Colesterol: da histeria coletiva às bases de um negócio bilionário

Uma colega de profissão solicitou-me a indicação de artigo ou texto sobre dislipidemias (problema popularmente conhecido como colesterol alto), a fim de que ela pudesse se atualizar no assunto. Disse-me que o último texto por ela lido acerca do tema fora a IV Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Respondi que eu poderia indicar-lhe a quinta diretriz, já publicada, mas que não o faria, pois entendo que, semelhantemente às diretrizes que a precederam, houve financiamento da indústria farmacêutica; portanto, caso a colega optasse por lê-la, sugeri que mantivesse aguçado senso crítico aos conflitos de interesse escusos ali presentes.

Como alternativa, recomendei-lhe dois livros, recentemente traduzidos para o português, os quais lhe proporcionariam uma visão mais clara e imparcial sobre o colesterol alto, entre outros temas. São e Salvo: E livre de intervenções médicas desnecessárias (de autoria de Juan Gérvas e Mercedes Pérez Fernández) e Medicamentos Mortais e Crime Organizado: Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica (de autoria de Peter C. GØtzche) são os livros aos quais me referi, ambos utilizados na elaboração deste texto que se inicia.

O principal objetivo de publicações como a V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose é alimentar a venda de estatinas (remédios que reduzem o colesterol), embora o discurso que prevaleça ali seja o da preocupação em melhorar a saúde dos “pacientes”. Não nos deixemos enganar por tais diretrizes. Elas transformaram pessoas saudáveis em pacientes e tornaram as estatinas um mercado bilionário, apesar de tais fármacos, em realidade, não exercerem benefícios significativos na prevenção primária das doenças cardiovasculares.

Uma prova de que a diretriz é tendenciosa é o fato de encontrarmos um anúncio gigante do medicamento Vytorin® (ezetimiba/sinvastatina), redutor de colesterol, logo na segunda página da publicação. É bom que se diga que mesmo sites de revisões científicas mais convencionais, como o UpToDate, sugerem que 
não seja prescrito nenhum outro medicamento para redução de lipídeos em indivíduos que não toleram estatinas (quando se optou por medicar essas pessoas para a prevenção primária de doença cardiovascular).

Logo, o ezetimiba, composto hipolipemiante do Vytorin® não pertencente à classe das estatinas, não deveria ser recomendado (e a sinvastatina sozinha é muito mais barata). A propaganda que nos dá as “boas vindas” à quinta diretriz é, pois, praticamente uma piada. Não a considerarei algo jocoso porque, além de o ezetimiba não ser benéfico, é provável que seus consumidores sofram com efeitos adversos dessa droga e gastem muito dinheiro sem necessidade (sabem quanto custa uma caixinha de Vytorin®?). Estas considerações, sem dúvida, não são nada engraçadas, especialmente quando atreladas a algo que, em tese, prezaria pela saúde das pessoas.

Quem lê as conclusões dos autores de uma recente revisão da Cochrane sobre a prevenção primária de doença cardiovascular através do uso de estatinas pode ficar maravilhado com o poder aparentemente atribuído a esses medicamentos. Segundo tal revisão, o consumo de estatinas reduziria a mortalidade por QUALQUER causa e diminuiria a incidência de grandes eventos vasculares e revascularizações. E mais, tamanhos benefícios foram encontrados sem a ocorrência excessiva de eventos adversos entre as pessoas que não tinham evidência de doença cardiovascular e que foram “tratadas” com estatinas. Em vez de ficar maravilhado, prefiro ver com perplexidade e desconfiança tais achados. Explico a seguir os porquês.

Seria mesmo possível para as estatinas reduzir quedas, lesões, infecções, queimaduras, acidentes de trânsito e problemas dentários, além de ataques cardíacos, como sugerem as conclusões mencionadas no parágrafo anterior? Segundo Gérvas e Fernández, aplicando a navalha de Occam (o princípio da parcimônia, a preferência pela explicação mais simples e completa) e aceitando a hipótese mais lógica e que explica o conjunto dos resultados, o benefício das estatinas é apenas aparente e se deve ao viés introduzido (no estudo citado) pela melhor saúde e hábitos mais saudáveis daqueles que melhor atendem ao tratamento. Ou seja, os achados positivos não podem ser atribuídos às estatinas, mas aos comportamentos e condições gerais mais saudáveis das pessoas que obtiveram melhores desfechos. Esse modo de ser e de agir, por certo, também reduz o risco cardiovascular, de modo que tal redução não possa ser atribuída ao consumo de estatinas.

Por falar em risco cardiovascular, tomar a decisão de medicar alguém saudável com estatina, baseando-se nesse risco, não é uma conduta apropriada. Atualmente muitas pessoas, 
sem histórico de evento cardiovascular prévio, são rotuladas como possuidoras de alto risco cardiovascular através de tabelas de risco. Este tipo de tabela é sustentado por um conceito intelectualmente atraente e aparentemente muito prático, ao afirmar que por meio de variáveis simples poder-se-ia prever quais pessoas teriam doença cardiovascular em um futuro próximo e, assim, ajuda-las com estatinas antes que o pior lhes aconteça.

