O lado obscuro do outubro rosa

A mamografia de rastreamento para câncer de mama é um procedimento radiológico executado em mulheres assintomáticas e com exame clínico das mamas dentro do que se considera normal. Estas mulheres, especialmente no mês de outubro, são bombardeadas com a campanha de “combate ao câncer de mama”, a qual, não raro, impregna o senso comum com a crença de que a mamografia seria a solução para essa doença. Neste artigo pretendo convidar os leitores, particularmente mulheres alvo da referida campanha, a uma breve reflexão sobre o tema, com informações relevantes antes de tomarem uma decisão automática de se pintarem com a cor rosa.

Sem me aprofundar desta vez sobre a questão de que combater qualquer doença é algo suicida a priori, no tocante aos exames preventivos de rastreamento para cânceres penso que individualizar as situações seja a opção mais desejável, racional e sensata, explicando abertamente aos pacientes sobre as incertezas científicas relativas ao rastreio, seja do câncer de mama ou de outras neoplasias. Possibilita-se, assim, um cenário de decisões compartilhadas que não se prendam aos manuais, mas que sejam consonantes ao desejo de cada pessoa, após estar bem informada.

Quero ressaltar aqui que a solicitação exagerada de mamografias, além de não ser benéfica, aumenta a probabilidade de resultar em danos à saúde das mulheres, notadamente elevando os índices do chamado excesso de diagnóstico. Este, por sua vez, habitualmente resulta em sensação de adoecimento e intervenções cirúrgicas desnecessárias não isentas de riscos ou até de mutilações. Além disso, não é desprezível a radiação que a mamografia faz incindir sobre muitas mamas saudáveis...

Porém, muitos colegas médicos, especialmente alguns ginecologistas, amparados pelo outubro rosa, mas não pelas melhores evidências científicas disponíveis, ainda recomendam anualmente a mamografia de rastreamento para suas pacientes, muitas vezes sem propiciar a elas um espaço adequado para conhecerem a outra face do rastreamento desenfreado do câncer de mama.

Quando se fala em rastreamentos é importante lembrar que rastrear uma doença significa buscar diagnostica-la antes que a mesma provoque prejuízos à saúde do indivíduo que se submete ao rastreamento; este processo também pode ser chamado de screening. Deve haver clareza que tal procedimento não impede a ocorrência da doença rastreada. Ainda, se uma pessoa já apresenta sintomas, não cabe usar o termo rastreamento, mas sim investigação diagnóstica.

A maioria das doenças não se enquadra como viável para rastreamento, pois, para se decidir quanto à viabilidade ou não dessa prática, há que se levar em conta uma gama de fatores. O primeiro deles, já mencionado acima, é a possibilidade de diagnosticar a doença antes do surgimento de sintomas a ela atribuíveis. Também deve ser necessário que o processo de screening não ofereça muito risco ou desconforto ao paciente e que seus eventuais benefícios superem seus potenciais danos. Finalmente, espera-se que o rastreamento tenha custo acessível, boa relação custo-efetividade e esteja embasado em evidências científicas, as quais demonstrem que, uma vez efetuado o precoce diagnóstico da doença, exista um tratamento disponível e capaz de modificar positivamente sua evolução.

No Brasil, as recomendações atuais do Ministério da Saúde acerca do rastreamento de câncer de mama são as seguintes:

- Mamografia bianual para mulheres entre 50 e 74 anos (grau de recomendação B);

- A decisão de começar o rastreamento bianual com mamografias antes dos 50 anos deve ser individualizada, levando em consideração o contexto da paciente, os benefícios e os malefícios (grau de recomendação C).


Entretanto, o próprio Ministério da Saúde reconhece que os critérios para rastreamento são alvo de permanente debate na comunidade científica, tendo em vista a necessidade de se definir o uso mais adequado dos recursos para o alcance dos melhores resultados possíveis. Na análise dos benefícios das estratégias de rastreamento, é preciso identificar o impacto do rastreamento na redução da mortalidade e na diminuição da morbidade referentes à doença que se almeja diagnosticar precocemente.

