A ilusão dos “check ups” em medicina

À margem de seres humanos mais ou menos equilibrados, há dois tipos de pessoas com comportamentos antagônicos em relação à saúde preventiva: em um dos extremos, indivíduos cujo comportamento é destrutivo, aqueles que pensam pouco ou quase nada acerca dos cuidados com a própria saúde; na outra ponta, pessoas excessivamente preocupadas com prevenção, aquelas que vivem a “buscar saúde”, e que por isto mesmo deixam de tê-la ou de desfruta-la. É sobre o comportamento desse último grupo que pretendo falar neste texto; trata-se de uma atitude que se pretende saudável, mas que se revela doentia quando cuidadosamente analisada.

Refiro-me a algo mais corriqueiro do que a hipocondria, embora possamos apontar diversas semelhanças entre a preocupação excessiva com a saúde e o medo infundado de se estar gravemente doente. Em ambos os casos, os sujeitos almejam ter certeza de que estão bem de saúde. Para cumprir esse objetivo, nos dias atuais, frequentemente o grupo dos preocupados vai ao médico a fim de solicitar-lhe um “check up” ou “exames de rotina”.

Alguns pontos precisam ser esclarecidos sobre exames assim. Primeiro, que não é possível elaborar um protocolo para “exames de rotina”, pois cada indivíduo é único e deve ter sua saúde analisada dentro de um contexto singular. Segundo, que os famosos check ups, embora populares e centenários, correspondem a exames que nunca conseguiram demonstrar cientificamente benefícios reais à saúde de pessoas assintomáticas.

Outro motivo que torna importante o debate acerca do rastreamento de doenças são as intervenções diagnósticas e terapêuticas excessivas, por vezes danosas, além do processo intenso de medicalização social, que podem decorrer dessa prática. O recente reconhecimento da iatrogenia (intervenções médicas prejudiciais) como importante causa de má saúde deu origem, entre os médicos generalistas europeus, ao conceito e à prática da prevenção quaternária, relacionada às ações que atenuam ou evitam as consequências do intervencionismo médico excessivo.

Infelizmente, muitos médicos ainda são responsáveis por solicitações de exames além do sensato, ao desconhecerem os princípios básicos da prevenção quaternária. Noutras situações, já citadas anteriormente, e também nada raras, a demanda por exames “preventivos” parte dos próprios pacientes, imaginando erroneamente que tais exames, quando normais, seriam seu atestado de boa saúde. Vale ressaltar que a normalidade segundo valores de referência de exames laboratoriais, por exemplo, é muito relativa: um paciente pode apresentar resultados de exames nos extremos da faixa normal, ou um pouco além deles, sem que esteja necessariamente doente, e vice-versa.

Da minha prática em consultório percebo que a demanda por check ups está longe de terminar, apesar dos apontamentos acima. Desta forma, convém compreender os princípios do rastreamento, os conceitos da medicina baseada em evidências e a epidemiologia clínica aplicada ao cuidado (prevalência, sensibilidade, especificidade, risco relativo e absoluto e sua redução, valores preditivos dos testes diagnósticos, etc.), que em muito contribuem para a qualificação da atividade clínica preventiva. Em virtude desse necessário conhecimento, a solicitação de exames de rastreamento é ato que compete ao médico, sempre embasado pela avaliação clínica prévia (e não o contrário!).

Então, quando se pensa em exames preventivos, devemos eleger condições e doenças que preencham critérios cientificamente aceitos para rastreamento de doenças, com boa evidência de sua relação custo-efetividade. Existem algumas instituições, internacionalmente reconhecidas e respeitadas, que produzem recomendações acerca de medidas preventivas nos serviços de saúde. Uma dessas instituições é a U. S. Preventive Services Task Force (USPSTF), que busca a imparcialidade na avaliação das tecnologias e condutas, por meio da revisão crítica e sistemática da literatura médica disponível. Há inclusive um aplicativo para smartphones, desenvolvido pela USPSTF, que facilita bastante a identificação de quais exames são relevantes em cada caso, com base em algumas características do paciente.

