Relato da experiência de um médico na condição de doente

Era um domingo de céu azul e ar fresco, depois de uma grande sequência de dias chuvosos. Na paisagem que se descortinava à minha frente, a beleza imensa do mar. O cenário perfeito para um passeio com os cães, ansiosos pela liberdade fora do quintal. Coloquei-lhes as coleiras, para isto me agachando. Quando começara o retorno à posição original, de pé, senti súbita e forte dor nas costas, mais precisamente na região lombar.

Não atendi ao pedido de repouso feito pela dor e comecei a caminhada com os cães. A cada passo, contudo, ela lembrava-me: algo não estava bem comigo. Aquele dia e os que se seguiram foram permeados por dificuldades para executar até mesmo coisas aparentemente banais, como amarrar os sapatos. Cada movimento meu transformado em martírio.

Do mesmo modo que a maioria dos médicos, eu logo montei um modelo explicativo para aquele sintoma e sabia que não estava lidando com nada grave (nem por isso, menos doloroso). Assim, não procurei nenhum colega para me consultar e estava convicto de que exames complementares seriam inúteis naquela situação.

Resistente a calar meu sintoma, não ingeri nenhum miligrama de analgésico ou anti-inflamatório, tampouco me submeti à acupuntura nem a qualquer outra terapia corporal visando aliviar a sensação desagradável. Optei por conviver com aquela dor durante o tempo necessário para aprender algo com ela.

Aprender com a dor? Sim, afinal, ela tem significado, como qualquer outro distúrbio mental ou corporal.

A dor, particularmente, tendo em vista sua natureza neurossensorial, talvez seja o mais simbólico de todos os sintomas e doenças, pois é notório que sem o cérebro e as interpretações mentais ela simplesmente não existiria. Sabe-se que é possível a existência de lesões não dolorosas no corpo, mas jamais sentimos dor sem que tal sensação não seja a expressão de algo dolorido para nossa mente.  Trata-se do caráter emocional que toda dor também tem.


Conforme já relatei, meu modelo explicativo me tranquilizara sobre o fato daquela dor não estar relacionada com alguma lesão corporal. Comecei então o longo e penoso processo de pensar e refletir sobre as muitas coisas que pudessem estar doídas para mim, naqueles dias e nos dias que antecederam o aparecimento da lombalgia. Embora eu estivesse pensando, conduzia o processo em silêncio. E continuei sem falar com ninguém, pelo menos não de forma sincera o suficiente, durante o transcorrer da semana. Por isso mesmo, continuei com dor.

Chegou sexta-feira, dia de análise. Caminhei, como habitual, aproximadamente cinco quadras do local onde costumo estacionar o carro até o setting de psicanálise. Confesso que a dor já não tinha a mesma intensidade do início da semana, mas estava forte o bastante para que o trajeto levasse quase o dobro do tempo para ser percorrido.

Ainda com dor, deitei no divã. Descarreguei no verbo, sem omissões, tudo aquilo que me sobrecarregava mentalmente naqueles dias, inclusive algumas intenções de nobreza questionável, mascaradas por detrás de um comportamento aparentemente servil. Foram 50 minutos intensos de sessão, acessando lugares do inconsciente aos quais dificilmente eu chegaria sem a ajuda do analista. Ou, se chegasse, provavelmente não admitiria que existissem ou os interpretaria de forma equivocada.

Levantei do divã mais leve em todos os sentidos. Nele deixei toda a dor daqueles dias. Não quis ser paciente, mas sujeito ativo no meu processo de adoecimento. Para isso foi preciso falar (sempre é preciso falar). A experiência, apesar de dolorida, foi boa e libertadora. Curei-me um pouquinho mais, ciente de que ainda há muito a descobrir e fazer nesta jornada da vida. Nem mesmo o mais saudável entre os seres humanos está completamente livre da doença, tampouco o mais doente entre nós está totalmente sem saúde, embora muitos desavisados acreditem na ilusão dos extremos.

Não defendo, com este relato, que as doenças e outras manifestações somáticas não necessitem ser abordadas também pelos métodos convencionais. Até porque, em alguns casos, exames complementares podem ser necessários. Também é verdade que o limiar da dor e a tolerância para suportá-la variam imensamente entre os indivíduos; portanto, analgesia é importante em certos momentos. No entanto, acredito que agregar o enfoque psicossomático à abordagem costumeira é o caminho para se obter a verdadeira cura. Do contrário, a sombra permanecerá no escuro e a doença de nada servirá, a não ser como alimento da passividade e do autoengano.

Comentários

  1. Imagens obtidas livremente em:

    1. https://sintomalivre.files.wordpress.com/2014/06/m__c__escher__hand_with_reflecting_sphere_by_borcolor-d5qibhs.jpg (acesso em 01 dez. 2015).

    2. http://www.saudedicas.com.br/wp-content/uploads/2013/10/remedios-caseiros-para-dor-nas-costas2-993x1024.jpg (acesso em 01 dez. 2015).

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  2. Muito bom Bruno!
    Como é fácil nos enganarmos!

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