As dores e as cabeças


Não é pequeno o número de pessoas que sofrem cronicamente com dores de cabeça, também chamadas cefaleias. Boa parte dessas pessoas passam algum tempo livres de tais dores, mas rotineiramente, às vezes mais de uma vez na mesma semana, voltam a senti-las. Esse tipo de cefaleia não costuma decorrer de lesões estruturais intracranianas, ou seja, a cabeça dói, mas não há nada físico que explique a dor; denominam-se assim cefaleias primárias, cujas representantes principais são as enxaquecas (migrâneas) e as cefaleias tensionais.

Quando procuram ajuda médica, a primeira coisa que as pessoas com dores de cabeça querem é receber algo que faça cessar a sensação desagradável, o mais breve possível. Os médicos costumam oferecer-lhes toda sorte de analgésicos e drogas "profiláticas" para a finalidade desejada. Porém, é seguro afirmar que nenhuma dor de cabeça se cura através do uso de medicamentos. Embora muitas vezes necessários, os analgésicos são meros alentos; deve haver clareza que é preciso ir muito além deles, pressupondo que queremos compreender e tratar verdadeiramente o problema em pauta.

Para de fato propiciar um ambiente de cura, proponho partirmos dos seguintes pressupostos: todo sintoma é simbólico (portanto, pode ser interpretado) e toda doença conhecida que se dá para reconhecer é psicossomática (portanto, igualmente, também pode ser interpretada). Dessa forma, as pessoas
não recebem grande ajuda quando seus sintomas são condenados ao exílio da ausência de significado, como ao se tentar apenas suprimi-los através da prescrição de fármacos sintomáticos ou procedimentos afins.

Ainda que num primeiro momento talvez não se perceba sofrimento emocional nas pessoas com queixas somáticas, é verdade que se um sintoma qualquer se apresenta, em algum lugar o inconsciente se desequilibrou. No caso em questão, a desarmonia não consciente ganha voz através da cefaleia. Não houvesse a quebra da harmonia ele, o sintoma, não existiria.

Alguns autores advogam que as dores de cabeça podem revelar pensamentos incorretos, ideias aplicadas indevidamente ou objetivos duvidosos. A cabeça dá o alarme tão logo uma pessoa começa a se preocupar com pensamentos infrutíferos, por exemplo, aqueles que buscam certezas inexistentes. A dúvida é um fato no âmbito da vida material, instância em que não há absolutamente nada garantido como duradouro. 

Sabe-se que a avaliação de pessoas com cefaleia requer, além de investigar o próprio sintoma e/ou doença subjacente (disease), uma investigação apropriada da experiência da pessoa com a dor (illness), que em muitos casos pode ser o motivo principal da consulta com o médico. Não raro, um indivíduo está apenas preocupado sobre a possível causa da cefaleia ser um tumor em seu cérebro. É preciso, pois, dar oportunidade para que as pessoas falem sobre essas coisas.


Assim, na medida em que o paciente com sintoma torna-se sujeito articulador da palavra, sua fala pode ser terapêutica e seu sintoma tende a desaparecer, ao deixar de ter utilidade significante. Técnicas como o método clínico centrado na pessoa e a abordagem familiar são influentes positivos nesse processo, uma vez que permitem a contextualização do sintoma dentro de infinitas possibilidades de interpretação.

A meu ver, entretanto, não há lugar melhor do que a psicanálise para se acessar a subjetividade que deve ser integrada à investigação de qualquer doença, pois a ciência psicanalítica demonstra que os efeitos mais decisivos na história de um sujeito podem ser produzidos por causas não materiais, nem tangíveis, nem aparentemente externas.

O psiquiatra e psicanalista Juan-David Nasio afirma haver duas ordens de determinações fundamentais da realidade: o simbólico e o imaginário. Porquanto palavras e imagens (no sentido psíquico) sejam os dois tipos de causas que produzem efeitos, e um significante seja aquilo que produz um efeito qualquer, entende-se que uma imagem, por mais virtual e passiva que seja, é capaz de transformar o corpo, de matar, ou de fazer nascer um outro corpo. Logo, a realidade efetiva é uma montagem da dimensão imaginária e da dimensão simbólica. Para que haja realidade é preciso que os significantes e as imagens tenham causado danos no sujeito, por exemplo, a percepção desconfortável da cefaleia.

Ainda segundo o referido autor, devemos saber localizar as coisas, porém não isola-las. (...) Um sintoma é não somente formado por deslocamentos e substituições significantes, mas se tornará, assim que produzido, um novo elo entre outros na rede significante, constitutivo de um outro e futuro sintoma. (Compreender) que as formações do inconsciente resultem de uma combinatória e venham a ser absorvidas no processo formador de uma outra (formação), torna-as acessíveis à introdução de novos elos, isto é, à interpretação psicanalista.


