálise seguir germinando no mundo atual. E se não for possível uma análise, que pelo menos haja escuta psicanalítica, conforme descortinado na breve vinheta clínica a seguir, que encerrará este artigo.

Atendi recentemente, em consulta médica, uma jovem mãe, de origem humilde, que relatou ter permitido que a filha, uma criança de 7 anos de idade, num momento de descuido, escapasse à rua, e desta escapada resultou um atropelamento que lhe desfigurou gravemente o rosto. A menina foi prontamente socorrida e teve acesso, ao que parece, a um bom serviço médico de cirurgia plástica. Embora as cicatrizes sejam inevitáveis, é boa a expectativa de que se tornem menos aparentes ao longo do desenvolvimento puberal. Isto, todavia, não tem minimizado o sentimento de culpa dessa mãe. Ela contou-me que, além de se sentir culpada, foi tomada por tamanho desespero no dia do acidente que precisou ser levada, em surto psicótico, a um atendimento psiquiátrico de urgência. Foi rapidamente diagnosticada com “transtorno de estresse pós-traumático” e saiu de lá com uma receita de fluoxetina, mirtazapina, lítio e clonazepam, para usar por tempo indeterminado. Vale salientar que até então ela não tomava nenhum psicofármaco.

Algumas semanas depois, no dia em que a mulher veio a ser atendida por mim pela primeira vez, sua intenção era apenas “renovar” aquela receita, pois assim teria sido orientada pelo médico psiquiatra. Opus-me à ideia de ela continuar tal “tratamento”, depois de ter escutado atenta e calmamente a história resumida acima. Expliquei-lhe que muito provavelmente ela não precisava tomar nenhuma daquelas medicações, pois era muito compreensível que sentisse dor e culpa pelo ocorrido com a filha, esclarecendo que nenhum medicamento seria capaz de curar aquilo. Falei que havia motivos reais, que ela tinha “direito” de se sentir assim e que seria preciso falar muito mais sobre o assunto. A paciente concordou em ser encaminhada ao serviço de psicologia disponível na comunidade e iniciarmos o acompanhamento médico para uma desprescrição gradual e responsável daquelas drogas, a fim de evitarmos crises de abstinência.


Há alguns dias ela retornou para a sequência do tratamento, afirmando estar se sentindo “bem melhor tomando menos remédios”. Disse que ainda dói muito ver a filha desfigurada, mas a menina tem demonstrado força para seguir vivendo como pode e está optando ir de máscara para a escola, o que ameniza um pouco a dor de ambas. Nesse retorno, a mulher me agradeceu por não considerá-la louca e, principalmente, parecia estar grata porque lhe foi permitido dar voz a seu sofrimento e tê-lo, no discurso do outro, de alguma forma validado.

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REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias à Psicanálise (1916-1917): obras completas, volume 13. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 630 p.

GøTZSCHE, Peter C. Medicamentos mortais e crime organizado: como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman, 2016. 298 p.

JORGE, Marco Antonio Coutinho; FERREIRA, Nadiá Paula. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 87 p.

LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, Jacques. De um desígno. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. p. 365-369.

LEITE, Marco Correa; COUTO, Richard Harrison Oliveira. Psychoanalysis and evidence-based practice in mental health. Journal Of Psychology & Clinical Psychiatry, [S.L.], v. 14, n. 5, p. 127-134, 12 set. 2023. MedCrave Group Kft.. http://dx.doi.org/10.15406/jpcpy.2023.14.00741.

WHITAKER, Robert. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 423 p.

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As imagens do post, na ordem em que aparecem, foram obtidas livremente nos seguintes endereços eletrônicos:

https://www.npr.org/sections/health-shots/2019/05/02/718744068/how-drug-companies-helped-shape-a-shifting-biological-view-of-mental-illness

https://www.theguardian.com/society/2013/aug/03/will-self-psychiatrist-drug-medication (illustration by John Holcroft)

https://www.culturagenial.com/a-persistencia-da-memoria-de-salvador-dali/ (Salvador Dalí: A persistência da memória, 1931)

https://www.nybooks.com/online/2020/04/01/psychoanalysis-in-time-of-plague/

[acesso em 21 set 2023]

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