Desprescrição de medicamentos, passaporte para a vida

“Medicamentos prescritos são a terceira causa de morte no mundo, depois das doenças cardíacas e do câncer.” Esta afirmação de Peter C. GØtzsche pode surpreender muitas pessoas em um primeiro momento. Mas hoje vou apresentar-lhes a história do senhor Galileu (nome fictício), que, aos 87 anos de idade, corre um grande risco de sucumbir devido ao uso inapropriado de medicamentos, ilustrando bem a veracidade do que foi dito acima. 

Apesar da avançada idade, Galileu apresenta boa cognição e tem poucos diagnósticos de condições crônicas de saúde (apenas hipertensão arterial e diabetes). Ele nunca sofreu eventos cardiovasculares, tais como infarto agudo do coração ou acidente vascular cerebral (AVC). Um dos pontos mais difíceis para sua saúde é o fato de atualmente ser ele, um idoso quase nonagenário, o principal cuidador da esposa, que sofre de demência de Alzheimer e já se encontra em situação extremamente fragilizada. Não é difícil compreender o tamanho do problema.

Segundo a colega médica que me apresentou o caso de Galileu, ele mantém bons níveis de pressão arterial e sua glicemia tem estado normal. Mesmo recebendo apenas dois diagnósticos médicos, Galileu utiliza continuamente hidroclorotiazida 25 mg/dia, losartana 50 mg 2x/dia, anlodipino 10 mg/noite, AAS 100 mg/dia, sinvastatina 40 mg/noite, metformina 850 mg 3x/dia, omeprazol 20 mg/dia, Alenia® (6+100)mcg 2x/dia e diazepam 10 mg/noite. Eis o outro grande problema na vida do referido senhor: a polifarmácia.


Não por acaso, Galileu vem se queixando de sucessivos episódios de tontura, com exame cardíaco normal e sem nenhum déficit neurológico associado que sugira a hipótese diagnóstica de AVC. Sem saber muito bem o que pensar sobre a tontura de seu paciente, a colega solicitou-me consultoria em relação ao caso.

O problema da polifarmácia, até então, havia passado despercebido por ela, provavelmente não por uma questão de má fé, mas porque os médicos, salvo honrosas exceções, são submetidos a uma formação excessivamente medicalizante. Nesta lógica, para cada problema de saúde existiria pelo menos um tipo de medicamento a ser prescrito. Mas lidar com o processo saúde-doença na vida real revela-nos rapidamente a falácia dessa ideia. Portanto, o paradigma curricular dos cursos de medicina precisa de urgentes mudanças.

A fim de melhor expor o problema da medicalização iatrogênica e de pensar soluções para ele, compartilho aqui algumas considerações sobre o tema. Tais considerações também foram fornecidas, através da consultoria, à médica assistente de Galileu.

No tocante ao caso em pauta, o primeiro aspecto a ser destacado é que tontura e vertigem são queixas comuns no âmbito da clínica geral. Ao abordar os sintomas mencionados no contexto da atenção primária à saúde, o médico deve ter ciência do amplo espectro de diagnósticos diferenciais. Inicialmente, importa diferenciar tontura de vertigem.

Supondo que o sintoma do paciente seja mesmo tontura, parte-se para a investigação complementar, levando em conta as diversas etiologias que podem explicar essa queixa. Entre as causas possíveis estão arritmias cardíacas e efeitos adversos de fármacos, por exemplo, antihipertensivos e benzodiazepínicos, drogas que estão na prescrição continuada fornecida ao senhor Galileu. Ele, a exemplo de inúmeros pacientes, talvez não faça ideia dos males que as referidas substâncias têm potencial para lhe causar.

Também é fundamental voltarmos nossa atenção para o fato de que o senhor Galileu é um idoso octogenário. A pessoa idosa, notadamente aquela com idade bastante avançada, é muito mais vulnerável aos efeitos adversos de medicamentos, especialmente quando estes se encontram em múltiplas associações.

Podemos contar nove fármacos diferentes na prescrição de uso contínuo de Galileu. É um número, sem sombra de dúvidas, excessivo para uma única pessoa, mais ainda para aquelas na terceira idade. Para executar a tarefa de desprescrever ou pelo menos reduzir as doses de alguns dos medicamentos na situação apresentada, estejamos cientes, antes de qualquer outra coisa, que o paciente precisará ser acompanhado regularmente pelo médico. Ademais, tenhamos em mente os seguintes aspectos:

- Aos 87 anos, utilizar AAS profilático costuma trazer bem menos benefícios do que danos, como o risco de sangramento. A aplicação de rastreamentos e tratamentos preventivos no final da vida pode mudar a causa de morte e a doença, mas habitualmente não melhora a qualidade e a quantidade de vida. Lembremo-nos da lei de ferro da epidemiologia: tudo que nasce, morre. E também do princípio hipocrático da medicina: primum non nocere (primeiro não causar dano).

- Idosos não precisam ser submetidos a um controle tão rigoroso da pressão arterial, especialmente da pressão sistólica. Níveis tensionais de 140/80 mmHg, por exemplo, podem ser bastante adequados nessa faixa etária.