Obviamente, existem também dores de cabeça cujas causas são físicas (orgânicas). No entanto, convém sabermos que a esmagadora maioria das cefaleias é primária, ou seja, não provocada por lesões estruturais do sistema nervoso central, mas por bloqueio energético, invisível aos exames de imagem habitualmente disponíveis à clínica médica. Digo isto por ser bastante comum a pressão dos pacientes sobre os médicos para que seja solicitado um exame de imagem do crânio, a fim de “descobrir o que provoca a dor dentro da cabeça”. É o velho paradigma do ver para crer, que frequentemente mantém tantas pessoas em uma ignorância doentia a respeito de si próprias.

Para cogitarmos a necessidade de exames complementares de imagem, devemos levar em conta que as neoplasias intracranianas, a hemorragia subaracnoidea e o hematoma subdural incidem em somente 12 a cada 100.000 pessoas por ano. Sabe-se, ainda, que entre aqueles indivíduos que sofrem com alguma dessas doenças físicas, apenas metade se apresenta com dores de cabeça. Por estas razões, a solicitação rotineira de tomografia computadorizada em pacientes com cefaleia é de benefício duvidoso e de alto custo para o sistema de saúde (ou para o próprio paciente, quando paga diretamente de seu bolso pelo exame), além de incidir radiação não desprezível em quem se submete ao exame.

A atitude mais sensata no tocante à solicitação de exames de imagem durante a investigação de cefaleias não agudas, segundo a American Academy of Neurology, é reserva-los para casos com achado inexplicável e anormal no exame neurológico, casos com características atípicas de dor de cabeça (que não cumpram os critérios diagnósticos de migrânea ou outras cefaleias primárias), ou para pessoas que tenham algum fator de risco adicional, como imunodeficiência. A academia mencionada ressalta que a solicitação de neuroimagem não se justifica em pacientes com migrânea e exame neurológico normal, e, ainda, que não há evidências para orientar a escolha entre ressonância magnética ou tomografia computadorizada na avaliação da migrânea ou de outra dor de cabeça não aguda.
 

Em suma, para as cabeças doídas, o remédio mais efetivo, ainda que não promova resultados imediatos, é a terapia psicológica, que nos permite abrir portas enferrujadas do inconsciente. Liberar os pensamentos dolorosos que ali se encontram, associando ideias livremente, embora soe redundante, é um método libertador, destinado às cabeças pensantes, bem diferente da prisão medicamentosa a que muitos se sujeitam.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. São Paulo: Cultrix; 1983 (17. ed. 2012).
    2. Nasio J-D. Psicossomática: As formações do objeto a. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2012.
    3. Tannus BG. A senhora Pensadora contra a passividade de nossos dias. In: Saúde Integral (blog). 2016. Disponível em URL: http://brunotannus.blogspot.com.br/2016/03/a-senhora-pensadora-contra-passividade.html (acesso em 29 ago. 2016).
    4. Castro RCL, Collares MF. Cefaleia. In: Duncan BB. et al. (org). Medicina ambulatorial: Condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. p. 745-767.
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    (acesso em 30 ago. 2016)

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  2. Bom dia, Bruno, parei aqui por acaso(?). Muito interessante seu ponto de vista. Parecido com o que vimos estudando e desenvolvendo ao longo dos últimos muitos anos. Se vc se interessar, passe os olhos nos capítulos 7 e 8 do Tratado de Medicina de Familia e Comunidade. Quem sabe, podemos trocar ideias e pensar em algum trabalho juntos? abraço Inez Padula - UERJ

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    1. Olá, Professora Maria Inez!
      Sua visita neste blog é para mim literalmente ilustre. Admiro-a muito como profissional, especialmente seu trabalho ao longo dos últimos anos, que tanto contribuiu para o fortalecimento da Medicina de Família e Comunidade no Brasil. Seus textos no Tratado são um belo exemplo do que estou dizendo.
      Os capítulos mencionados por você vão ao encontro das ideias que tenho buscado colocar em prática atualmente, e sobre as quais escrevo aqui. Acredito que a psiconeuroimunologia, o trabalho com a espirutualidade, a abordagem psicoterapêutica pelos médicos de família, o método clínico centrado na pessoa, entre outros temas, estão em perfeita sintonia com a psicossomática e a psicanálise. Ainda tenho muitíssimo que aprender sobre tudo isso, mas são coisas que aprecio muito continuar estudando.
      Seria uma grande honra para mim desenvolver algum trabalho com você. Coloco-me à disposição para compartilharmos ideias e pensarmos nisso juntos.
      Ah, e já que, não por acaso, você visitou o texto sobre cefaleia, convido-lhe para acessar os demais conteúdos do blog (brunotannus.blogspot.com).
      Um abraço.

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