A bela morte

Algo.

Alguma coisa.

Something.

Era o que estava escrito na camiseta com que presenteei meu avô na última noite de Natal. Ele a vestia quando deu seu derradeiro suspiro neste mundo, no final da tarde de 25 de dezembro.

Algo grande significava esse homem, não apenas para mim, mas para toda família e amigos. Alguma coisa quase indizível ele possuía como virtude, uma virtude que não tenho. Era um homem que sabia agregar pessoas à sua volta. E que se regozijava com isso.

Vô Amilson gostava de estudar inglês, no entanto nunca quis viajar para um país em que pudesse ouvir e falar esse idioma. Talvez porque seu desejo de viajar somente fazia sentido para si quando ele podia levar junto quem amava. Era muita gente. Suas casas de descanso, seja na fazenda ou na praia, viviam cheias. Cheias de amor, de vidas, de vida.

Foi avô, foi pai, foi tio, esposo a seu modo. Recentemente também bisavô. Foi médico e professor. Até empregador, e nesta condição admirado pelos funcionários por sua generosidade. Sempre amoroso e sempre atento. Falava pouco, escutava muito.

Sentava-se à mesa do café da manhã antes dos hóspedes em sua casa, pois quando estes acordavam o Vô gostava de estar pronto para dar-lhes toda atenção e certificar-se de que estavam bem tratados e acolhidos. O pão fresco e quentinho ele já buscara cedinho na padaria.

Como médico e professor, um profissional admirável. Estudioso, cuidadoso, metódico numa via saudável. Em quem me espelhei e me espelho, mas de quem ainda sou apenas um reflexo embaçado. Faltam-me qualidades que ele esbanjava, entretanto que não se desenvolvem com livros.

Tive o privilégio de estar ao lado do Vô durante todos os anos de minha vida até aqui. Poderia contar inúmeras histórias sobre ele, mas registrarei hoje apenas uma, bastante ilustrativa do altruísmo desse homem. Em setembro de 2016, já aos 88 anos de idade, teve energia para ir conhecer o novo estádio do Palmeiras, aonde meu alviverde jogaria contra o Flamengo dele. Torcedor aficionado do rubro-negro carioca, por certo ele ficou feliz quando seu time abriu o placar. No entanto, sabendo que eu ficaria triste com o resultado, percebi-o nitidamente satisfeito quando Gabriel Jesus empatou para o Palmeiras.

Posso afirmar que também fui privilegiado por estar ao lado do Vô Amilson em seu leito de morte. Privilégio na morte? Sim, por mais estranho que possa parecer em nossa cultura ocidental, na qual a morte é praticamente um tabu, ainda que seja uma realidade universal.


Se uma morte pode ser bela, a dele foi. Escolheu como, quando e onde partir. Estava em seu lar preferido nestes dias, sua casa de praia, cercado por familiares, sem dor. Uma morte bela certamente pressupõe uma vida bela, repleta de significado, pois o teatro psíquico de cada Eu reproduz-se o tempo todo, inclusive na ultima cena.

Pude orar com meu avô em seus minutos finais. Ele entregou seu espírito ao Pai, mas muito mais do que confessar a Cristo com a boca, Vô Amilson foi um cristão em ato durante sua existência terrena. Amou seus próximos. E foi amado por isso.

As lágrimas que escorrem agora não são pela morte. É o choro da saudade, aquela emoção que um amor assim deixa nas pessoas que ficam e que dele um dia experimentaram.

Amilson Guimarães Tannus (1928 – 2017)

in memorian

Comentários

  1. Imagem inicial da postagem obtida livremente em:
    https://kolaleph.files.wordpress.com/2016/12/wind-07.jpg?w=1200
    [acesso em 28 dez 2017]

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bruno, me deu muita vontade de conhecer seu avô. Quanta felicidade poder ter convivido com alguém tão iluminado. Fique em paz, amigo.

      Excluir
    2. Obrigado, Yumi! Certamente você ficaria encantada se conhecesse o Vô Amilson. Um grande homem, um ser humano raro. =)

      Excluir
  2. Olá Bruno, muita paz!
    Seu avô foi o oftalmologista da minha família por muitos anos. Conhecia-o apenas profissionalmente mas sempre o tive na mais alta consideração. Hoje, do nada, fui pesquisar sobre ele e deparei-me com sua publicação. Que Deus o abençoe e a você também! Abraço! Fred

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fred, obrigado pelo carinho em relação ao Vô Amilson. Este homem estará para sempre no coração daqueles que o conheceram. Muita paz desejo a ti também! Abraço

      Excluir
  3. Bruno, boa tarde. Fiquei emocionada ao ler sua postagem e linda homenagem ao seu avô. Ele foi meu oftalmologista por muitos anos no Instituto São Lucas, durante a minha pré adolescência, juventude e parte da vida adulta.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina