A triste geração de pessoas concebidas na era do Zika vírus

Brasil, ano 2036. Cerca de vinte anos depois da “epidemia” do Zika vírus ter atingido seu auge, o país observava um estrondoso número de casos de depressão entre seus jovens adultos, muito acima da média mundial. Profissionais da área de saúde mental esforçavam-se para compreender a causa da maior prevalência da doença nessa população, mas ainda não havia respostas satisfatórias, a não ser o fato de que nenhuma pessoa com microcefalia estava entre os jovens deprimidos.

Duas décadas antes, os brasileiros pagavam o preço pela negligência em reaproveitar resíduos sólidos do lixo; o descarte à revelia servira como reservatórios de água para a proliferação de insetos transmissores de doenças. O processo de urbanização desorganizado e excludente evidenciava-se em cidades de paisagens contrastantes: de um lado, bairros ricos, luxuosos e limpos, do outro, favelas e afins, cujas condições de saneamento básico remetiam aos pobres guetos dos primórdios da Revolução Industrial.

Ainda que as autoridades tentassem esconder a miserável realidade, a propagação de determinadas doenças infectocontagiosas desmentia-os, especialmente quando o mosquito vetor Aedes aegipty tornou-se um astro midiático daqueles dias, por transmitir os badalados vírus da Dengue, Chikungunya e Zika. A disseminação de doenças desse tipo, em pleno século XXI, era indicativa de que a sociedade brasileira errara feio em não cuidar da saúde de suas cidades.

O caso do Zika vírus foi o mais emblemático, pois, quando crianças começaram a nascer com microcefalia, ele foi indiciado como o provável causador daquela má formação congênita. Criou-se então uma neurose coletiva. Os jornais não se cansavam de noticiar a zica, os jogos olímpicos no Rio de Janeiro foram suspensos, o mosquito vetor do vírus passou a ser perseguido até pelas Forças Armadas e utilizou-se radiação ionizante para tentar esterilizar todos os machos da espécie dele.

Mas nenhuma ação teve impacto comparável ao da decisão de várias mulheres em postergar a gravidez que planejavam, com medo de gerarem bebês microcefálicos. O resultado da opção de adiar tantas gestações foi que, nos meses e anos subsequentes, as taxas de fecundidade e de natalidade reduziram drasticamente; nasceram no Brasil somente rebentos de concepções indesejadas.

Descobriu-se, passado algum tempo, que os casos de microcefalia não foram causados pelo Zika, mas sim pela velha conhecida síndrome da rubéola congênita, graças a lotes deteriorados de vacinas, contendo vírus vivos da rubéola, que foram distribuídos acidentalmente pelo Ministério da Saúde a várias gestantes. Vergonha e tragédia humana sem precedentes.

O Zika foi inocentado da microcefalia. Entretanto, a venda de sua história causou o estrago psíquico que veio à tona em 2036. Como pode ter ocorrido essa relação? A explicação é simples, até certo ponto. Vejamos. 

Um sentimento era regra entre os jovens deprimidos de 2036: o desamparo. A elevada incidência de tal sentimento foi uma das principais consequências daquelas gestações não desejadas conscientemente (maioria absoluta das gestações lá pelos idos de 2016) e nas quais o pensamento de não querer as crianças perdurou entre as mães.

Algumas daquelas crianças indesejadas de fato nem nasceram, pois tiveram a vida abortada, sem chance alguma de clemência. As mães que optaram pelo aborto foram atormentadas por essa escolha durante o resto de suas vidas. E as mães que decidiram levar a gravidez adiante, mas que foram incapazes de amar genuinamente as crianças em seus ventres, não obtiveram menor infelicidade, pois tiveram filhos e filhas que rejeitavam emocionalmente.

Segundo o psicanalista David E. Zimerman, não são poucos os autores, psicanalistas ou não, atuais ou antigos, que ao longo do tempo têm postulado teorias que expressam a convicção de que as reais condições uterinas da mãe, notadamente a repercussão de seus estados emocionais e físicos, encontram uma direta repercussão no feto. Além disso, estudos de Alessandra Piontelli, também psicanalista, comprovaram que é possível observar que várias características do feto persistem durante toda a gravidez e podem, inclusive, ser notadas na vida pós-natal.

De volta ao ano de 2036. Pressionada em dar respostas rápidas à sociedade acerca dos porquês daquela jovem geração estar tão deprimida, a comunidade científica reuniu-se às pressas em um grande congresso, no qual marcaram presença as maiores autoridades da psiquiatria e da neurologia. Psicanalistas e psicoterapeutas foram excluídos do debate e, obviamente, a relação entre aquelas depressões e as concepções não desejadas da era do Zika jamais foi percebida.

Nesse congresso grandioso, após a revisão de muitos estudos da medicina convencional, chegou-se ao consenso de que não havia explicação física, genética, autoimune ou infecciosa para o estado depressivo daquelas pessoas, e que possivelmente alguma coisa que elas andavam comendo estava deixando-as tristes. Assim, foi proposta uma ideia muito original para tratar aqueles jovens: medica-los todos com os mais modernos antidepressivos.

Depois da elaboração dessa brilhante ideia, a partir de uma conclusão inteligentíssima, nada mais parecia haver para discutir naquele congresso. Aparentemente, pacientes, médicos, sociedade e representantes da indústria farmacêutica, principalmente, ficaram felizes em poder suprimir a melancolia através da química dos antidepressivos. Encerrou-se o evento e todos foram pular o carnaval. Vestiram belas máscaras de alegria (compradas) e partiram em mais uma vã tentativa de camuflar seus vazios existenciais.

*O texto que você acabou de ler é uma obra de ficção científica. Qualquer conexão observada com a realidade, porém, pode não ser mera coincidência.

Comentários

  1. As imagens da postagem, respectivamente, foram obtidas livremente em:
    - http://www.pavablog.com/wp-content/uploads/2015/07/depressc3a3o_relato.jpg
    - http://img.estadao.com.br/thumbs/550/resources/jpg/3/7/1431615494773.jpg
    (acesso em 06 fev. 2016).

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  2. Parabéns pelo texto, Dr Tannus e digníssima esposa.
    Espero que a instituição família continue vencedora e que esse desfecho permaneça na ficção.

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    1. Obrigado pela leitura! Que os desejos sejam sábios e a sabedoria transformada em atos para a ficção tenha um final diferente.

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  3. Caro amigo da luta diária na luta por uma saúde de qualidade... Nós, estudiosos da saúde, devemos ter cuidado na disseminação de informações ainda não comprovadas cientificamente! Principalmente para uma população brasileira que é carente de educação e que acredita em tudo o que lê na Internet. A relação com a vacinação contra Rubéola deve ser levantada, mas não servir como boi de piranha para os erros que esse desGoverno está praticando. Muitas mulheres deixarão de tomar a vacina devido a essas informações ainda não comprovadas! Conhecendo vc como um médico baseado em evidências, devemos aguardar novos estudos para veicular essas teorias, que espero, não sejam de conspiração! Abraços!

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    1. Querida amiga e companheira de trabalho, compreendo sua preocupação (outro amigo me falou a mesma coisa). No entanto, deixei claro que o texto postado mais acima é uma obra de ficção. Sua finalidade principal é a reflexão sobre as gestações não desejadas. A questão de quem é o verdadeiro culpado pelos casos de microcefalia ainda é um grande mistério e não pretendo opinar em tal seara, pois, ao faze-lo, partindo apenas das escassas informações que temos hoje, eu estaria adentrando o campo da mera especulação. Obrigado pela leitura e pelo pertinente comentário que você deixou. Abração

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