A gripe e seus mitos

O inverno vem chegando... E a estação fria traz consigo um enredo que alimenta muita gente com preocupações algo demasiadas sobre a gripe, especialmente no tocante ao uso de medicamentos e vacinas contra essa infecção virótica.

Comecemos a pensar pela seguinte questão: gripe mata? Sim, gripe provocada pelo vírus influenza (em seus diversos subtipos, incluso o H1N1) pode matar, mas isto ocorre em um pequeno percentual, pouco maior que 1% dos casos. Este número é facilmente comprovável. Basta você, caro leitor, recordar quantas pessoas conhece que faleceram por gripe. Provavelmente você se lembrará de pessoas que morreram de infarto do coração, AVC, câncer, acidentes de trânsito, homicídios ou até por outros tipos de infecções que não a gripe, mas terá dificuldade de identificar alguém que morreu de gripe, pois isto é um evento raro.

No entanto, forças “ocultas” (nem tão ocultas assim) querem fazer-nos crer que a gripe é um grande perigo. Querem vender-nos um medicamento chamado oseltamivir (vulgo Tamiflu), o qual seria essencial para quem está com gripe. E também querem que acreditemos na importância da vacina contra a gripe para prevenção.

Nosso Ministério da Saúde comprou as ideias de logo acima. E as comprou com força, ou melhor, com muito dinheiro do contribuinte, direcionando energia e recursos, já bastante escassos, para o “combate” à gripe, como se ela de fato fosse uma assombrosa vilã.

Para justificar seus gastos, o referido órgão governamental criou um fluxograma com recomendações expressas aos médicos: durante um quadro clínico compatível com síndrome gripal aguda, independente da presença de sinais de gravidade e do status vacinal, a prescrição de oseltamivir deveria ser feita a todas as pessoas com fatores de risco ou com sinais de piora do quadro clínico. Posso dizer, sem medo de errar, que muitos médicos desconhecem que essas recomendações carecem de embasamento científico consistente.

Falaremos da carência de evidências científicas mais adiante. Antes, vejamos a definição do próprio Ministério da Saúde de síndrome gripal aguda: na ausência de outro diagnóstico específico, ela deve ser considerada para o paciente que se apresenta com febre, de início súbito, mesmo que referida, acompanhada de tosse ou dor de garganta, e dor muscular, dor de cabeça ou dor nas articulações (destes três últimos sintomas basta a presença de um). Em crianças com menos de 2 anos de idade recomenda-se considerar síndrome gripal aguda, também na ausência de outro diagnóstico específico, naquelas que se apresentam com febre de início súbito, mesmo que referida, e os seguintes sintomas respiratórios: tosse, coriza e obstrução nasal.

Segundo a definição expressa acima, qualquer resfriadinho será uma síndrome gripal aguda. Considerando também a ampla gama de situações que o Ministério da Saúde enquadra como fatores de risco na gripe em seu fluxograma, podemos concluir facilmente que muita gente (muita mesmo!) recebe a prescrição de oseltamivir. Entretanto, o que de fato se sabe sobre essa medicação (e também sobre seu semelhante denominado zanamivir) é que seus benefícios são irrisórios e, como qualquer outro fármaco, efeitos adversos são possíveis secundários a seu uso.

Em estudos de profilaxia com o oseltamivir, comprovou-se que ele reduz a proporção de influenza sintomática. Em estudos de tratamento o oseltamivir mostrou-se capaz de reduzir, não mais que modestamente, o tempo necessário para obtenção do alívio dos sintomas gripais; ressalto, no entanto, que tal alívio, além de modesto, ao paciente pode custar outros sintomas, por exemplo, nauseas e vômitos, bem como aumentar o risco de dores de cabeça e síndromes psiquiátricas e renais.

A evidência de que o oseltamivir tenha efeitos clinicamente significativos sobre complicações e transmissão viral é limitada. Saliento novamente que são raros os eventos de complicações relacionados ao vírus da gripe e, ainda, que há problemas nos desenhos metodológicos dos estudos dessa medicação. Deste modo, o balanço entre os eventuais benefícios e os danos deveria ser considerado para que se utilize o oseltamivir, seja para tratamento, profilaxia ou estocagem. 


Uma revisão conduzida pela Cochrane e pelo British Medical Journal (BMJ) recomenda claramente que sejam revistas as orientações sobre o uso de ambos os inibidores da neuraminidase (oseltamivir e zanamivir), na prevenção ou no tratamento da gripe, levando em conta a evidência de pequeno benefício e maior risco de danos pelo uso dessas drogas. Parece-me, portanto, que a recomendação do Ministério da Saúde brasileiro sobre esses medicamentos de "quando indicado, iniciar mesmo na suspeita clínica", é exagerada e tendenciosa.

