Intolerantes à lactose ou a algo mais?


A tendência das pessoas em acreditar que a explicação para seus problemas de saúde está fora de si é enorme. Isto, embora seja um equívoco, trata-se de uma condição bastante corriqueira em nossos dias, e faz com que pacientes e médicos se envolvam em uma cascata sem precedentes de preocupações e exames desnecessários, além de tratamentos inapropriados, quando não enganosos. A intolerância à lactose é um ótimo exemplo de álibi para pessoas que buscam apontar um culpado externo para seus desconfortos. Vejamos o que se pode aprender com ela.

Para início de conversa, a lactose não é uma proteína, como muitos pensam erroneamente. Trata-se de um carboidrato (açúcar, em linguagem leiga) encontrado no leite e produzido exclusivamente pelas glândulas mamárias dos mamíferos. Portanto, intolerância à lactose é bem diferente de alergia à proteína do leite de vaca (APLV), embora ambas as entidades clínicas possam representar a não aceitação de algo inconsciente. Voltaremos a falar disso mais adiante.

Antes, convém constatarmos que a intolerância ao carboidrato em pauta é uma condição que pode ser encarada mais como uma carência do organismo do que propriamente como uma doença. Logo, não é a lactose o problema dos intolerantes a ela, mas a forma como o corpo dessas pessoas reage ao referido carboidrato.

Segundo a medicina convencional, a hipótese de intolerância à lactose deve ser considerada em pessoas que se apresentam com dor e distensão abdominal, flatulência e diarreia, especialmente quando a ocorrência de tais sintomas condiciona-se à ingestão de leite e derivados. Um diagnóstico presuntivo de intolerância à lactose, assim, pode ser feito com boa margem de segurança para pessoas que costumam ter sintomas leves após a ingestão de lactose significativa (por exemplo, duas ou mais porções de laticínios por dia) e cujos sintomas se resolvem após cinco a sete dias evitando alimentos contendo tal carboidrato.

Sabe-se que as taxas de má absorção de lactose são baixas em crianças menores de seis anos, aumentando com o passar da idade. Essa dificuldade absortiva é caracterizada por uma falha do intestino delgado em absorver uma fração considerável da lactose ingerida; atribui-se como sua causa mais comum a não persistência da enzima chamada lactase (fundamental à digestão da lactose) nesses indivíduos. Não por acaso, esse problema digestivo aparece a partir da idade em que os filhos deveriam começar a assimilar por si mesmos suas experiências de mundo, deixando a condição de espelho dos pais.

Não há um exame padrão ouro para se definir o diagnóstico de intolerância à lactose. Alguns exames, por exemplo, os testes do hidrogênio expirado e da curva glicêmica, podem ser úteis apenas para fortalecer a suspeita clínica. Devo ressaltar, pois, que um exame complementar positivo para intolerância à lactose não tem significado algum sem que seja confrontado com as queixas do paciente, já que os testes citados, principalmente o da curva glicêmica, não têm sensibilidade e especificidade muito acuradas para firmar o diagnóstico da condição em questão.

Assim, do ponto de vista prático, considero mais sensato e de menor custo o diagnóstico presuntivo de intolerância à lactose. Friso isto porque a demanda de alguns pacientes em realizar exames complementares beira o irracional, mostrando-se perturbados ao ouvirem o médico sugerir que tais exames não servem para grandes coisas.


Exames adicionais são de fato importantes quando o paciente apresenta sintomas severos ou persistentes, a despeito de uma dieta com restrição de lactose, pois outras causas para seus desconfortos deverão ser pesquisadas. As crianças com clínica sugestiva de intolerância à lactose também devem ser avaliadas de forma mais cautelosa quanto a uma possível causa secundária de sua má absorção intestinal.

No tratamento convencional da intolerância à lactose, os pacientes não precisam necessariamente eliminar totalmente a lactose da dieta, mas limitar a ingestão diária a dois copos de leite (ou equivalente em concentração de lactose). Pessoas que, de modo pouco inteligente, decidem ingerir mais de duas porções de produtos lácteos por dia, têm a opção de usar produtos reduzidos em lactose ou suplementos de lactase comprados em farmácias.

Esta me parece uma boa oportunidade para salientar que o leite de vaca, em qualquer quantidade, não é um alimento apropriado para a espécie humana, mas sim para os bezerros. Este fato, por si só, poderia explicar a intolerância à lactose de muita gente, notadamente quando ela ocorre em pessoas que exageram na ingestão de laticínios.

Vale a pena esclarecer, ainda, que suspender o consumo de leite de vaca geralmente não resulta em carência nutricional, uma vez que o cálcio, por exemplo, um de seus principais nutrientes, pode ser obtido através de uma vasta gama de outras fontes alimentares, a saber, verduras de folhas verdes (como brócolis, couve, agrião, espinafre e couve-flor), feijão, ervilhas, tofu, salmão, sardinha, mariscos, amêndoas, nozes, gergelim, alguns temperos (manjericão, orégano, alecrim, salsa) e ovos.

Para além do tratamento convencional, sem a intenção de invalida-lo, se objetivamos exercer uma clínica integral, de cunho psicanalítico, faz-se essencial voltarmos à questão do inconsciente e suas representações através do corpo. Isto implica valorizar a abordagem subjetiva durante a consulta, o que é uma dica conhecida para quem costuma acompanhar este blog.


Com seu problema digestivo, o indivíduo intolerante à lactose demonstra que muito provavelmente também não tolera algo recalcado ou esquecido dentro de si, mas talvez ele ainda se encontre longe de admitir que determinadas situações e pessoas provocaram-lhe desconfortos considerados inadmissíveis até então. A lactose, afinal, serve tão somente como uma teimosa lembrança das verdades difíceis de assimilar e assumir. 

Comentários

  1. Evidências e Referências:
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    As imagens foram obtidas livremente em:
    http://www.medicalnewstoday.com/content/images/articles/296/296564/cow-and-a-jug-of-milk.jpg
    https://epidemicanswers.org/wp-content/uploads/2013/07/milk_carton1.jpg
    http://www.theonlinebeacon.com/wp-content/uploads/2013/04/2013-spring-comic-issue-11-Lactose-intolerance.jpg
    (acesso em 09 dez 2016).

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