Quando a autonomia do paciente impõe limites (saudáveis) ao médico

Outro dia uma paciente idosa, de 84 anos, apresentou-se ao consultório de uma colega médica para se queixar de cansaço e tosse eventual, pouco produtiva. Ao exame físico, aquela senhora, fumante inveterada, mostrava-se descorada e emagrecida. Isto era suficiente para se cogitar o diagnóstico de câncer de pulmão e tal hipótese fortaleceu-se quando uma tomografia de tórax foi realizada, detectando nódulos pulmonares suspeitos. A partir dali, a investigação confirmatória exigiria exames mais invasivos, como uma broncoscopia. A senhora, no entanto, recusou-se a prosseguir, apesar de a médica ter-lhe sugerido sobre a importância de novos exames. E agora, o que fazer?

Estamos diante de um dilema que ultrapassa as fronteiras do conhecimento objetivo da medicina, corroborando a fala de Cecil G. Helman quando ele diz que a perspectiva por vezes limitada de doença na medicina moderna, com sua ênfase em dados físicos quantificáveis, pode ignorar as várias dimensões dos sentidos – psicológico, moral ou social – que caracterizam a perspectiva da doença pelo paciente e por aqueles que o cercam.

A situação apresentada no início deste texto foi debate de uma consultoria. Respondi à colega que uma escolha ética seria respeitar a autonomia da paciente, desde que ela, como sujeito autônomo, estivesse bem informada sobre a possibilidade de ter desenvolvido câncer de pulmão; e também acerca da necessidade de exames adicionais para confirmar ou refutar tal hipótese.

Havendo ciência por parte daquela senhora, não seria surpreendente que ela escolhesse não investigar a suposta neoplasia, tampouco intervir sobre a eventual doença. Considerando a avançada idade, um câncer de pulmão nas condições referidas seria provavelmente objeto de cuidados paliativos, não curativos. Sensato então seria aguardar a necessidade de tratamento paliativo ocorrer (se é que ocorreria), abrindo mão de submetê-la a procedimentos invasivos, como a broncoscopia, se não fosse do consentimento dela.

Não raro nós médicos somos doutrinados, durante a graduação, a nos posicionarmos, equivocadamente, como detentores de todo o conhecimento sobre a saúde e, portanto, como aqueles que sempre sabem o que é melhor para o paciente. Mas a clínica real revela a complexidade que é lidar com outros seres humanos: demanda-nos capacidade de ver, ouvir, captar e sintonizar a pessoa atendida a partir de suas próprias perspectivas.

Se a patologia é algo que um órgão tem, a perturbação é algo que uma pessoa tem. Perturbar-se é uma resposta subjetiva de alguém ao fato de não estar se sentindo bem. Diz respeito particularmente à forma como esse alguém interpreta a origem e o significado do evento que o acometeu, como afeta seu comportamento e sua relação com as demais pessoas, e os vários passos que seguiria para remediar a situação. Ambos, tanto o significado dado aos sintomas quanto sua resposta emocional, são influenciados pela origem e personalidade de quem os apresenta, bem como pelos contextos cultural, social e econômico nos quais os sintomas se desenvolvem.

Portanto, embora pareça lógico proporcionar ao paciente aquilo que achamos melhor como médicos, com base em nosso saber técnico, faz-se necessário lembrar que ele é outra pessoa, frequentemente com educação e valores diversos dos nossos, não desejando necessariamente a mesma coisa que desejaríamos para nós mesmos. A atitude clínica coerente obriga-nos a aculturarmo-nos, ou seja, mergulhar no caso considerando as condições de vida do paciente, incluindo o meio em que vive, suas relações familiares, crenças e convicções singulares. A partir deste entendimento, encontramo-nos de fato com a pessoa atendida durante a consulta.

