A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina


Chamou a atenção da mídia recentemente, e causou no mínimo estranheza, o comportamento de jovens, futuros médicos, que durante jogos esportivos da faculdade realizaram um ato de masturbação coletiva. Este tipo de ocorrência não surpreende muito quem já frequentou um curso de Medicina e teve a oportunidade de presenciar que parte dos estudantes costuma agir de modo bizarro e impudente nas festas promovidas pelas famosas “atléticas”, em especial durante os badalados jogos conhecidos como “intermed”, que acontecem entre diferentes faculdades. No entanto, conhecedores ou não desse ambiente talvez estejam ecoando a pergunta: por que isso acontece? Pois bem, vamos pensar sobre e levantar algumas hipóteses aqui.

Inicialmente, deve ficar claro que estamos diante de um comportamento de grupo, ou de massa, se quisermos usar o termo consagrado por Freud na obra “Psicologia das massas e análise do Eu”. A propósito, nesse texto ele afirma que um indivíduo no interior de uma massa experimenta, por influência dela, uma alteração frequentemente profunda de sua atividade anímica. Sua afetividade é aumentada excepcionalmente, e seu rendimento intelectual é marcadamente restringido, estando ambos os processos claramente orientados na direção de uma equiparação com outros indivíduos da massa; um resultado que só pode ser alcançado pela supressão das inibições pulsionais próprias a cada indivíduo e através da renúncia às particulares configurações de suas tendências. Em síntese, se olharmos para o comportamento dos estudantes em questão como um comportamento de grupo, entendemos que eles podem agir de modo estúpido e sem vergonha por estarem influenciados pelos demais. E provavelmente jamais fariam algo parecido em público se estivessem sozinhos.

São fatores de ordem particular que determinam quão influenciável um indivíduo é pela massa, então não será possível tecer comentários razoáveis a respeito, a menos que dispuséssemos do discurso de alguém que participou daquele ato. Entretanto, uma hipótese que me parece plausível, para ajudar-nos a explicar o comportamento de grupo dos estudantes em pauta, apoia-se exatamente no fato de que todos eles são (ou eram) estudantes de Medicina, e não de outro curso. Explico a seguir, embora isso não signifique que em outros cursos coisas parecidas não possam acontecer.

Apesar de a Medicina não gozar mais do mesmo prestígio social de outrora, não há como negar a existência de certos poderes atribuídos ao médico e, consequentemente, também ao indivíduo que está em formação para sê-lo. Ter o reconhecimento social desse lugar e a autorização para exercer o ofício da medicina significa, em tese, deter conhecimento sobre o processo saúde-doença, além de ter legitimidade para conhecer segredos e intimidades das pessoas que se tornam pacientes, inclusive legitimando acesso ao corpo do outro ser humano para exames clínicos. Estamos falando, portanto, de um poder bastante considerável, algo que, se bem utilizado, tem efeitos terapêuticos na relação médico-paciente. Por outro lado, esse poder trará consequências no mínimo desagradáveis quando indevidamente apropriado com arrogância, sensação de superioridade, tendências narcísicas ou fora do contexto clínico.

O estudante de Medicina, de modo geral, sente-se possuidor de tal poder desde os primeiros momentos da graduação. Algumas sutilezas, por exemplo, o orgulho de desfilar com a camiseta ou a pasta do curso pelo campus da universidade, evidenciam tal sentimento. Até aí, tudo bem, não temos necessariamente um problema. Ocorre, porém, que o curso de Medicina, novamente digo em linhas gerais, costuma ser excessivamente voltado para o conhecimento dos fenômenos objetivos e técnicos que envolvem o ofício do médico, deixando de lado aspectos subjetivos que julgo essenciais para que sua formação esteja resguardada pelos princípios éticos necessários à boa prática profissional, aspectos entre os quais se incluem a formação psicológica do médico e o amparo psíquico aos estudantes de medicina, tantas vezes expostos a situações perturbadoras com as quais ainda não têm condições de lidar (o que pode explicar parcialmente o elevado índice de suicídio entre esses jovens).

Da negligência acima mencionada, desse desamparo subjetivo, suponho resultarem médicos despreparados para o poder que lhes é conferido ao receberem o diploma do curso. O comportamento apontado no início do presente texto parece-me apenas uma pequena amostra desse importante descuido na formação médica. E, à parte as sérias implicações profissionais, o “punhetaço” coletivo simboliza, assim como o solitário ato de masturbação, que esses jovens estão em busca de efêmera satisfação que desconsidera a existência do outro e os coloca na mais tola posição autoerótica.

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Imagem utilizada no post:

Idiot, Antonio Argenio (b.1961) - Royal College of Art
disponível em: https://artuk.org/discover/artworks/idiot-146397
[ acesso em 29 set 2023]

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