Analisando os malefícios, cabe considerar, tomando como exemplo a neoplasia em pauta, o número de mortes por câncer de mama induzido por radiação (proveniente da exposição mamária durante os exames) e a taxa de resultados falso-positivos (que implicam mais exames complementares e maior ansiedade nas mulheres), além dos excessos de diagnóstico (overdiagnosis) e de tratamento (overtreatment) já mencionados, pois muitas lesões malignas de comportamento indolente são identificadas e tratadas independentemente da certeza sobre sua evolução. No tocante ao câncer de mama, estima-se que uma morte seja evitada para cada 2.000 mulheres convidadas para o rastreamento durante 10 anos, ao passo que 10 mulheres desse total seriam tratadas desnecessariamente.

Mais recentemente, uma revisão do British Medical Journal (BMJ) fortaleceu a hipótese de que as mamografias de rotina são bem menos benéficas do que muitos imaginam e que campanhas como o outubro rosa deveriam modificar seu foco. Os autores concluíram que a mamografia anual em mulheres, na faixa etária de 40 a 59 anos, não reduz a mortalidade por câncer de mama mais do que o cuidado usual com exame clínico periódico das mamas, considerando contextos em que o tratamento para o câncer de mama está disponível. Em relação ao excesso de diagnóstico, essa pesquisa apontou um caso de câncer de mama inapropriadamente diagnosticado para cada 424 mulheres que se submeteram ao rastreamento mamográfico.

Em função dos achados citados pelo BMJ, enfatiza-se a urgência de um acordo entre médicos sobre o excesso de diagnósticos no rastreio do câncer da mama, necessário para que as mulheres estejam mais bem informadas e, consequentemente, tomem decisões embasadas também pelos aspectos negativos do rastreamento. O periódico britânico advoga, ainda, que os avanços no uso da tecnologia de mamografia deveriam ser contidos, a menos que melhoramentos consistentes nos resultados da saúde sejam comprovados com a prática rotineira desse exame, algo que não parece ser a realidade atual.


Gérvas e Fernández são ainda mais críticos em relação às mamografias de rastreamento para câncer de mama. Com embasamento bastante consistente, eles afirmam que o conhecimento científico atual permite exigir o fim desse rastreamento. O câncer de mama não precisa de um diagnóstico precoce, e sim de diagnóstico oportuno. Diagnóstico oportuno costuma ser aquele feito aos primeiros indícios de sintomas. A ciência tem demonstrado claramente que a mortalidade por câncer de mama não é modificada pela introdução de programas de rastreamento com mamografias e, pior, que a maioria dos cânceres diagnosticados por rastreamento nunca teria provocado a morte, ou porque eram cânceres sobrediagnosticados stricto sensu, ou porque teriam sido tratados corretamente e a tempo no momento em que começassem a produzir sinais e/ou sintomas.

Comentários

  1. Evidências e referências:
    1. Brasil. Ministério da Saúde. Rastreamento. 1. ed. 1. reimpr. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica, 29). Disponível em URL: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/rastreamento_caderno_atencao_primaria_n29.pdf (acesso em 23 mai. 2016).
    2. Norman AH, Tesser CD. Rastreamento de doenças. In: In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1. ed. 2012. p. 521-532.
    3. Miller AB, Wall C, Baines CJ, Sun P, To T, Narod SA. Twenty five year follow-up for breast cancer incidence and mortality of the Canadian National Breast Screening Study: randomised screening trial. BMJ 2014;348:g366. Disponível em URL: http://www.bmj.com/content/bmj/348/bmj.g366.full.pdf (acesso em 24 mai. 2016).
    4. Barratt A. Overdiagnosis in mammography screening: a 45 year journey from shadowy idea to acknowledged reality. BMJ 2015;350:h867. Resumo disponível em: http://www.bmj.com/content/350/bmj.h867 (acesso em 24 mai. 2016).

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  2. 5. Gérvas J, Fernández MP. São e Salvo: E livre de intervenções médicas desnecessárias. Porto Alegre: Artmed; 2016.

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  3. Graças à Deus cheguei a um vídeo no YouTube da Dra Lucy Kerr. E esse ano não farei a mamografia e sim a US. Apesar do médico pedir. Mas, acontece que esse ano eu já fiz a mamografia. Então espera aí...porque ele pediu novamente se deu o birads 2. Ou seja, apareceu apenas umas microcalcificações? Onde a Dra relata que o tríplice exame é mais viável? Indústria da doença...

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