Sobre o dia em que seremos saudáveis

É costumeiro começarmos um novo ano desejando ou recebendo votos de "muita saúde". Isto também é bastante corriqueiro na celebração de datas natalícias. Quase sempre, no entanto, não nos damos conta do que seja aquilo que nominamos por saúde. Verdade seja dita, sequer paramos para pensar que saúde não é algo mensurável, de outro modo não desejaríamos a ninguém "muita" saúde. Se nos propomos aqui a falar sobre saúde, cabe tentarmos chegar a um consenso sobre o que ela de fato significa.

Se usarmos o senso comum, seremos rápidos em dizer que estamos saudáveis quando, simplesmente, não estamos doentes. Contudo, isto não seria uma definição do termo saúde, seria apenas a apresentação de seu antagônico. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua conhecida definição, afirmou, ainda em meados do século XX, que saúde não é a mera ausência de doença. Segundo a OMS, saúde seria "o mais completo estado de bem estar físico, psíquico e social".

Podemos observar, logo à primeira vista, pelo menos três aspectos importantes na definição da OMS. O primeiro deles é que a saúde seria uma condição inatingível na condição do mortal, se entendermos "o mais completo" como algo que alcança sua plenitude. O segundo e interessante aspecto é que ela seria um "estado" das pessoas, ou seja, saúde não diz respeito apenas à condição específica de determinado órgão ou membro de um corpo, mas sim à situação do indivíduo como ser humano em sua totalidade. Isto, finalmente, vai ao encontro do terceiro aspecto relevante da definição, que diz respeito à existência da integração entre as características físicas, psíquicas e sociais, todas como determinantes da saúde.

Explorando um pouco mais o primeiro aspecto, ainda que ele seja duramente criticado por muitos pensadores em virtude de sua intrínseca utopia, podemos aproveitá-lo como sendo um norte para a saúde, a meta que, apesar de inatingível, deveria ser visada se almejamos estar saudáveis. Analogicamente, quando desejamos ser pessoas corretas e íntegras, temos um objetivo, entretanto, ao defini-lo, não temos garantia de que conseguiremos cumpri-lo o tempo todo em nossas vidas. Apesar disto, ele não deixa de ser um bom objetivo.

Partindo ao segundo aspecto da definição, tomando por base sua premissa inicial, entendemos que a saúde, assim como a doença, são estados que não podem ser atingidos em plenitude, ou seja, nunca estamos somente saudáveis ou somente doentes. Vamos exemplificar esta situação com o caso notório de Stephen Hawking, um dos mais célebres cientistas contemporâneos. Apesar de se apresentar com uma grave doença degenerativa, a esclerose lateral amiotrófica, que implica em enormes limitações físicas, ele também possui um dos intelectos mais respeitados da humanidade. Se perguntássemos a Hawking se ele se considera saudável ou doente, que resposta teríamos?

Não podemos responder por ele, e aqui chegamos a uma conclusão muito importante: saúde é um estado extremamente subjetivo. Pessoas com a mesma doença podem se sentir mais ou menos saudáveis e, se as comparássemos entre si, verificaríamos que cada uma delas encara de forma diferente sua própria condição. Esta maneira de cada pessoa se autoavaliar dependerá, em última instância, de como interagem os três itens que compõe o terceiro e último aspecto da definição de saúde da OMS.

Estarmos conscientes acerca da interação entre as variáveis físicas, psíquicas e sociais é fundamental para contemplarmos a saúde na perspectiva da integralidade, ou seja, em toda a sua complexidade. Portanto, cuidar da saúde nesta perspectiva, seja para o profissional de saúde ou para a pessoa que busca o cuidado, depende de estarmos realmente abertos e dispostos a colocar em prática tal entendimento. Infelizmente, não é o que acontece, como regra, num mundo em que a saúde tem sido reduzida aos seus aspectos biológicos, orgânicos, ou seja, aos seus atributos físicos. Mas isto poderá ser tema para outra postagem.