A verdade, porém, é que as tais tabelas de risco cardiovascular baseiam-se eminentemente em dados biológicos como sexo, idade, tabagismo, presença de hipertensão, diabetes e níveis de colesterol, mas não fazem nenhuma referência a características socioeconômicas, educação, classe social, tipo de ocupação ou desemprego. Hoje sabemos que ataques cardíacos são mais comuns entre os pobres e desempregados, motivo que deveria ser suficiente para reconhecermos a importância dessas últimas variáveis sobre o risco cardiovascular. Ademais, as tabelas mencionadas estimam risco, mas não há conhecimento científico que apoie usa-las como tabelas de decisão.


Vale lembrar que o colesterol é um componente essencial da matéria viva. Ele é uma gordura (lipídeo) presente na parede de todas as células, incluindo os neurônios do sistema nervoso central, onde o colesterol é fundamental para praticamente todas as funções desse sistema. Logo, sem colesterol, não há vida. No entanto, desde os anos 40 do século passado, a partir de estudos realizados na cidade norte-americana de Framingham, demonstrou-se uma associação estatística entre os níveis sanguíneos de lipídeos (especialmente colesterol) e a ocorrência de doença cardiovascular. Isto foi o estopim para uma histeria coletiva de combate ao colesterol que dura até a atualidade e parece ganhar novos adeptos a cada dia. Neste cenário, o lançamento no mercado das drogas hipolipemiantes, a partir da década de 70, mostrou-se um negócio de altíssima rentabilidade para a indústria farmacêutica, tornando-as as medicações mais vendidas no mundo.

Entretanto, um fator de risco, como o colesterol alto, nada mais é do que uma associação estatística. Como qualquer fator estatisticamente associado a determinada doença, habitualmente os fatores de risco não são necessários nem suficientes para ocasiona-la. Esta afirmação pode ser comprovada quando se observa que muitas pessoas têm colesterol elevado e não sofrem infarto do miocárdio, enquanto outras o sofrem mesmo com níveis normais de colesterol. Fator de risco, portanto, não é causa de doença. Isto deve ficar bem claro, tanto para médicos quanto para as pessoas que nos procuram em consultas.

Embora pareça redundância, a hipótese lipídica é apenas uma hipótese. Tal hipótese transformou em “problema” aquilo que antes era tão somente uma associação estatística (níveis elevados de colesterol LDL e doença cardiovascular), e tem sido utilizada para justificar tratamentos dietéticos e farmacológicos para reduzir o colesterol. Estas medidas mostram-se verdadeiramente úteis para pacientes que já foram acometidos pela doença coronariana (ou seja, na prevenção secundária), mas têm pouquíssima ou nenhuma utilidade para pessoas saudáveis.


Por outro lado, em seus guias e protocolos, quanto mais as “autoridades científicas” no assunto dislipidemias modificam para baixo os níveis de colesterol considerados normais, mais “doentes” hão de ser submetidos às estatinas e mais lucros a indústria farmacêutica obterá desse grande negócio. 

A considerar o prolongamento deste texto, não me deterei em explicar os potenciais efeitos adversos relacionados ao uso de estatinas, mas é fato que eles existem, por exemplo, a fadiga e a dor muscular; alguns efeitos, como a rabdomiólise (lesão muscular), embora raros, podem ser graves e até mesmo fatais.

Para concluir, valho-me novamente das palavras do doutor Juan Gérvas e sua digníssima esposa, a doutora Mercedes Pérez Fernández: para reduzir a chance de ter um infarto agudo do miocárdio o melhor é parar de fumar e levar uma vida que desfrute do trabalho, do sexo, do amor, da família e dos amigos, da dieta ao estilo mediterrâneo e da prática esportiva que se gosta. E, entendendo que na perspectiva psicossomática o infarto do coração seria a manifestação extrema de uma emoção inconsciente que não mais pôde ser suportada pelo indivíduo, considero também importante, como ação profilática, que as pessoas expressem seus sentimentos, falem sobre suas dificuldades psíquicas.


