Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

Juliete (nome fictício) é uma adolescente de 15 anos de idade que vinha fazendo cortes em sua própria pele. Os ferimentos assustavam seus pais, avós, professores e amigos, mas nem isso nem os psicofármacos que lhe prescreveram a impediam de continuar. Logo, os antebraços da jovem seguiam com inúmeras marcas e cicatrizes. Outro dia, o pai, indignado com a automutilação da filha, repreendeu-a severamente, disse-lhe que não podia mais fazer aquilo, pois “sempre teve tudo que precisou” e “nunca lhe faltou nada”. Será mesmo?

Retomaremos a vinheta clínica de Juliete mais à frente. Primeiro, é importante destacar que casos como o dessa jovem têm sido frequentes nos consultórios de profissionais que lidam com questões relativas à saúde mental, sejam eles psicanalistas, médicos ou psicólogos. Portanto, podemos esperar que histórias como a dela, quando escutadas com atenção, nos permitam compreender mais da subjetividade do mundo contemporâneo. A propósito, sabemos que essa compreensão deve ser buscada por todo aquele que se propõe a clinicar, em especial na clínica psicanalítica, conforme enfatiza Lacan (1998, p. 322): Que antes renuncie a isso [à obra do psicanalista] quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Ou seja, traduzindo em linguajar mais simples, um dos atributos do analista é que ele esteja atento ao que se passa com as pessoas na cidade, aos assuntos que estão, digamos, na boca do povo da pólis.

Ferimentos autoprovocados habitualmente causam comoção ou estranheza alheias. Essa violência autoinfligida vem aparecendo até no enredo de filmes e seriados, mas o que ela pode revelar da tal subjetividade contemporânea? Quando perscrutados através do olhar psicanalítico, os atos de automutilação inserem-se no contexto da problemática dos chamados “novos sintomas”, entre os quais se incluem ataques de pânico, bulimia, anorexia, toxicomania, além de outros fenômenos que devem ser situados como respostas subjetivas ao discurso que incita o gozo (LUSTOZA; CARDOSO; CALAZANS, 2014). Neles se observa a predominância do real, ao mesmo tempo em que há carência simbólica. Em outras palavras, são sintomas demasiadamente difíceis ou mesmo impossíveis de se interpretar. Identificá-los enquanto “novos” não significa que eles não ocorriam em épocas passadas da humanidade, mas sim que se diferenciam dos sintomas que outrora, na ocasião em que a Psicanálise foi criada, predominavam clinicamente, a saber, as reclamações histéricas e repetições neuróticas.

Um dos pontos relevantes de se saber que os novos sintomas não são interpretáveis é que, ao contrário daqueles sintomas dos primórdios psicanalíticos, que podem ser tratados pela via simbólica, os fenômenos subjetivos mais contemporâneos exigem do analista conhecer também outra forma de clinicar, denominada clínica do real, à qual nos convoca Jacques Lacan. Diante de sintomas pobres em formações do inconsciente, por certo não iríamos muito longe se buscássemos encontrar um sentido oculto para eles. Face ao real, as incidências do psicanalista devem se dar sobre os modos de gozo do analisante e o gozo só se interpela, só se evoca, só se saprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência (LACAN, 1985, p. 124).

Ainda antes de voltarmos ao caso de Juliete, com o qual será exemplificada uma intervenção psicanalítica nesse contexto, julgo pertinente registrar outro porquê, qual seja, por que os sintomas estão mudando? Para começar a pensar sobre isso, tenhamos em mente que os sintomas histéricos e neuróticos não desapareceram da face da terra. Ao contrário, embora numa roupagem mais moderna, eles continuam dando muito trabalho aos analistas. Todavia, conforme mencionado acima, os diferentes modos de sofrimento expressos através dos sintomas novos estão mais prevalentes hoje do que em outras épocas, notoriamente se compararmos a época atual com aquela em que nascia a Psicanálise. Logo, a fim de explicar tal diferença, é preciso olhar para algumas coisas que mudaram em nossa sociedade. Uma alteração muito significativa que ocorreu tem a ver com as liberdades individuais e é apontada por Zygmunt Bauman, grande pensador da modernidade:

Nos tempos de Freud e de seus escritos, a queixa mais comum era o déficit de liberdade; os contemporâneos dele se dispunham a renunciar a uma fração considerável de sua segurança desde que eliminassem as restrições impostas às suas liberdades. E finalmente conseguiram. Agora, porém, multiplicam-se os indícios de que cada vez mais gente cederia de bom grado parte de sua liberdade em troca de emancipar-se do aterrador espectro da insegurança existencial. (BAUMAN; DESSAL, 2017, p. 19)

