Considerações sobre a formação do psicanalista

Recentemente no Brasil, com o surgimento de uma proposta indecorosa para que fossem criados cursos regulamentados de “graduação em Psicanálise”, voltou à cena o debate público sobre a formação do psicanalista. Diversas instituições, respeitadas por sua tradição na transmissão da Psicanálise, uniram-se para publicar um manifesto contrário à tal proposta, embasadas pelos ensinos dos mestres Sigmund Freud e Jacques Lacan. Mas afinal, se não é através de uma graduação, como se forma um analista? 

Penso que uma forma de iniciar a resposta dessa questão seja apresentando diferentes aspectos do psicólogo e do psicanalista, pois é comum as pessoas confundi-los, particularmente o público leigo. E talvez seja justamente essa confusão que leve alguns a terem a ideia equivocada de que seria necessário regulamentar a Psicanálise, tendo em vista que a Psicologia o é.

Embora ambos, psicólogo e psicanalista, trabalhem em prol da saúde mental (e consequentemente também da saúde física), há algumas diferenças fundamentais entre eles, não apenas em suas formações, mas também no tocante a seus referenciais teóricos, que resultam em modos distintos de atuação e abordagem. Vamos entender a seguir.

Um psicólogo é formado em faculdades ou universidades. Ele pode começar a atuar na clínica, conduzindo psicoterapias, entre outras áreas de atuação, quando recebe seu diploma de conclusão do curso de Psicologia e registra-se no conselho regional desta profissão. A clínica psicológica possui diversas áreas de pós-graduação, com abordagens e referenciais teóricos também variados. Algumas áreas inclusive levam em conta o inconsciente freudiano, como a psicoterapia de orientação analítica, mas outras trabalham essencialmente com a cognição e o comportamento, instâncias conscientes do Eu, e tentam adaptá-las para um melhor enfrentamento da realidade.

Um psicanalista, por outro lado, não é formado em faculdades ou universidades, embora alguns conhecimentos da Psicanálise sejam transmitidos em determinados cursos de graduação e pós-graduação. A formação do psicanalista passa necessariamente por sua análise pessoal, ou seja, ele deve vivenciar a experiência analítica, antes, em si mesmo. Além dessa experiência particular, para um analista se formar ele precisa, claro, de muito conhecimento da área, que deverá ser permanentemente adquirido e transmitido numa relação institucional com outros psicanalistas. E, não menos importante, a formação demanda supervisão regular dos atendimentos que o psicanalista venha a fazer, um processo também conhecido como análise de controle, feito preferencialmente com um analista mais experiente.

Temos na Psicanálise, portanto, uma formação “artesanal”, conforme afirmam alguns renomados colegas da área. Sendo assim, um analista não se faz apenas com a obtenção de certificados ou diplomas. Vale mencionar que a Psicanálise originou-se a partir da Medicina e que os primeiros psicanalistas eram médicos, incluindo o próprio Freud e, mais tarde, Lacan. Entretanto, com o avançar do movimento psicanalítico, psicólogos e profissionais de outras áreas também puderam se tornar analistas e exercer muito bem este ofício.

O referencial teórico da Psicanálise é o inconsciente freudiano, descortinado através de sonhos, lapsos, atos falhos etc., atrelado a outros três conceitos fundamentais: pulsão, repetição e transferência. É a capacidade de manejo da transferência que permite ao psicanalista ajudar o paciente (analisante) a falar sobre seus sofrimentos e, pouco a pouco, mudar sua posição subjetiva perante a vida. Assim, a psicanálise permite inventar um novo jeito de viver, de modo mais leve e ético com os próprios desejos.

Por fim, é preciso destacar que, entre os que falam em regulamentar a Psicanálise, há aqueles que tecem críticas razoáveis, ao apontarem que algumas pessoas têm se lançado ao ofício de analista sem uma preparação suficiente para tal. Entretanto, esse ponto de vista parece não levar em conta que um diploma ou a regulamentação não são garantias de boa prática, e isto vale para qualquer função que se exerça na sociedade. Uma boa prática analítica, antes de qualquer enquadramento, se faz respeitando princípios éticos e a formação permanente. Nenhum psicanalista que faça jus ao ofício abrirá mão disso em sua caminhada.

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As imagens utilizadas nesta publicação foram obtidas livremente na internet, respectivamente, nos seguintes endereços eletrônicos:


https://www.inarchpiemonte.it/per-via-di-levare/

(Escultura de Michelangelo, uma das inspirações de Freud para afirmar que, como os escultores, o psicanalista trabalha per via di levare.)


https://www.escolhaviajar.com/fotos-de-viena/

(Imagem de Viena, capital da Áustria, berço da Psicanálise)


[acesso em 14 fev 2022]

Comentários

  1. Comentário bem sensato na minha opinião, a regulamentação de qualquer ofício não o torna imune a maus profissionais no entanto um conteúdo mínimo de formação não tiraria o mérito de tais profissionais. Mas, hoje em dia falar em sistematizar e organizar qualquer coisa parece apenas opressão do Estado.

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    1. Olá, Gorette! Não vejo uma "opressão do Estado" no tema em pauta. O que me parece é haver muito interesses de mercado na regulamentação da Psicanálise. Abraço.

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