Para finalizar por ora, cito Leonardo Boff, que, em seu livro Saber Cuidar, descreve a saúde brilhantemente como uma condição que não significa a ausência de danos, mas sim a força de viver com estes danos, o atributo de acolher e amar a vida assim como se apresenta, alegre e trabalhosa, saudável e doentia, limitada e aberta ao ilimitado que virá além da morte. Que possamos também vivenciar esse acolhimento e esse amor fraternal, indispensáveis a uma vida saudável.

Comentários

  1. Caro Ten Bruno.
    Parabéns pela iniciativa (pelo blog e, também, pela possibilidade de tomarmos conhecimento de assuntos trazidos por profissional capacitado e comprometido).
    Preliminarmente, concordo plenamente com sua argumentação.
    No entanto, tenho um conceito otimista a esse respeito. "Quero" acreditar e, me esforço para não me perder desse "farol", que haverá o tempo que os homens serão mais espiritualizados (mais esclarecidos, maduros, desprovidos de vaidades e com capacidade de amar o próximo). Parece um tanto filosófico e sem conexão com o tema, "saude".
    Conforme você comentou, algumas pessoas acometidas do mesmo dano à saúde têm comportamentos diferentes; enquanto algumas "sabem e vivem em suas mazelas com otimismo", outras, "sofrem e agravam o quadro e a condição geral".
    Assisti companheiros de trabalho sofrendo por suas doenças e, também, convivi com outros que diziam: "meu problema de saúde é sério, mas, olhando para trás, existem piores.
    Pessoas assim (otimistas) teriam alguma disposição diferente daquele que acredita que seu problema é o "mais sério do mundo"?
    Prezado Bruno, me corrija se estiver errado: "acredito que para alguns, falta Deus em seu centro emocional". Esse comentário como, já disse, podendo ser filosófico, no sentido de fazermos uma conexão com o ser humano espiritualizado, poderemos entender que o conceito de saúde será, ainda, mais complexo?
    Em que medida a disciplina moral, intelectual e espiritual podem fazer diferença para, individualmente, conceituarmos, saúde?
    Muito obrigado.
    Siga avante.
    Abraço
    William Amaral

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    1. Caro Major William,

      Antes de lhe responder, agradeço pelos apontamentos que deixou sobre o texto. Ainda que não seja profissional de saúde, seu comentário foi deveras pertinente!

      Não mencionei explicitamente a espiritualidade no texto apenas pelo fato dela não constar desta forma, explícita, no conceito de saúde da OMS, o qual usei como base para a reflexão. No entanto, considero a espiritualidade um aspecto a transitar entre os determinantes psicológicos e sociais, de fato fazendo parte deles e influenciando-os grandemente, trazendo em seu bojo também a moral.

      Nossa "intuição" sobre a espiritualidade, em relação aos seus benefícios sobre a saúde, tem sido atestada até mesmo pela intelectualidade. Digo "até mesmo" porque, apesar de todas as evidências em contrário, ainda conheço muitas pessoas que não acreditam na possibilidade de aliar a ciência e a fé. Algumas referências científicas produzidas nos últimos anos acerca do tema, para citar apenas algumas de nosso próprio país, seguem no final deste comentário, destinadas aos que se interessarem em conhecer um pouco mais sobre a relação entre espiritualidade e saúde.

      Entendendo a espiritualidade como um relacionamento sincero, diário e pessoal com Deus, independente de religião, concordo que, para muitos, falta-lhes Deus no centro de suas vidas. Mas esta é uma caminhada, de trazer Deus de volta ao centro e abnegar-se, é algo que cada um precisa querer empreender para si próprio, não sendo possível como imposição, como advogam algumas doutrinas religiosas.

      Sobre o otimismo, não me estenderei desta vez, mas, sinteticamente, aqui a relação direta com a saúde se faz notória novamente.

      Nessas medidas, caro amigo, creio que a disciplina moral, intelectual e espiritual não apenas faz diferença, ela também determina nossa saúde.

      Sigamos avante.

      Abraços

      - GUIMARÃES, Hélio Penna; AVEZUM, Álvaro. O impacto da espiritualidade na saúde física. Rev. Psiq. Clín., São Paulo, SP, v. 1, n. 34, p.88-94, 2007.

