Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Teenagers - painting by Alejandro De Jesus |

A adolescência é uma fase da vida importantíssima para determinar que adultos seremos. Trata-se de um longo caminho a ser percorrido, sinalizado por diversas mudanças psicossomáticas que, gradativamente, vão demarcando diferenças cruciais entre a criança e o adulto. É uma trilha geralmente difícil de se fazer, permeada por angústias, inquietações, dúvidas e sofrimentos. Assim, muitos jovens buscam ajuda na psicanálise para lidar com o mal estar. E o psicanalista, para bem cumprir sua função, deve estar atento não apenas às especificidades da clínica nessa faixa etária, mas também às características do mundo em que tais sujeitos estão inseridos.

Um dos grandes problemas com que nos deparamos atualmente na clínica psicanalítica é aquilo que chamarei, talvez por falta de expressão mais apropriada no momento, de rótulo diagnóstico. Isto é notoriamente prejudicial quando se trata de adolescentes, pois, como indicado acima, eles estão passando por inúmeras transformações, ainda incompletas, até se tornarem adultos. Todavia, não é pequeno o número de jovens que, ao chegarem num analista, estiveram antes no consultório de psiquiatras, ou de outros médicos, e foram intitulados “portadores” de algum transtorno mental, título ao qual costumam se agarrar fortemente, como se não fosse um estado passível de modificação. Isto se configura uma espécie de aprisionamento psíquico, cujas implicações não são poucas ao ofício do psicanalista, que precisará ajudar seu paciente a encontrar as chaves que abrem essa prisão, como diria Gessinger em um dos clássicos dos Engenheiros do Hawaii (SOMOS… 1988).

A forma como estão sendo usados os diagnósticos psiquiátricos vem recebendo críticas até mesmo de médicos da área, entre os quais o Dr. Allen Frances, renomado psiquiatra norte-americano que, sem neutralizar a relevância do diagnóstico, escreve que este deveria ser apenas um item de uma avaliação completa, mas em vez disso passou a predominar. O entendimento da pessoa como um todo com frequência se reduziu ao preenchimento de uma lista de checagem. Perdidos no turbilhão ficaram o arco narrativo da vida do paciente e os fatores contextuais que influenciam o surgimento do sintoma (FRANCES, 2016, p. 93). À parte a inflação diagnóstica na psiquiatria, percebe-se que essa crítica toca também um aspecto caro aos analistas, a saber, a capacidade narrativa do sujeito, que de fato fica comprometida quando se foca demasiadamente no diagnóstico. 

Na clínica com adolescentes, por exemplo, tem sido cada vez mais comum eles se apresentarem utilizando expressões como “tenho TDAH”, “sou autista”, “sou bipolar”, “tenho ansiedade” ou “sou depressivo”, referindo-se aos diagnósticos mais “prevalentes” nessa faixa etária como se fossem uma condição inerente da psique, não um estado. Ademais, basta escutá-los com atenção e respeitar, com mínimo rigor, os critérios diagnósticos de tais transtornos mentais para chegarmos à conclusão que, na maioria dos casos, estamos diante de sintomas que foram rotulados como doenças psiquiátricas, mas que provavelmente não o são, e de pessoas com um discurso empobrecido sobre si mesmas.


Parte disso se explica pelo fato de os adolescentes de hoje, nascidos na era dos smartphones e da hipervelocidade das coisas com a internet, viverem num mundo de imaginário insuflado (em outras palavras, com imagens demais), o que empobrece os recursos simbólicos individuais, encurta o noção de tempo e torna a narrativa escassa. Quase tudo chega pronto, mastigado e vomitado através das telas. Quase sempre se está conectado à grande rede, com tudo passando veloz e descartavelmente, dispersando a atenção. Os resultados disso são a falta da falta, impedindo a existência da ociosidade como potencial criativo, e o déficit de atenção, sintoma (não doença) obviamente marcante nesse mundo contemporâneo. Ou seja, no mundo onde nossos jovens estão crescendo, caracterizado pelo predomínio das vivências artificiais do ambiente virtual, as verdadeiras experiências são mitigadas, a vida real sucumbe. Ouso dizer que se trata de um mundo com características psicóticas, pois nele a realidade é apartada, colocada à margem.

Há na psicose, afinal, a criação de uma realidade paralela alucinatória em substituição à vida real, na qual determinados desejos não podem ser realizados, algo insuportável para alguns sujeitos. Freud (2019, p. 274) aponta que a etiologia comum para o início de uma psiconeurose ou psicose permanece sendo o impedimento [Versagung], a não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos da infância. Porém, enquanto a neurose não recusa [verleugnet] a realidade, apenas não quer saber nada sobre ela, a psicose a recusa e procura substituí-la (FREUD, 2019b, p. 282). Mais adiante no mesmo texto, o autor acrescenta que também se coloca para a psicose a tarefa de procurar para si as percepções que corresponderiam à nova realidade, o que é alcançado fundamentalmente pela via da alucinação (FREUD, 2019b, p. 282). 