Dialogando com essas mudanças, que por um lado refletem importantes conquistas de movimentos sociais ao longo do século XX, teorias psicanalíticas procuram responder a questão sobre a variação no padrão dos sintomas através do que vem sendo chamado de declínio da função paterna. De acordo com Lacan (2008, p. 41), o pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei. Deste modo, anteriormente muitos desejos eram reprimidos em função do temor a esse representante simbólico da lei, dos limites pela castração e, de certo modo, da segurança existencial. Entretanto, na era moderna o pai foi posto de lado para que almejadas liberdades humanas fossem alcançadas e, no lugar de uma sociedade cuja moral repressiva interditava o gozo, estamos passando a um outro extremo, no qual parece proibido proibir: uma sociedade que removeu a barreira ao gozo. Nesta os sujeitos parecem concluir que tudo é permitido (LUSTOZA; CARDOSO; CALAZANS, 2014).

O declínio da função paterna corresponde, portanto, às perdas de grandes referenciais simbólicos que outrora orientavam a existência do ser humano, sendo provavelmente Deus a mais significativa dessas referências, acompanhado pela família nuclear tradicional e instituições como a igreja. Como consequência dessa carência simbólica, muitos sujeitos que vivem nos tempos atuais encontram-se pobres de norteadores, estão desbussolados: escolhem seus destinos a esmo, muitas vezes não levando em conta as interdições que os impediriam de extrapolar os limites do próprio corpo ou de invadir o corpo e a propriedade de outros sujeitos. Nessa estrada não é incomum que se percam também os limites que separam a civilização da barbárie, o que explica o aumento da sensação de insegurança existencial. Afinal, em tal cenário sem limites nada garante que você não será a próxima vítima a ser tomada pelo outro.

Contudo, a explicação para a eclosão dos novos sintomas vai um pouco além das quedas de barreira ao gozo. Ela está relacionada principalmente a um tipo de discurso marcante dos tempos modernos, um discurso que torna o gozo não apenas possível, mas imperativo. Os sujeitos se veem impelidos, como uma nova obrigação moral não moralista, a gozar cada vez mais. Seja na vida real ou na virtual, é preciso sempre querer alguma coisa, sempre estar correndo atrás de algo novo, é necessário gozar!

Esse discurso que fomenta a busca de gozo tem sérias repercussões clínicas. Assiste-se hoje à proliferação de patologias em que os atos parecem substituir a palavra. O fato de os atos predominarem sobre as palavras sinaliza uma hegemonia de respostas subjetivas pela via do gozo; daí muito do que se encontra sob a rubrica "novos sintomas" referir-se sobretudo a uma clínica das impulsões: bulimia, anorexia, novos tipos de adicções, hiperatividade, etc. (LUSTOZA; CARDOSO; CALAZANS, 2014)

É chegado enfim o momento de voltarmos ao caso de Juliete. Sabemos agora que os atos violentos que a moça vinha produzindo contra si mesma, ao se cortar, são uma maneira de substituir palavras que simplesmente não se tem. A violência, em suas incontáveis variantes, pode entrar na história de qualquer pessoa quando esta se encontra incapaz da expressão através do verbo ou de outras formas não arcaicas de linguagem. Naturalmente, para que coubessem palavras, fazia-se necessário conhecer melhor o cenário no qual se desenrolavam os acontecimentos da vida da moça. Porquanto ela estava apenas nas entrevistas psicanalíticas preliminares, questionei-a sobre o palco principal de suas vivências.

A adolescente contou-me que morava com a mãe e a irmã caçula, filha de pai diferente do seu. O pai de Juliete até tentava se fazer presente na vida da jovem, no entanto, embora ligasse frequentemente, não tinha muito sucesso numa aproximação genuína. Praticamente desde a separação daquele primeiro núcleo familiar, quando Juliete ainda estava na tenra infância, ele se mudou para outra cidade, cerca de 100 Km de distância. Isto não seria grande empecilho se durante as ligações o pai buscasse construir um diálogo mais profundo com a filha, todavia, ao que parece, ele só queria saber se ela estava “indo bem na escola” e, mais recentemente, de despejar sermões censurando os cortes em seu corpo, tratando o assunto como “um grande absurdo”, segundo relato da adolescente.

A mãe, que se separou também do pai da filha caçula, parecia, na visão de Juliete, não se importar muito com os homens com quem convivera até a ocasião, tratando-os com um tanto de indiferença e menosprezo. Não cheguei a saber se seriam homens valorosos ou não. O ponto é que, no discurso da mãe, o pai de Juliete era apresentado para ela como alguém que apenas pagava-lhe pensão. E apesar do valor pago corresponder ao que determinava a lei, a mãe sempre reclamava para a filha que “mal dava pra pagar a escola”. Há que se registrar que a genitora fez questão de matricular e manter a jovem num colégio caro, ainda que a renda familiar, somada com os proventos da pensão, não fosse muita.

