O que faz um psicanalista?

Falar sobre a formação de um psicanalista, partindo das especificidades da Psicanálise, passa certamente pelas características marcantes do tripé dessa formação, a saber, análise pessoal, supervisão e transmissão (ensino). Todavia, considerando que o tema já foi abordado neste blog, assim como tem sido, felizmente, debatido com bastante frequência pelos mais diversos psicanalistas e instituições dedicados a uma formação psicanalítica responsável, devidamente implicada e atravessada pelos princípios freudianos, minha ideia no presente artigo, ao buscar respostas para a pergunta com a qual o intitulei, é trabalhar sobre um aspecto da formação que habitualmente fica em suas entrelinhas. 

O que faz, afinal, um psicanalista? De início, constatamos que há duas leituras possíveis para nossa pergunta: uma leitura mais óbvia, que trataria diretamente do ofício do psicanalista, ou seja, do que ele faz em sua prática, de como ele atua, e outra leitura, na qual pretendo me aprofundar aqui, que pensará sobre atributos necessários, e de algum modo sutis, para que alguém se faça analista; em outras palavras, para que esse alguém torne-se capaz de psicanalisar.

Freud (2017, p. 223) deixa claro que a análise pessoal é um ponto inegociável para a formação de qualquer psicanalista: exigimos (...) que todo aquele que queira aplicar a análise em outras pessoas primeiro se submeta ele próprio a uma análise. Só (...) quando eles experimentam de fato no próprio corpo - ou melhor: na própria alma - os processos postulados pela análise, eles terão adquirido as convicções que os guiarão mais tarde enquanto analistas. Portanto, é somente em análise que se adquire tais convicções, e acredito que nelas podemos encontrar aqueles atributos sutis, mas de suma importância, que habitam as entrelinhas da formação, à maneira que mencionei anteriormente. Vejamos. 

A pessoa atravessada pelo percurso analítico simplesmente não pode mais ver o mundo através da velha janela de outrora, pois na transferência com o psicanalista ela se convence do inconsciente, das pulsões, das repetições. A linguagem ganha novos e ampliados significados, atos falhos não passam mais despercebidos, sonhos sempre têm algo relevante a dizer, sintomas também. Mais do que encontrar respostas, passa-se a valorizar o processo de buscá-las. E ainda que cada sujeito aprenda a encarar suas verdades, inclusive as mais penosas, cria-se espaço para duvidar, questionar, dialogar, ousar, inventar. Tudo isso muda definitivamente a forma de se relacionar com o outro e de se inserir no laço social. Há, de fato, novas convicções.

Provavelmente o principal fator implicado em tal mudança seja introjetar aquilo que, de acordo com Lacan (1998, p. 470), apenas a experiência analítica é capaz de impor ao pensamento: a primazia do significante sobre o significado. Ter no próprio pensamento a noção dessa primazia é da ordem mesmo de uma pequena revolução para o sujeito, pois ele passa a estar advertido por um saber que passa à margem da vida consciente, à qual se restringe o pensamento da maioria das pessoas. Da minha própria experiência, penso que vale a pena registrar o quanto esse saber afetou minha prática médica, especialmente porque sou um médico de atenção primária à saúde, campo no qual em larga medida são apresentadas queixas que não se configuram situações clínicas de adoecimento orgânico. Advertido pela psicanálise, passei a compreender os sintomas e as doenças como linguagem. Assim, tornei-me um médico que escuta mais, que busca contextualizar as queixas e retirar os pacientes de lugares passivos no tratamento.

Porquanto o significante dispensa qualquer reflexão para forçar as significações que subjugam o sujeito ou que o alienam através do sintoma, somente uma práxis de investigação do inconsciente dá conta de apreender a relação do sujeito com o significante e, consequentemente, de estar em condições de provocar efeitos sustentáveis sobre essa relação. Voltemos a Lacan (1998, p. 463): Para saber o que é a transferência, é preciso saber o que acontece na análise. Para saber o que acontece na análise, é preciso saber de onde vem a fala. Para saber o que é a resistência, é preciso saber o que encobre o advento da fala.

Conforme ressaltado previamente, certas convicções só se podem adquirir quando a psicanálise é experienciada, vivida de corpo e alma (FREUD, 2017, p. 223). Essa transformação subjetiva que faz um analista é algo que advém de uma verdadeira, profunda e particular experiência analítica. Penso que daí resulta o célebre princípio enunciado por Lacan (2003, p. 248), de que o psicanalista só se autoriza de si mesmo. Aqui por certo não se está negligenciando a importância do ensino e da transmissão da psicanálise na formação do analista. Isto se comprova pelos muitos anos de seminários ministrados por Lacan, pela fundação de sua Escola e também por seus diversos escritos. Entretanto, a percepção lacaniana sobre a relação entre analista e instituição psicanalítica difere da ideia ordinária de que diplomas ou certificados podem, supostamente, garantir a (boa) prática de um ofício a alguém.

Ao princípio de que a autorização de uma pessoa enquanto psicanalista vem, antes, de si mesma, Lacan (2003, p. 248) acrescenta que isso não impede que a Escola garanta que o analista dependa de sua formação. (...) Ela pode fazê-lo, por sua própria iniciativa. (...) E o analista pode querer essa garantia, o que, por conseguinte, só faz ir mais além: tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência. Nesse sentido, a relação do analista com o ensino e a transmissão, e com sua própria clínica, não se configura como obrigação que se impõe, mas sim como um desejo genuíno de implicar-se com a continuidade da Psicanálise.

Essa percepção lacaniana vai ao exato encontro da ética do desejo: não basta a evidência de um dever para que ele seja cumprido. É por intermédio de sua hiância que ele pode ser posto em ação, e o é toda vez que se encontra o meio de utilizá-la (LACAN, 2003, p. 251). Talvez, a partir das convicções essenciais que fazem um psicanalista, seja justamente a ética do desejo que encontramos nos sujeitos que desenvolvem não apenas a habilidade de psicanalisar, mas também o desejo de exercer a psicanálise como ofício. Trata-se de algo impossível de ser formatado, pois está sustentado pela falta. Nada diferente do desejo do analista pode assegurá-lo e sustentá-lo em sua jornada, um desejo forjado pela convicção da primazia do significante sobre o significado.


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REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial (1926). In: FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica: Obras incompletas de Sigmund Freud. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 205-313.

LACAN, Jacques. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. p. 461-490.

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 248-264.


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Links em que estão disponíveis as imagens utilizadas, na sequência em que aparecem na postagem:

Jacques Lacan, 8 présentations cliniques à Sainte-Anne. - Patrick Valas https://br.pinterest.com/pin/694680311257259545/

Sigmund Freud
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[acesso em 05 ago 2022]

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