Essa pessoa, quase sempre, sabe sobre o que precisa fazer em relação à própria saúde, mas pode simplesmente não conseguir (ou não querer) executar determinada ação. A atitude médica de oferecer e examinar, em conjunto com o paciente, alternativas, ideias e informações, difere da atitude implícita nas sugestões e nos conselhos, que costumam ser inoperantes. Quando nos sentimos muito tentados a sugerir e a aconselhar os pacientes, frequentemente estamos assumindo uma carga indevida de responsabilidade e uma postura paternalista.

Por outro lado, quando o médico trabalha em nível de corresponsabilidade com a pessoa atendida, além de o profissional esforçar-se para entender o que se passa com essa última, assume a postura de colaborar, não de ser o “solucionador”. É o paciente, afinal, quem decidirá se a alternativa, ideia ou esclarecimento oferecido pelo médico fazem sentido para si e podem ser colocados em prática. Neste prisma, o tratamento médico passa a não lidar unicamente com as anormalidades ou disfunções físicas, ou seja, as várias dimensões da doença – emocional, social, comportamental e religiosa – também são abordadas por explicações adequadas, em termos que façam sentido para pacientes e familiares.


O manejo por resolução conjunta implica respeito pelas próprias necessidades e pelas necessidades do outro. Pressupõe trabalho de corresponsabilidade no nível adulto-adulto, em que o poder fica compartilhado. Dá-se ao paciente a oportunidade de opinar, expressar ou escolher aquilo que quer. Isto, claro, sempre que houver possibilidade, não havendo impedimento de ordem técnica (situações de emergência, obviamente, são casos à parte), e desde que a escolha do cliente não entre em conflito com a filosofia de trabalho do médico.

As reflexões acima vão ao encontro do Código de Ética Médica, em seu Capítulo IV, que versa sobre os direitos humanos. O artigo 24 desse capítulo afirma ser vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Para concluir a história do início do texto, depois que a colega e eu conversamos sobre o dilema relacionado ao seguimento daquela paciente, ela, a médica, pôde falar com mais tranquilidade sobre as possibilidades de seguimento, sem impor um caminho. A senhora, então, optou, com consentimento livre e esclarecido, realizar o exame complementar que a investigação demandava. Ainda não sabemos o resultado da broncoscopia, mas sabemos que o ser humano atendido foi respeitado e compreendido como sujeito autônomo. Neste mágico encontro que pode ser a relação entre médico e paciente, a vida tem potencial para se expressar em todos os sentidos, inclusive quando somos capazes de falar naturalmente sobre a morte.



*Dedico este texto ao Dr. Rodrigo Cechelero Bagatelli, que durante minha residência médica foi um mentor sábio e paciente, apresentando-me conceitos que hoje considero essenciais para exercer uma boa medicina.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Helman CG. Cultura, saúde e doença. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2009.
    2. Canella P. Relação médico-cliente. In: Mello Filho J, Burd M. et al. (org). Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 522-545.
    3. Conselho Federal de Medicina. Código de ética médica: resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (versão de bolso). Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2010. Disponível em URL: http://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf (acesso em 13 dez. 2016).
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    (acesso em 22 dez. 2016)

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  2. Esses dias uma mãe acionou a justiça para obrigar o filho a fazer hemodiálise, ele optou por não fazer o tratamento mesmo ciente dos riscos, no entanto penso e se este rapaz estiver depressivo, sua segunda doença não pode atrapalhar seu livre arbítrio, entendo que sim,e se a doença dá qual ele fosse portador causasse dores extenuantes, seríamos mais complacentes com sua condição e aceitaríamos essa espécie de suicídio ? Difícil.

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    1. Recusar-se a submeter-se à hemodiálise, pressupondo que a lucidez esteja preservada, não me parece um ato suicida. Ao contrário, devemos considerar que às vezes a morte é a solução definitiva para um problema premente. Logo, em meio a um sofrimento intolerável devido a uma doença incurável ou situação de vida, a morte pode ser aquilo que melhor atende às necessidades do indivíduo.

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