Ética médica, benzodiazepínicos e a alienação do sujeito


Dilmara, uma senhora de 54 anos de idade, consumia 12 mg de bromazepam e 4 mg de clonazepam (Rivotril®) diariamente, há 3 anos. Recentemente ela esteve no consultório da doutora Marina, médica nova na cidade, somente para solicitar que a profissional de saúde renovasse as receitas daqueles fármacos, pertencentes à classe dos benzodiazepínicos. Marina, conhecendo diversos prejuízos que podem advir do uso crônico de tais medicamentos, questionou Dilmara por que ela consumia-os há tanto tempo.

A paciente relatou que, por recomendação de um médico anterior, começou a tomar benzodiazepínicos porque estivera deprimida. Atualmente Dilmara não se sentia triste, mas falou à nova médica que precisava deles para “continuar tranquila o dia inteiro”. Quando Marina explicou-lhe os potenciais danos associados ao uso crônico da referida classe de drogas, Dilmara disse achar absurdo um profissional médico considerar não renovar uma receita de uso contínuo. Eis o dilema ético que se apresentou: deveria Marina renovar a receita, simplesmente atendendo à demanda dessa paciente, ou, ciente dos malefícios decorrentes de tal padrão de consumo de benzodiazepínicos, a médica poderia se recusar à emissão da prescrição mencionada?


Trata-se de uma situação corriqueira, que acredito quase todos os médicos trabalhando há algum tempo já tenham vivenciado, e que costuma suscitar conflitos importantes, até mesmo a quebra da relação entre médico e pessoa atendida. Esteja o amigo leitor na condição de médico ou de paciente, convém ressaltar, inicialmente, não ser prudente alterar ou suspender uma prescrição continuada até que ambas as partes cheguem a um acordo sobre a importância disso.

Por outro lado, os pacientes devem ter em mente, antes de exigirem certas coisas dos médicos, que estes profissionais têm o direito, assegurado por lei, de se recusar a realizar atos médicos que ferem os ditames de sua consciência e/ou que não estão cientificamente embasados, por exemplo, a prescrição crônica de benzodiazepínicos. Além disso, nenhum paciente tem o direito de travar com o médico uma relação de mero consumo, como no caso da paciente Dilmara, que buscou a consulta apenas para satisfazer suas necessidades doentias de consumo de psicofármacos.

Vejamos o que nos diz o Código de Ética Médica (com destaques meus):


Capítulo I

Princípios fundamentais

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.

XX - A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo.

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

Capítulo III

Responsabilidade profissional

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Art. 5º Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou.

Capítulo V

Relação com pacientes e familiares

É vedado ao médico:

Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
 


Transcrevi os itens acima selecionados, a partir do Código de Ética Médica, para embasar, com argumentos legais, a conduta profissional do médico que não deseja renovar receitas continuadas de benzodiazepínicos, especialmente quando não foi de sua autoria a infeliz ideia de iniciar a prescrição. Consideremos que está cientificamente comprovado que o consumo de benzodiazepínicos, em médio e longo prazo, provoca danos substanciais às pessoas, além de dependência, bastando poucas semanas para que isso ocorra. Particularmente, exceto em situações de emergência médica, há algum tempo aboli essas drogas de meu receituário; não as recomendo nem mesmo por curtos períodos.

Convém recordar que na década de 1960 os benzodiazepínicos eram prescritos para quase tudo, considerados inofensivos pelos médicos. A história provou o contrário, mostrando que essas drogas causam alta dependência e geram muitos danos, a saber, eventos cognitivos e psicomotores adversos, fadiga diurna, risco de quedas e de acidentes com veículos motorizados, além de aumentarem a chance do desenvolvimento de demência em cerca de 50%. Para piorar, os benzodiazepínicos apresentam tolerância em curto prazo, ou seja, bastam algumas semanas para que deixe de ocorrer boa parte de seus efeitos considerados benéficos, por exemplo, a indução de sono.

Voltando ao caso de nossa personagem Dilmara, presumindo que o diagnóstico de depressão de outrora estivesse correto, certamente o “tratamento” com benzodiazepínicos foi uma prescrição equivocada, uma vez que bromazepam e clonazepam, como os demais pertencentes dessa classe farmacológica, são drogas sedativas, ou seja, depressoras do sistema nervoso central (portanto, deprimem mais!). Além de padecer com a alienação mental causada por esses medicamentos, Dilmara tornou-se quimicamente dependente deles.