Posto tudo isso, é interessante repensarmos a questão que motivou o início deste texto, acerca da busca por confirmações a respeito da própria saúde. A saúde ou a doença são estados das pessoas; não por acaso, já se demonstrou em pesquisas que um dos melhores parâmetros para saber se alguém está saudável é sua autoavaliação de saúde. Se a pessoa tem convicção de que está bem de saúde, de pouco ou nada valerão exames de rastreamento. Por outro lado, se a pessoa se sente doente, eis um excelente motivo para consultar o médico. Neste último caso, claro, não cabe falarmos de rastreamento, mas de investigação de doença, com exames complementares direcionados para as hipóteses diagnósticas que o profissional de saúde terá a partir da semiologia bem executada.

Sou favorável sim que as pessoas visitem o consultório de seus médicos periodicamente, mesmo aquelas que se sentem saudáveis. No entanto, acredito que esses encontros clínicos têm muito mais valor quando utilizados para esclarecer dúvidas, falar sobre atitudes e hábitos saudáveis, investigar a presença de marcadores não invasivos de má saúde (por exemplo, hipertensão arterial e obesidade) e, principalmente, conversar sobre a vida, seus percalços e emoções; consultas assim parecem-me bem mais proveitosas do que aquelas que se prestam apenas à solicitação aleatória de exames complementares. A propósito, exames complementares aleatórios são tanto mais inúteis quanto maior a idade da pessoa.

Para concluir esta reflexão, duas mensagens são muito apropriadas. A primeira delas, transcrita do livro São e Salvo: e livre de intervenções médicas desnecessárias, de Gérvas e Fernández, destina-se principalmente às pessoas que exageram na procura por check ups médicos:

É aconselhável procurar ajuda para a doença, mas a saúde é questão pessoal e social, não médica. Na busca de uma segurança impossível (através dos exames de rotina), cede-se soberania sanitária e perde-se saúde. Os “check ups” sugerem a busca de uma saúde impossível, de uma vida sem incertezas e sem riscos. O diagnóstico precoce é usado desesperadamente, e há um medo patológico da doença e da morte, mas o risco nulo ou zero da doença e da morte não existe.

A outra mensagem, transcrita do artigo Tolerating uncertainty – the next medical revolution?, de Simpkin e Schwartzstein, publicado recentemente no New England Journal of Medicine, direciono especialmente aos colegas médicos e estudantes de medicina:

À medida que avançamos pelo século 21, parece claro que a tecnologia desempenhará as tarefas de rotina da medicina para a qual os algoritmos podem ser desenvolvidos. Nosso valor como médicos irá encontrar-se no espaço da escala de cinza, onde devemos apoiar os pacientes que vivem com incerteza - trabalho essencial para relacionamentos fortes e significativos do binômio médico-paciente. Por conseguinte, é fundamental que nos concentremos em prosperar neste espaço e mudar a nossa cultura profissional para permitir a incerteza. Como faculdade, teremos que modelar para nossos alunos a prática da medicina em que é certo ser incerto - talvez lembrando-nos da máxima de Osler de que "a medicina é uma ciência da incerteza e uma arte de probabilidade". Ironicamente, apenas a incerteza é uma coisa certa. A certeza é uma ilusão.

Finalizando este que talvez seja o último texto do ano no blog, desejo saúde de verdade a todos os leitores em 2018! E faço votos para que possamos nos rever em breve.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Brasil. Ministério da Saúde. Rastreamento (Cadernos de Atenção Básica, 29). 1a ed. 1a reimpr. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/rastreamento_caderno_atencao_primaria_n29.pdf [acesso em10 dez 2017].
    2. Stewart et al. Método clínico centrado na pessoa: transformando o método clínico. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
    3. Gérvas J, Fernández MP. São e Salvo: E livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016.
    4. Home. U.S. Preventive Services Task Force. December 2017. Disponível em: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Name/home [acesso em 10 dez 2017].
    5. Simpkin AL, Schwartzstein RM. Tolerating uncertainty – the next medical revolution? N Engl J Med 2016; 375:1713-1715. DOI: 10.1056/NEJMp1606402. Disponível em: http://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMp1606402 [acesso em 09 dez 2017].
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    [acesso em 13 dez 2017]

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