O significante “escola” aparece com alguma força nessa história. A mesma escola que se configurava um dos raros objetos de interesse do pai pela filha também se fazia, nas palavras da mãe, a única contribuição dele para Juliete. Claro que outras associações poderiam ser apreendidas nessa cadeia significante, porém era igualmente importante falar dos cortes, motivo da demanda de análise. Não que a jovem quisesse falar espontaneamente a respeito, mas foi o que ela mencionou quando perguntei o porquê de estar ali na sessão. Aquele sintoma, se é que podemos chamá-lo assim, era mudo. Como então abordá-lo? Vejamos o que nos diz o psicanalista Juan-David Nasio:

Nesse caso, ou seja, no caso de certas formações do objeto a, já não se trata de decifrar um dito nem de inscrevê-lo numa cadeia de dizeres recalcados, mas de voltar ao ponto de partida, ali onde tudo começa, no espanto de que as coisas sejam como são. Quando o analista, espantado, fica em suspenso, a única saída é recuperar-se e procurar a causa. Ele transforma a inevitável opacidade do objeto em uma pergunta sobre a causa: "Por quê?" (NASIO, 2011, p. 59)

Lembrando da importância dessa questão, o simples gesto de perguntar para Juliete por que ela se cortava, sem fazer juízo de valor sobre o ato, deu-lhe (con)sequência: “Eu me corto para aliviar minha dor.” Naturalmente, por mais paradoxal que a frase possa parecer, permitiu-me abertura a outra pergunta, qual seja, que dor era aquela que a adolescente tentava apaziguar? Assim, Juliete pôde verbalizar que lhe doía bastante a separação dos pais, a forma como o pai lidava com ela e os dizeres e a postura da mãe sobre aquele homem. Um pai, afinal, não pode ocupar adequadamente seu lugar na função paterna sem que o deseje e sem que tal lugar lhe seja conferido pela mãe. Não se trata aqui de atribuir culpas e condenações, mas de perceber que nesse caso o papel do pai na vida da filha, que poderia ser tão significativo, estava posto de lado, à margem de sua juventude. E quando isso ocorre não tem a ver necessariamente com pai e mãe viverem separados. O exercício da função paterna não pressupõe casamento, sequer necessita ser realizado pelo pai biológico.

Por fim, podemos dizer, de essencial sobre o papel do analista em situações semelhantes à apresentada, que é justamente através de um ato que o psicanalista se qualifica como tal, contudo, como diria Lacan (2003, p. 374), não se trata de qualquer ato: há de ser um gesto que modifique o sujeito. Esse gesto é sem selvageria, ele deve pacificar a violência quando esta se apresenta. E, conforme já salientado anteriormente, onde faltam palavras, é preciso e precioso criar condições para que elas sejam ditas. Onde há o desamparo pela falta do pai, é necessário construir referências.


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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt; DESSAL, Gustavo. O retorno do pêndulo: sobre a psicanálise e o futuro do mundo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 131 p.

LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. p. 238-324.

LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 20: mais, ainda. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O ato psicanalítico. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 371-379.

LUSTOZA, Rosane Zétola; CARDOSO, Mauricio José d‘Escragnolle; CALAZANS, Roberto. "Novos sintomas" e declínio da função paterna: um exame crítico da questão. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 2, ed. 17, 2014. DOI https://doi.org/10.1590/S1516-14982014000200003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/9hDBzBX8gxmvkjg4Y59Rw6S/?lang=pt#. Acesso em: 13 jun. 2023.

NASIO, Juan-David. Os olhos de Laura: somos todos loucos em algum recanto de nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 164 p.


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Imagens utilizadas no post, respectivamente na ordem em que aparecem, obtidas livremente na internet:

Colorful Abstract Feminist Art | Original Oil Painting on Canvas
https://www.etsy.com/listing/275915890/colorful-abstract-feminist-art-original?ref=reviews
[acesso em 23 jun 23]

Self Harm
https://www.deviantart.com/tag/selfharm
[acesso em 23 jun 23]

J. Howard Miller - We Can Do It!, 1943
https://www.widewalls.ch/magazine/how-art-fought-for-womens-rights-feature-2015/the-feminist-art-movement
[acesso em 23 jun 23]

Self Harm: The Inner Scream
https://scopeni.nicva.org/article/self-harm-inner-scream
[acesso em 23 jun 23]

Fisher: Teens show of scars in cutting’s pandemic of pain – Orange County Register
https://www.ocregister.com/2014/04/10/fisher-teens-show-off-scars-in-cuttings-pandemic-of-pain/
[acesso em 23 jun 23]

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