Em situações como a descrita, há que se constatar a priori que esse tipo de consumo de benzodiazepínicos corresponde a drogadição. Do contrário, seria improvável tratar adequadamente os indivíduos acometidos pelo referido problema. Muitas vezes essas pessoas não se dão conta de que são dependentes químicos, noutras sequer reconhecem sua própria ignorância sobre o fato. Importa, pois, esclarecer a certos usuários de benzodiazepínicos tal aspecto de sua condição.


O estabelecimento de vínculo adequado, entre o profissional de saúde e a pessoa com dependência química, pode ser considerado o pilar estruturante do tratamento desse tipo de problema. Recomenda-se, portanto, uma abordagem que prime por questionamentos abertos, não confrontativos nem preconceituosos, com conhecimento das técnicas de entrevista motivacional por parte do profissional de saúde. Tal estratégia permite ao usuário de droga (melhor dizendo, a qualquer perfil de paciente) terreno favorável para repensar sua situação, com maior chance de ele próprio, o paciente, optar por alguma mudança de foco, tornando-se sujeito em sua vida. Frisa-se, no tocante aos benzodiazepínicos, ao se optar suspendê-los, o cuidado de não fazer isso abruptamente, a fim de evitar crises de abstinência.

Para concluir este texto, considero essencial uma breve reflexão sobre o consumo de psicofármacos frente aos problemas de saúde mental. Já abordei o tema de modo mais detalhado na webpalestra A saúde mental além dos psicofármacos, mas ressalto aqui pontos cruciais, particularmente por estarmos falando a respeito de drogas que estão entre as mais vendidas do mundo. O que esperar de uma sociedade que consome tantos benzodiazepínicos e antidepressivos, não raro em combinação com outras drogas psicotrópicas?

Eis algumas pistas. Parecem-me condições desastrosas a medicalização da vida e a polifarmácia, notadamente no âmbito da psiquiatria (salvo exceções em que se depara com psicopatologias graves). Elas representam com precisão o árido deserto para o qual a saúde mental foi levada pelo enfoque estritamente biomédico e cartesiano. Um lugar em que a alienação mental se perpetua com as vãs tentativas em se obter uma objetividade daquilo que jamais será objetivo: a subjetividade do sujeito.

Essa triste situação de crise na psiquiatria faz com que as características singulares e a escuta do paciente em sua dimensão específica de sujeito fiquem impedidas de desempenhar algum papel efetivo na compreensão e no manejo do fenômeno psicopatológico enquanto tal. Inclusive, alguns pacientes tornam-se tão alienados que julgam estar bem consigo e com os outros, embora, contraditoriamente, não consigam parar de tomar certos psicofármacos e afirmem precisar deles para ficarem tranquilos o dia inteiro... Acaso seria viável e saudável “ficar tranquilo o dia inteiro”?


O plano psicopatológico do padecimento psíquico é justamente aquele que se acessa e se trata recorrendo ao registro da subjetividade do indivíduo, à contextualização linguística e histórico-cultural das manifestações clínicas. Uma nosografia psiquiátrica segundo um jogo de linguagem exclusivamente biomédico, que encontra nos psicofármacos o maior exemplo de elixir para a recusa da dor de existir, negligencia exatamente o plano psicopatológico do adoecimento. É altamente improvável, portanto, qualquer pessoa melhorar sua condição psíquica valendo-se apenas da via reducionista da farmacologia psiquiátrica.

Sugiro, pois, em benefício de pessoas como a sra. Dilmara, que profissionais de saúde e pacientes valorizem ferramentas que permitam compreender e acessar de modo mais integral os problemas de saúde. Alguns recursos, como o método clínico centrado na pessoa, possibilitam isso até mesmo àqueles médicos que ainda têm pouca prática na abordagem subjetiva das doenças. As pessoas precisam falar para se curar, e refiro-me aqui à fala em sua multiplicidade de símbolos culturais, incluindo as manifestações artísticas. S
omos reconhecidos como sujeitos e percebidos como seres humanos justamente através das sinceras palavras e expressões externadas, ainda que por vezes elas devam revelar também nossas sombras.

*Dilmara e Marina são nomes fictícios; qualquer semelhança com alguma realidade é mera coincidência. Você, amigo leitor, sinta-se livre para decidir como gostaria que terminasse a história dessas personagens.

 

Comentários

  1. Evidências e Referências:
    1. Sordi AO, von Diemen L, Kessler FHP, Pechansky F. Drogas: Uso, Abuso e Dependência. In: Duncan BB. et al. (org). Medicina ambulatorial: Condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. p. 1162-1178.
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