E o que dizer da vacina contra a gripe? Um artigo do BMJ, lá pelos idos de 2013, intitulado “Influenza: marketing vaccine by marketing disease” (traduzindo: propaganda de vacina pela propaganda da doença) já nos alertava sobre a promoção inadvertida de vacinas contra a gripe, mostrando que o alarde infeliz sobre o vírus influenza não é uma particularidade do Brasil. Transcrevo a seguir o trecho inicial do artigo mencionado:

A promoção de vacinas contra a gripe é uma das mais visíveis e agressivas políticas de saúde pública hoje. Vinte anos atrás, em 1990, 32 milhões de doses de vacina contra a gripe estavam disponíveis nos Estados Unidos. Hoje, cerca de 135 milhões de doses de vacina contra a gripe entram anualmente no mercado americano, com vacinas administradas em farmácias, supermercados ou mesmo em alguns "drive-throughs".

Esse enorme crescimento não tem sido alimentado pela demanda popular, mas por uma campanha de saúde pública que traz a seguinte mensagem: a gripe é uma doença grave, estamos todos em risco de complicações da gripe, a vacina contra a gripe é virtualmente livre de risco e a vacinação salva vidas. Através desta lente, a falta de disponibilidade da vacina da gripe para todos os 315 milhões de cidadãos norte-americanos pareceria beirar o antiético. No entanto, em todo o país, o que se viu foi surgirem políticas obrigatórias de vacinação contra influenza, sobretudo nas unidades de saúde, precisamente porque nem todo mundo quer a vacinação, então o método compulsório pareceu ser a única maneira de alcançar altas taxas de vacinados.

Um exame mais detalhado das políticas de vacinação da gripe mostra que, embora os proponentes empreguem a retórica da ciência, os estudos subjacentes a tais políticas são muitas vezes de baixa qualidade, e não fundamentam as alegações daqueles que defendem a vacinação em massa. A vacina pode ser menos benéfica e menos segura do que tem sido afirmado, e a ameaça da gripe parece exagerada.


Defendo, com este texto, que as pessoas, profissionais de saúde ou não, atentem-se e sejam críticas frente aos ataques da mídia, e do próprio Ministério da Saúde, incitando a prescrição de oseltamivir e a vacinação anual contra a gripe. Ambas as recomendações estão baseadas no que podemos chamar de junk science, em interesses comerciais e na corrupção desenfreada disseminada também entre aqueles que pretendem denominar-se “autoridades científicas”.

Recordo, ainda, que as melhores medidas preventivas contra a gripe são a limpeza das mãos e a manutenção de um sistema imunológico funcional, algo que está atrelado a bom sono, harmonia da energia mental, alimentação equilibrada e atividade física regular, entre outras práticas saudáveis. Práticas estas que, vale informar, não incluem tomar vitamina C em cápsulas ou comprimidos, haja vista tal medida não apresentar benefícios comprovados na prevenção da gripe.

Se a gripe pegar, não tema. Afinal, ela é uma doença autolimitada na maioria das vezes, ou seja, da qual seu organismo curar-se-á em poucos dias. Caso julgue necessário, vá até seu médico para que ele avalie se você pode ou não estar com um quadro clínico grave, situação que sabemos ser rara. 


Para o tratamento, as melhores medidas continuam sendo as já conhecidas desde os tempos da vovó: repouso relativo, aumento da ingestão hídrica e chás caseiros, além de medicamentos para alívio sintomático, especialmente soluções fisiológicas nasais e comprimidos analgésicos, estes sempre utilizados com parcimônia e pelo menor período necessário. Evite descongestionantes nasais com vasoconstritores, substâncias presentes na maioria dos “combos antigripais” vendidos de forma livre e imprudente nas farmácias.


Comentários

  1. Evidências e Referências:
    1. Brasil. Ministério da Saúde. Síndrome Gripal/SRAG: Classificação de risco e manejo do paciente. 2013. Disponível em URL: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/cartazes/sindrome_gripal_classificacao_risco_manejo.pdf (acesso em 07 mai. 2016).
    2. Jefferson T, Jones M, Doshi P, Spencer EA, Onakpoya I, Heneghan CJ. Oseltamivir for influenza in adults and children: systematic review of clinical study reports and summary of regulatory comments. BMJ 2014;348:g2545. Disponível em URL: http://www.bmj.com/content/bmj/348/bmj.g2545.full.pdf (acesso em 07 mai. 2016).
    3. Archive of the old Cochrane Community site. Tamiflu & Relenza: how effective are they? 2014. Disponível em URL: http://community-archive.cochrane.org/features/tamiflu-relenza-how-effective-are-they (acesso em 07 mai. 2016).
    4. Doshi P. Influenza: marketing vaccine by marketing disease. BMJ 2013;346:f3037. Disponível em URL: http://www.bmj.com/content/346/bmj.f3037 (acesso em 05 jun. 2016).

    As imagens da postagem foram obtidas livremente em:
    http://www.geekpause.com/upload/2015/07/cold-is-just-the-absense-of-heat.jpg
    http://www.remedio-caseiro.com/wp-content/uploads/2011/11/tratamento-contra-gripe.jpg
    http://www.bioquell.com/files/8314/1113/2099/Microbiology_420x420_Influenza_virus_2008765.jpg
    (acesso em 06 jun.2016)

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