Doutor, me dá uma receita?

A resposta à pergunta título deste artigo será simplesmente um sim ou um não, da parte do médico, todavia dependerá de uma série de fatores e do contexto em que se pede a receita. Pensar sobre isso é bastante relevante, particularmente para pessoas que consideram, equivocadamente, ser algo trivial o ato médico de prescrever, quando na realidade encerra-se nele grande responsabilidade. A essas pessoas, portanto, que comumente comportam-se de modo inconveniente solicitando “receitinhas de corredor” para si, dedico a presente reflexão de modo especial.

Primeiro fato que devemos considerar: medicamentos prescritos podem causar danos; a propósito, danos potencialmente fatais. Isto levou a prescrição de tais substâncias a figurar atualmente como terceira causa geral de mortalidade no mundo, atrás apenas das doenças cardiovasculares e do câncer, conforme já mencionado outrora neste blog, ao citarmos Peter GØtzche. Logo, como médico, ao prescrever qualquer droga, do mais comum dos analgésicos ao mais moderno dos psicofármacos, estou (ou deveria estar) assumindo, conjuntamente com o(a) paciente na maioria das ocasiões, riscos inerentes à prescrição.

Se há riscos decorrentes do uso de medicamentos, espera-se, no mínimo, quando se decide prescrevê-los, que os benefícios almejados de seu consumo suprimam eventuais malefícios, que, não percamos de vista, também podem acontecer. Para “calcular” o risco mencionado, e aspas são apropriadas porque jamais haverão cálculos precisos nessa situação, é fundamental conhecer o contexto da pessoa através de uma detalhada avaliação clínica, com anamnese atenta e exame físico cuidadoso.


Vale ressaltar que, mesmo quando se respeita a consulta médica, algumas interações medicamentosas são absolutamente imprevisíveis e esta imprevisibilidade aumenta de forma proporcional ao número de drogas associadas em uma prescrição. Isto ressoa de modo preocupante para a saúde de pacientes com múltiplas doenças crônicas, habitualmente usuários de polifarmácia, condição tristemente corriqueira em nossos tempos, e também para pacientes que recebem prescrições insanas de diversos medicamentos ao mesmo tempo, seja em consultas de pronto-atendimento ou ambulatoriais.

Com base no exposto anteriormente, é fácil concluir sobre um segundo fato: são imprudentes e irresponsáveis as prescrições de corredor, ou com aquele médico “amigão” da família do qual a consulta passou longe, ou em outras formas dissociadas da boa clínica. Porém, por inúmeros motivos, tais prescrições ocorrem aos montes, desrespeitando o princípio hipocrático essencial à medicina, a saber, primeiro não devo causar dano. Entre os motivos que me parecem mais relevantes apontar, destaca-se o reducionismo com que algumas pessoas pretendem resolver seus problemas de saúde, ao qual geralmente se atrela uma considerável incapacidade de bom senso, em conluio com a dificuldade que determinados médicos têm de dizer não.

Sobre pessoas de funcionamento mental reducionista e “sem noção”, creio ser desnecessário tecer maiores comentários nesta oportunidade. Contudo, falarei um pouco mais sobre os colegas que costumam dizer sim às solicitações inapropriadas de prescrições. Dizer sim sem critérios acena para um paradoxo, não muito evidente. Explico: quando se atende ao tipo de prescrição em pauta, apesar de o médico aparentemente estar sendo “legal”, o que de fato ele faz é livrar-se do verdadeiro problema. Dito de outro modo, o médico, pela via da prescrição leviana, abre mão de compreender e envolver-se verdadeiramente com o processo saúde-doença do sujeito solicitante da prescrição, isenta-se da corresponsabilidade tão cara à relação médico-paciente.


Concluo, por ora, respondendo à questão colocada inicialmente, quando ela se direciona a mim. Eu digo sim às pessoas que desejam desenvolver comigo um vínculo terapêutico. E cabe frisar que nem sempre o sim é necessário, pois os medicamentos são, afinal, meros adjuntos, por vezes úteis, mas não raro desprezíveis, ao tratamento. A arte da medicina está para bem além deles. Por isso também não hesito em dizer não àquelas pessoas que esperam da receita nada mais do que uma assinatura e um carimbo, os quais invariavelmente estariam em meu nome, mas teriam pífio significado.


Comentários

  1. Imagens utilizadas na postagem disponíveis livremente na internet, respectivamente em:

    https://www.colourbox.com/image/doctor-physician-with-stethoscope-image-17910663

    https://www.npr.org/sections/health-shots/2016/11/17/502341021/a-growing-group-of-doctors-are-big-money-prescribers-in-medicar

    https://www.cleveland.com/healthfit/index.ssf/2012/06/the_art_of_patient_satisfactio.html

    [acesso em 05 jan 2019]

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