Revirando as supostas faces ocultas de Freud: uma resposta ao vídeo da Brasil Paralelo

Freud por Vini Capiotti (Superinteressante)

O presente texto é uma resposta ao vídeo da Brasil Paralelo intitulado “A face oculta de Sigmund Freud”, recentemente publicado, disponível no YouTube: 


Costumo acompanhar os conteúdos da série de faces ocultas com entusiasmo, mas, como médico e psicanalista que sou, devo apontar que o pessoal da Brasil Paralelo pisou feio na bola nesse vídeo sobre Freud. Explico a seguir, comentando seu conteúdo em ordem cronológica.

1. Psicanálise não é psicoterapia, tampouco é psicologia clínica. Embora, ao longo da história, os termos tenham sido aproximados e até utilizados como equivalentes, atualmente são práticas clínicas cujas demarcações teóricas e, consequentemente, práticas diferem bastante, ainda que algumas psicoterapias se apresentem como “de orientação psicanalítica”. Falo um pouco mais sobre essa diferença em artigo publicado outrora neste mesmo blog.

2. A International Psychoanalytical Association (IPA) não é uma unanimidade entre os psicanalistas, particularmente entre os de orientação lacaniana, pois o próprio Jacques Lacan foi expulso da IPA. A Psicanálise hoje, no mundo, é muito heterogênea e inúmeros de seus praticantes conectam-se e trocam experiências através de diversas instituições independentes da IPA.

3. O inconsciente não é "onde habita o Eu", o inconsciente sequer é um "lugar". O inconsciente estrutura-se como uma linguagem, uma linguagem que vive a nos escapar e que com a psicanálise buscamos apreender, disto podendo resultar os efeitos terapêuticos da experiência analítica.

4. O complexo de Édipo não é uma "síndrome", tampouco deve ser visto como uma expressão literal de que "a criança deseja matar o pai". A travessia do Édipo é simbólica; trata-se de um momento fundamental para nossa estruturação psíquica, momento universal, pelo qual tanto meninos quanto meninas passam, e tem a ver com as relações psíquicas que se estabelecem, de modo singular, entre a criança e as figuras humanas que lhe exercem as funções materna e paterna, não necessariamente os pais biológicos daquela.

5. Quando notícias sobre adicções e reações adversas à cocaína começaram a se confirmar, Freud abandonou o uso dessa droga e deixou de prescrevê-la. Deve-se salientar que, de fato, em dado momento da história, a medicina tentou se apropriar da cocaína, acreditando que ela pudesse ter ações terapêuticas. Algo similar acontece atualmente em relação à maconha... Freud experimentou cocaína num momento em que não se tratava de algo ilícito e esteve longe de ser um viciado, título que algumas biografias fraudulentas tentam imputar levianamente a ele.

6. O vídeo apresenta de modo muito superficial e fora de contexto os importantes estudos sobre a histeria. A psicanálise era nascente por ocasião desses estudos e Freud tinha muito zelo em não tirar conclusões precipitadas, enquanto bom cientista que era. Ele costumava apontar hipóteses e reformular posteriormente as que não se confirmavam, e assim fez ao longo de toda sua jornada após ter criado a psicanálise. Longe de ser uma prática infalível, a psicanálise está sempre revisitando suas teorias e avançando conforme a clínica revela novos fatos.

7. A fofoca do suposto relacionamento extraconjugal de Freud com sua cunhada nunca se confirmou, mas se propagou, como toda fofoca. Fato é que Freud viveu um casamento longevo, até o fim de sua vida, com Martha. Certamente que Freud tinha lá seus defeitos, mas "avarento, imoral e desequilibrado" não são adjetivos que podemos atribuir a ele, tomando em conta biografias sérias a respeito do pai da Psicanálise. Sugiro a leitura do livro "Sigmund Freud: na sua época e em nosso tempo", obra da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco.

8. É inadequada a afirmação de que Freud teria cometido “suicídio”. Ele conviveu com a dolorosa experiência do câncer durante longos anos de sua vida e, já octogenário, depois de muitas cirurgias e complicações relacionadas à doença, solicitou a um colega médico que lhe aplicasse uma injeção misericordiosa de morfina. Penso que esse ato pode ser mais apropriadamente chamado de eutanásia.

9. Para concluir: a falácia da "falta de embasamento científico" para a psicanálise tem sido categoricamente desconstruída nos dias atuais, pois SOBRAM evidências acerca dos benefícios de quem se sujeita a ela. Por outro lado, o suposto embasamento científico para uso dos psicofármacos cada vez é mais contestado, diante das manipulações de dados, que não param de vir à tona, nas pesquisas conduzidas pela indústria farmacêutica envolvendo tais substâncias.

Comentários

  1. Concordo com suas pontuações. Eis o perigo de se ter a intenção de simplificar uma teoria centenária em dezenas de minutos de um vídeo.

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    1. Olá, Tati Wippel, obrigado pela visita ao blog!
      Além de centenárias, a teoria e a clínica psicanalíticas não pararam no tempo ao longo de sua história, seguem se desenvolvendo de acordo com os desafios de cada tempo. Freud inclusive anteviu que isso deveria acontecer. Quem trata a Psicanálise como se fosse algo estanque ao início do século passado, o que parece ser o caso do roteirista do vídeo da BP, precisa estudar e se inteirar mais sobre o tema.

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  2. Esclarecedor. Um texto importante e uma justa defesa. Parabéns.

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    1. Olá! Obrigado por sua leitura e pela visita ao meu blog.

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