Será mesmo o glúten um grande vilão?

Quase todo mundo já ouviu falar do glúten, afinal ele é um termo utilizado para descrever certas frações de proteínas encontradas no trigo, na aveia, no centeio, na cevada e nos derivados desses cereais, os quais estão presentes em inúmeros alimentos comuns, como a maioria dos pães e massas, por exemplo. Os rótulos de alimentos industrializados, inclusive, costumam informar se o produto contém ou não glúten, pois diversos problemas de saúde têm sido atribuídos ao consumo dessa substância e algumas pessoas são orientadas a evitá-la.

O consumo mundial da chamada “dieta mediterrânea”, rica em alimentos com glúten, vem aumentando nos últimos anos, especialmente porque ela tem sido recomendada para reduzir alguns fatores de risco cardiovasculares. Por outro lado, essa dieta expõe mais as pessoas ao glúten e aos possíveis distúrbios a ele relacionados, entre os quais a doença celíaca é o mais conhecido, com prevalência em 1% da população.

A doença celíaca pode ser definida como uma condição inflamatória crônica do intestino delgado resultante de uma resposta imunológica exacerbada ao glúten ingerido, proveniente de trigo, cevada ou centeio, em indivíduos geneticamente susceptíveis. Os anticorpos antiendomísio e antitransglutaminase são marcadores sorológicos associados à doença celíaca, embora o padrão-ouro de seu diagnóstico seja a demonstração de atrofia de vilosidades em biopsias duodenais. O pilar do tratamento é uma rigorosa dieta livre de glúten, por toda a vida.

Durante a última década, entretanto, evidências científicas começaram a sugerir que produtos contendo glúten pudessem induzir desconfortos abdominais, similares aos sintomas de síndrome do intestino irritável, mesmo na ausência de doença celíaca. Reconheceu-se assim que as reações ao glúten não se restringem à doença celíaca. Isto motivou um grupo de 15 especialistas internacionais a redigir, em 2012, um documento de consenso, no qual sugeriram uma nova nomenclatura e a classificação de três condições clínicas induzidas pelo glúten: doença celíaca, alergia ao trigo e sensibilidade ao glúten não celíaca. Até a redação desse consenso, os pacientes que reclamavam de sintomas associados à ingestão de glúten na ausência de biomarcadores de doença celíaca representavam um dilema diagnóstico.

Definiu-se alergia ao trigo como uma reação imunológica adversa, mediada por IgE, às proteínas desse cereal. Tal alergia pode se apresentar com sintomas respiratórios (asma ou rinite) e/ou gastrointestinais, urticária, angioedema ou dermatite atópica. Os testes que auxiliam a confirmação da doença, quando há suspeita clínica, são a dosagem sérica de IgE e testes cutâneos para o trigo.

Quando doença celíaca e alergia ao trigo já foram descartadas em pacientes com sintomatologia sugestiva de ambas, deve-se pensar no terceiro tipo de distúrbio de intolerância ao glúten, ou seja, na sensibilidade ao glúten não celíaca. Embora a prevalência desta última condição tenha sido relatada em 6% num grupo de pacientes, a verdadeira quantidade de pessoas acometidas por sensibilidade ao glúten não celíaca na população geral ainda é desconhecida; também não se sabe sobre a evolução natural dessa nova entidade clínica, tampouco há biomarcadores específicos para identificá-la.

A sensibilidade não célica ao glúten trata-se, portanto, de um diagnóstico de exclusão; deste modo, antes da conclusão de um raciocínio clínico favorável a esse distúrbio, recomenda-se que sejam realizados testes para descartar doença celíaca e alergia ao trigo em todos os pacientes com sintomatologia sugestiva de problemas relacionados ao glúten.

Indivíduos com sensibilidade não celíaca ao glúten podem associar sua ingestão a sintomas intestinais consistentes com a síndrome do intestino irritável (desconforto e distensão abdominais, dor e diarreia) ou a uma variedade de sintomas extraintestinais (dores de cabeça, “mente nebulosa”, depressão, fadiga, dores musculoesqueléticas e erupções cutâneas). Ainda está incerto se é o glúten ou outro componente do trigo que, ao ser sacado da dieta, beneficia esses indivíduos; fato é que tem sido demonstrada a redução de seus sintomas através de uma alimentação livre de produtos com glúten na composição.

Podemos nos restringir às explicações acima, amparadas somente pela visão tradicional da medicina, cujas buscas se limitam àquilo que é “visível aos olhos”, palpável, mensurável, enfim, meramente orgânico. Convido-lhes, amigos leitores, no entanto, a agregar um conhecimento menos cartesiano à abordagem das pessoas com sensibilidade ao glúten não celíaca, ampliando assim a visão sobre o problema e a capacidade de encontrarmos a verdadeira cura.

Ao mencionarmos essa sensibilidade ao glúten, falamos, indubitavelmente, de um problema digestivo. Um olhar mais atento e profundo sobre o processo entendido como digestão nos credencia a compreender o que ela abrange, tanto no âmbito físico quanto no metafísico: a captação das impressões materiais do mundo, a discriminação do que é “suportável” e do que é “insuportável”, a assimilação dos materiais benéficos e a expulsão dos materiais indigeríveis. O desafio, a partir daqui, é reconhecer os elos que atuam nos bastidores do inconsciente, falar de modo sincero, assumindo uma postura menos passiva e não enganosa sobre a própria saúde; caso contrário, com ou sem glúten na dieta, será grande a probabilidade dos sintomas continuarem falando.


Comentários

  1. As seguintes evidências e referências foram consultadas para auxiliar na elaboração desta postagem:
    - Araújo HMC, Araújo WMC, Botelho RBA, Zandonadi RP. Doença celíaca, hábitos e práticas alimentares e qualidade de vida. Rev Nutr. 2010; 23(3): 467-474.
    - Aziz I, Hadjivassiliou M, Sanders DS. Does gluten sensitivity in the absence of coeliac disease exist? BMJ. 2012; 345: e7907.
    - Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. São Paulo: Cultrix; 17. ed. 2012.
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    A imagem foi obtida em URL: http://www.fatosdesconhecidos.com.br/o-que-e-o-gluten-e-por-que-dizem-que-ele-deve-ser-evitado-na-nossa-dieta/ (acesso em 03 Out. 2015).

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