Claro, já sabemos que melhores condições socioeconômicas são também fundamentais para que as pessoas gozem de melhor saúde, então não sejamos ingênuos em desconsiderar os determinantes sociais das doenças. A partir desta compreensão, assumamos nossos papéis na construção de uma sociedade mais justa, cada qual atuando com seus dons, habilidades e competências singulares em prol da totalidade, da qual, a rigor, todos somos parte. Saúde individual é mera ilusão, mas muitos insistem toma-la como verdade para si; assim, permanecem doentes, dosem ou não seus níveis de colesterol.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Gérvas J, Fernández MP. São e Salvo: E livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016.
    2. GØtzche PC. Medicamentos Mortais e Crime Organizado: Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman; 2014.
    3. Sociedade Brasileira de Cardiologia. V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Arq Bras Cardiol. 2013. doi: 10.5935/abc.2013S010. Disponível em URL: http://www.sbpc.org.br/upload/conteudo/V_Diretriz_Brasileira_de_Dislipidemias.pdf (acesso em 22 jun. 2016).
    4. Pignone M. Treatment of lipids (including hypercholesterolemia) in primary prevention. UpToDate. 2016. Disponível em URL: http://www.uptodate.com/contents/treatment-of-lipids-including-hypercholesterolemia-in-primary-prevention (acesso em 22 jun. 2016). Registration and login are necessary.
    5. Taylor F, et al. Statins for the primary prevention of cardiovascular disease. Cochrane Database Syst Rev. 2013 Jan 31;(1):CD004816. doi: 10.1002/14651858.CD004816.pub5. Disponível em URL: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23440795 (acesso em 22 jun. 2016).
    6. Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. São Paulo: Cultrix; 1983 (17. ed. 2012).
    -------------------------------
    As imagens foram obtidas livremente em:
    http://www.prevention.com/sites/prevention.com/files/images/articles/featured_images/heart-olive-oil-628x363-TS-163749176.jpg
    https://adrianabalancieri.files.wordpress.com/2008/08/colesterol.jpg
    (acesso em 23 jun 2016)

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    1. Também foi obtida livremente a imagem disponível em:
      http://a57.foxnews.com/media2.foxnews.com/thumbnails/i/092913/0/0/092913_SHC_Statins_640.jpg?ve=1
      (acesso em 24 jun. 2016)

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  2. muito interessante teu texto, Bruno. vou ler os livros que indicaste.
    sou estudante de medicina e tenho tido grande interesse em MFC.
    Sendo de uma escola feita eminentemente por especialistas, fico receoso pela opção MCF por medo de não ter uma formação científica sólida. (preconceito que vem da conversa com colegas e professores que pouco conhecem MCF, metodo clinico centrado na pessoa etc etc).
    Teu texto me mostra que MCF está crescendo em nosso país e tem excelentes perspectivas futuras.
    obrigado
    alexandre

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    1. Caro Alexandre,
      Arrisco dizer que, entre todas as especialidades médicas, a Medicina de Família e Comunidade (MFC) é a mais científica, resguardando o devido respeito aos colegas que preferem focar em partes do corpo humano. Digo isso porque a MFC talvez seja a única, como especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, que consegue transitar saudavelmente entre a objetividade e a subjetividade, promovendo a união entre essas polaridades, algo tão importante para as pessoas que nos procuram solicitando ajuda (nunca vi um órgão sozinho chegar me pedindo ajuda no consultório).
      Muitos desavisados pelo caminho vão te dizer que a ciência somente pode ser feita daquilo que é objetivável. Estão enganados, notoriamente quando o tópico em questão é saúde, cujo conceito passa longe das ciências objetivas.
      Fiquei curioso em saber o local em que você está cursando medicina. Conte-me quando puder.
      Obrigado por prestigiar este blog.
      Abraços

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  3. Opa, mal a demora.
    Sou da Escola Paulista de Medicina, hoje mais conhecida como UNIFESP.
    é uma escola tradicionalmente forte em clínica médica, mas ainda no viés biomédico.
    Tive algumas experiências de intercâmbio como em Portugal, Inglaterra e EUA, de onde saíram muitas boas reflexões- sobre mcf inclusive rs rs.
    Recentemente fi um estágio em Alter do Chão, oeste do Pará, (sou de Belém originalmente), onde vi quão resolutivo (e nada monótono) é uma ubs com mfc bem formado. Conversei com as médicas de lá, que haviam feito residencia na usp, e me recomendaram estagiar ou conhecer a residência de floripa. Foi essa que vc fez Bruno? recomenda? se nao for te atrapalhar, vou te mandar várias dúvidas que eu tenho sobre mcf rs rs. grande abraco

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    1. Não atrapalha se você enviar suas dúvidas, Alexandre. Ao contrário, será um prazer se eu puder auxilia-lo na escolha pela MFC! Sugiro, no entanto, que você entre em contato pelo meu e-mail (brunotannus@yahoo.com.br), pois assim poderei responder com mais agilidade do que escrevendo aqui nos comentários do blog.
      Fiz minha residência na PUC-PR, em Curitiba, mas conheço bem a residência de Floripa (inclusive faço preceptoria de um dos estágios hospitalares dela). Posso afirmar com segurança que ela está muito bem organizada e proporciona excelente formação na área.
      Muito rica a sua experiência até aqui. Legal demais saber que alunos de uma escola tradicional, mas muito bem conceituada, como a UNIFESP, estão se interessando pela MFC.
      Grande abraço

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