      - LEITE, Imelidiane Silva; SEMINOTTI, Elisa Pinto. A influência da espiritualidade na prática clínica da saúde mental: uma revisão sistemática. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, João Pessoa, PB, v. 2, n. 17, p.189-196, 2013.

      - SAAD, Marcelo; MASIERO, Danilo, BATTISTELLA, Linamara Rizzo. Espiritualidade baseada em evidências. Acta Fisiátrica, São Paulo, SP, v. 3, n. 8, p.107-112, 2001.

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  2. Achei bastante interessante o conceito de saúde. Parece que realmente fomos educados para entendê-la como a ausência de doenças. Pensar em saúde de uma perspectiva integral nos faz refletir a importância de ser saudável emocionalmente, o que certamente refletirá nas nossas relações sociais. Acredito que ser saudável é um estilo de vida, algo que devemos buscar sempre. Lidiane Monteiro Pelotas R/S

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    1. Amiga Lidiane (via Elizeu Monteiro), também agradeço pela sua contribuição e participação neste espaço!

      O ponto que considero principal de seu comentário é a sabedoria em reconhecer que nossa busca jamais estará finda, não neste mundo.

      Abraços

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Grande Bruno! Excelente iniciativa! Fiquei preocupado com o início do texto achando que iríamos mais uma vez por aquela onda de conceitos da OMS e você conseguiu colocar muito bem a questão da integralidade. Eu tenho passado por um tempo "sabático" em relação às reflexões acadêmicas e estou trabalhando mais como MFC agora. Como estou atendendo no setor privado tenho me deparado com a abismal distância entre o que oferecemos em termos de saúde para as pessoas da classe popular e o que é feitol nas classes com melhor poder aquisitivo. É uma violência tão grande que me faz voltar à um sentimento antigo de revolta contra o status quo. Hoje eu vejo ainda mais claramente que a Integralidade da assistência e da abordagem às pessoas enfermas não têm como ser separada das ações em nível de organização social, econômica e cultural. Sobre esta última, tenho visto que temos um grande empecilho a trabalhar com as classes mais favorecidas. O conceito cultural de saúde nesta classe, generalizando, é extremamente voltado para o consumismo de tecnologia e uso de medicações. Em termos mais claros, numa consulta médica é esperado mais exames, remédios mais caros e soluções mágicas para problemas que muitas vezes estão relacionados com o padrão de vida e comportamento em geral. É interessante ver o papel do MFC ser diferente entre estas duas perspectivas. No SUS eu vejo nosso papel mais próximo de um certo tipo de herói, que resiste a muita pressão e é extremamente criativo. No privado eu às vezes penso que viramos vilões que afrontam a medicina dos colegas (outros especialistas), roubam mercado, negam procedimentos aos paciente ou negam mais exames ou medicações com baixo poder de resolução (real). É um jogo complicado, eu acho. Lidamos com interesses econômicos (de todos os lados) e políticos (quem quer MFC que prescrevem menos sinvastatina e pedem apenas uma glicemia nos exames de check up?). Sei que para atingirmos a integralidade do processo, as peças do jogo me parecem que se multiplicam ao olhar mais crítico. Mas ainda continuo sendo uma formiga... Um forte abraço!

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    1. Meu grande amigo e mestre Dr. Rodrigo Bagatelli,

      Agradeço imensamente ao seu comentário aqui, pois ele é de uma riqueza e de uma visão abrangente que só pessoas como você, já bastante iniciadas em termos de saúde na perspectiva da integralidade, poderia nos proporcionar.

      Saiba que seu modo de ver as coisas me inspirou, enquanto seu aluno, e continua inspirando (a prova é este blog).

      Ainda que eu concorde sobre a visão consumista que as pessoas têm sobre a própria saúde no âmbito privado e que haja pressões vindas de todos os lados contra médicos que trabalham como nós trabalhamos, acredito que, pelo menos as pessoas, mais cedo ou mais tarde, acabam se tocando de que se submeterem a todos os tipos de exames e de procedimentos não lhes é garantia de estarem saudáveis. Outras morrem infelizes acreditando nessa falácia.

      Se você se considera uma formiga, esteja ciente de que não está sozinho no formigueiro! E, como diria meu amigo Major William, sigamos avante.

      Grande abraço!

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