- A mesma lógica aplicada aos níveis tensionais, em relação aos idosos, pode ser pensada no tocante aos valores glicêmicos nessa população. Consideremos, ainda, que a metformina é uma excelente opção de hipoglicemiante oral, mas não deve ser utilizada (ou pelo menos deve ter a dose reduzida) em condições clínicas de insuficiência renal. Sabe-se que baixas taxas de filtração glomerular são comuns em pessoas muito idosas.

- Independente do valor do colesterol, estatinas provavelmente são inúteis na prevenção primária de doença cardiovascular. Portanto, não faz sentido prescrevê-las com essa finalidade (em pessoas no fim da vida faz menos sentido ainda!). Além disso, as estatinas provocam diversos efeitos adversos, por exemplo, fadiga e dor muscular, efeitos estes ainda mais pronunciados nos idosos, cujo organismo é mais vulnerável.

- Os inibidores de bomba de prótons (IBP), que têm no omeprazol seu representante mais conhecido, não deveriam ser utilizados de modo contínuo, a não ser em raríssimas exceções. O uso crônico dos IBPs pode provocar gastrite atrófica, entre outros problemas. Salienta-se, no entanto, que sua retirada deve ser gradual, para minimizar os riscos de efeito rebote sobre a mucosa gástrica.

- Por qual motivo o senhor Galileu utiliza corticoide inalatório? A priori, não foi mencionada a presença de quaisquer doenças broncopulmonares que os justificassem. Não é incomum pessoas necessitarem, em certos momentos de suas vidas, determinados medicamentos, e os médicos assistentes simplesmente esquecerem de suspendê-los depois do tempo que, em tese, eles deveriam ter sido utilizados.

- Finalmente, atentemo-nos para a droga que mais necessita ser desprescrita: o benzodiazepínico (diazepam). Esta classe farmacológica, quando utilizada por períodos pouco maiores do que algumas semanas, pode causar síndrome de dependência, além de favorecer quedas, entre outros malefícios, e seu uso crônico está comprovadamente relacionado ao desenvolvimento de demência. Apesar dos pesares, infelizmente é corriqueiro encontrar médicos com a infeliz ideia de iniciar prescrições continuadas de benzodiazepínicos; quando fazem isso a idosos então, trata-se quase de um crime. Também os benzodiazepínicos devem ser retirados gradativamente. Uma boa opção é trocar o diazepam pelo clonazepam, pois este último dispõe de apresentação em gotas, que podem ser reduzidas dia após dia, até a tão almejada suspensão da droga.


Ainda que haja barreiras importantes que tornam o ato de desprescrever mais difícil do que o ato de prescrever medicamentos, os argumentos científicos, éticos e o bom senso são motivos suficientes para que a desprescrição seja incluída na agenda da assistência à saúde das pessoas, sobretudo daquelas com idade avançada, frágeis ou com doenças terminais.

Até o momento da redação deste texto, eu não havia recebido novidades sobre o caso do senhor Galileu, mas estou esperançoso que a colega médica, responsável direta pelos atendimentos a ele nestes dias, esteja disposta a colocar em prática algumas das considerações aqui expostas.

Estou também convencido de que o melhor caminho para auxiliarmos as pessoas a cuidarem da própria saúde é motiva-las a desenvolverem autonomia, considerando, claro, as potencialidades e os recursos individuais, bem como a coletividade ao redor. Tornarmo-nos sujeitos que assumem responsabilidades é prerrogativa para sermos atores principais no palco da vida, e fará com que precisemos cada vez menos da indústria farmacêutica.

Comentários

  1. 1. GØtzche PC. Medicamentos Mortais e Crime Organizado: Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman; 2014
    2. Carvalho CM, Maia M. Tontura e Vertigem. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 1789-1798.
    3. Mangin D, Heath I. Polifarmácia. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 198-204.
    4. Gérvas J, Fernández MP. São e Salvo: E livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016.
    5. Bianchini IM. Hipertensão arterial sistêmica. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 1281-1289.
    6. Ortiz MPA. Insuficiência renal. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 1124-1136.
    7. Souza IKF, Silva AL, Araújo AJ, Santos FCB, Mendonça BPCK. Análise qualitativa das alterações anatomopatológicas na mucosa gástrica decorrentes da terapêutica prolongada com inibidores da bomba de prótons: estudos experimentais X estudos clínicos. ABCD Arq Bras Cir Dig 2013;26(4):328-334. Disponível em URL: http://www.scielo.br/pdf/abcd/v26n4/v26n4a15.pdf (acesso em 05 jul. 2016).
    8. Gage SB, et al. Benzodiazepine use and risk of dementia: prospective population based study. BMJ 2012;345:e6231. doi: 10.1136/bmj.e6231. Disponível em URL: http://www.bmj.com/content/bmj/345/bmj.e6231.full.pdf (acesso em 05 jul. 2016).
    9. Zanoli RA, Dalla MDB. Como desprescrever medicamentos. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 828-835.

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    (acesso em 02 ago. 2016)

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