A psicanálise na canção "Garotos II - O Outro Lado"


“Garotos II - O Outro Lado” é provavelmente a canção mais conhecida de Leoni e neste ano 2023 completa-se 30 anos de seu lançamento. Ela embalou a adolescência de muitos jovens românticos que tiveram o privilégio de experienciar essa fase da vida durante a década de 90, época na qual, em minha opinião, que lá estive adolescente, o caldeirão musical estava em uma fenomenal e sem igual ebulição criativa.

Leoni, na referida canção, capta poeticamente o paradoxo encontro entre drama e encanto que uma jovem mulher pode proporcionar a um jovem que por ela se apaixona: olhos, olhares, truques, confusões, boca, cabelo, peitos, poses, apelos, mistérios, armadilhas. Essa ambivalência torna-se ainda mais dramática na medida em que, ao que parece, enquanto jovens apaixonados são só garotos, tentando apreender algo sobre o impressionante universo feminino que se apresenta a eles com as descobertas sexuais da puberdade, as meninas por quem eles se encantam já são tão mulheres.

No texto “A feminilidade”, de 1933, Freud fala sobre a existência de um enigma da feminilidade. E acrescenta que corresponde à singularidade da psicanálise não querer descrever o que a mulher é - isso seria para ela uma tarefa quase impossível de resolver -, mas, sim, pesquisar como ela se torna uma mulher. Então, se até para a psicanálise é árdua a tarefa de compreender as mulheres e o feminino, o que dizer para os jovens garotos apaixonados?

Outro aspecto interessante captado pela poesia dessa canção de Leoni é o enfraquecimento do amor próprio do jovem que se apaixona por aquela menina que é tão mulher. Talvez até seja brando usar o termo “enfraquecimento", quando a letra da música demonstra praticamente um abandono de si: no tocante aos garotos, essas mulheres os levam sempre onde querem e eles nunca dizem não. Perto delas os garotos têm o corpo e o juízo mastigados, já não se importam consigo, a ponto de não saberem o que fazem ali de palhaços, seguindo seus passos.

Freud, desta vez na obra “Psicologia das massas e análise do Eu”, de 1921, ao falar sobre o amor entusiasmado de um jovem, afirma que nesta condição o Eu torna-se cada vez menos exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais grandioso, mais valioso; este finalmente alcança a posse de todo amor próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu torna-se consequência natural. O objeto consumiu o Eu, por assim dizer. Exatamente o que parece acontecer com os garotos de Leoni, os quais, de modo igual ao eu lírico, sempre tão espertos, perto de uma mulher são só garotos.

Quando lanço um olhar de volta para minha história e analiso a adolescência que tive, de jovem romântico e apaixonado, é fácil entender porque a canção “Garotos II - O Outro Lado” era uma das minhas favoritas, inclusive para tocar e cantar ao violão. Escutá-la e executá-la certamente foi uma saída sublimatória para muitos momentos de amor não correspondido e, principalmente, para situações em que era impossível saber, afinal, o que queriam aquelas mulheres. Assim como era impossível viver sem elas.

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O escrito acima foi originalmente apresentado em atividade do "Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Arte", no ramo Psicanálise e Música, promovida pela Sociedade Psicanalítica Online (SPO), com a participação especial do cantor e compositor Leoni, disponível no vídeo a seguir:


Abaixo, respectivamente, a letra e o clipe oficial da canção em pauta, composição de Leoni e Paula Toller:

Garotos II - O Outro Lado

Seus olhos e seus olhares
Milhares de tentações
Meninas são tão mulheres
Seus truques e confusões

Se espalham pelos pelos
Boca e cabelo
Peitos e poses e apelos
Me agarram pelas pernas
Certas mulheres como você
Me levam sempre onde querem

Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos

Seus dentes e seus sorrisos
Mastigam meu corpo e juízo
Devoram os meus sentidos
Eu já não me importo comigo

Então são mãos e braços
Beijos e abraços
Pele, barriga e seus laços
São armadilhas
E eu não sei o que faço
Aqui de palhaço
Seguindo seus passos

Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos


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A imagem inicial deste post está disponível na internet e foi obtida no seguinte endereço:
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[acesso em 06 set 2023]

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