Hoje frequentemente escutamos na clínica relatos de adolescentes que dizem não conseguir se desligar por muito tempo do ambiente virtual (“alucinatório”) e que optam ter poucas experiências de relacionamentos com pessoas reais. Logo, uma pergunta se impõe no setting analítico, para se trabalhar em cada caso desses de modo singular: por quê? Balizando-nos ainda pela pena de Freud, podemos intuir o perfil de respostas a essa pergunta, tendo em conta que o ensejo para a irrupção de uma psicose é a realidade haver se tornado insuportavelmente dolorosa ou [as pulsões] haverem recebido um extraordinário fortalecimento (FREUD, 2018, p. 152).

Outra característica psicótica do mundo atual, igualmente com implicações diretas na clínica psicanalítica com adolescentes, é a já mencionada carência simbólica, ou seja, o fracasso das metáforas. E se as metáforas fracassam, declina a função paterna, conforme abordado outrora neste blog. Eis o cenário favorável para se instaurar algo análogo à psicose, pois é num acidente desse registro [simbólico] e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial (LACAN, 1998, p. 582). Interessante que o apego atual aos diagnósticos psiquiátricos se dá em muitas vertentes, mas bem menos na vertente psicótica. Se por um lado alguns transtornos da saúde mental podem cursar com ganhos secundários, por outro praticamente ninguém gostaria de se assumir esquizofrênico, haja vista a loucura prevalecer estigmatizada como algo ruim pela sociedade. Há muito que a psicose segue, digamos, fora de moda.

Voltando ao ofício analítico no cenário apresentado, psicótico em determinados aspectos, penso que a diferença que o psicanalista pode fazer na vida dos jovens que têm a oportunidade de se analisar é oferecer um espaço alternativo a tudo isso, qual seja, lugar de escuta qualificada e construções narrativas, porque se trata, no fundo da psicose, de um impasse, de uma perplexidade concernente ao significante (LACAN, 1988, p. 221), ou seja, de uma questão da ordem da linguagem.

A análise também pode ser local de questionamentos sobre as supostas verdades diagnósticas às quais os pacientes foram outrora acorrentados. As certezas, afinal, não combinam muito com a psicanálise; a inventividade, sim:

O analista, ao demonstrar interesse pelo relato que o paciente faz da sua doença, abre uma via para que ele construa explicações em torno desse sintoma se apropriando de um saber sobre si. Sem negligenciar o rigor epistemológico e tomando a psicanálise como um processo terapêutico que não se baseia no desaparecimento do sintoma, tal como a medicina, talvez assim consigamos diminuir a resistência do paciente em encontrar novas saídas, mais em direção ao seu desejo. (GONÇALVES, 2022, p. 49) 

Portanto, diante do que é praticamente uma psicose coletiva no crescente mundo virtual, o trabalho analítico deve se valer da via do simbólico, em especial para os adolescentes, visando fazer bordas no real e, consequentemente, furos no imaginário. Aqui temos a rota para se descobrir se pode haver uma vida real e, ainda, o que dá pra se fazer com ela. Além disso, é importante que a clínica com os jovens reduza a pressa e dilate o tempo para compreender, ferramentas fundamentais na abertura da estrada para aquele tipo de escuta que possibilita emergir o desejo em cada sujeito.


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REFERÊNCIAS

FRANCES, Allen. Voltando ao normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2016. 368 p. Tradução de: Heitor M. Corrêa.

FREUD, Sigmund. Compêndio de Psicanálise (1940 [1938]). In: FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de Psicanálise e outros textos (1937-1939): obras completas de Sigmund Freud volume 19. [S.I.]: Companhia das Letras, 2018. p. 110-158. Tradução de Paulo César de Souza.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose (1924). In: FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 271-278. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes.

FREUD, Sigmund. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). In: FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 279-285. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022. 262 p.

LACAN, Jacques. O Seminário Livro 3: as psicoses (1955-1956). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. 369 p. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Aluísio Menezes.

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590. Tradução de Vera Ribeiro.

SOMOS quem podemos ser. Produção de Engenheiros do Hawaii. Letra de Humberto Gessinger. [S.I.]: Sony Music Entertainment Brasil Ltda., 1988. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gyhLLErDfkI. Acesso em: 15 dez. 2023.


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As imagens do post, na ordem em que aparecem, foram obtidas livremente nos seguintes endereços eletrônicos:

https://www.saatchiart.com/art/Painting-Teenagers/752200/2343971/view
(Teenagers Painting by Alejandro De Jesus | Saatchi Art)

https://www.absolutearts.com/painting_acrylic/amber_robbins-woman_in_chains_one-1297414115.html
(Woman In Chains One Painting By Amber Robbins)

https://socialecologies.wordpress.com/2022/02/18/the-internet-as-collective-psychosis/

https://brainblogger.com/2014/12/06/psychosis-a-dream-like-state-of-mind/

[acesso em 15 dez 2023]

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