Nós e as perversões

Na linguagem cotidiana, o termo “perversão” é frequentemente relacionado aos comportamentos sexuais anormais, corrompidos ou depravados. Também é corriqueira a utilização da palavra “perverso” como sinônimo de malvado e cruel. Definições de dicionários, obtidas em qualquer site de busca na internet, corroboram essas afirmações. Para a Psicanálise, no entanto, perversão é um conceito cujo sentido difere daquilo que o linguajar comum lhe atribui. Quem intenciona enveredar-se pelas vias psicanalíticas deve ter clareza de que se trata de um importante conceito e talvez precise esvaziar-se de ideias pejorativas ou estereotipadas a respeito das perversões.

É verdade que no começo da obra freudiana, conforme apontam Roudinesco e Plon (1998), quando foi adotada conceitualmente, a perversão ainda era tratada como desvio daquilo que se considerava o padrão ou a norma do comportamento em termos sexuais. Desde aquela época, entretanto, Freud não atribuía a ela um viés depreciativo; ao contrário, ele inscreveu a perversão numa estrutura tripartite, juntamente com a neurose e a psicose, abrindo caminho para o entendimento atual de que todos temos características perversas, neuróticas e psicóticas. Foi nesse sentido que Jacques Lacan e seus diversos discípulos, fazendo avançar as ideias freudianas, tornaram a perversão uma verdadeira estrutura dentro da clínica psicanalítica, afastando-a dos equivocados rótulos de doença incurável ou aberração.

A corrente lacaniana abriu caminho para novas perspectivas terapêuticas: não somente a perversão deixou de ser atingida pelo diagnóstico de incurabilidade, como também o perverso, já não sendo forçosamente catalogado como um pervertido sexual, pôde ter acesso à prática da psicanálise sem constituir um "perigo" para a comunidade. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 586)

Apresentando a etimologia da palavra perversão, Zimerman (1999) explica que ela deriva de “per” e “vertere”, ou seja, pôr às avessas. Isto significa que perverter seria o ato de perturbar o estado natural das coisas. Assim, um simples beijo na boca, tão corriqueiro entre os amantes em nossa cultura ocidental, pode ser considerado um ato perverso, tendo em vista que nesse caso tanto a boca quanto a língua estão desviadas de suas funções naturais (orifício de alimentação e paladar, respectivamente), para serem usadas como zonas erógenas.

A propósito da erogeneidade no corpo humano, ao estudarmos nosso sistema nervoso, com suas incontáveis terminações espalhadas na pele e em mucosas do corpo, capazes de transmitir variadas sensações, entre elas o prazer através do toque, constatamos que muitas regiões corporais alternam funções ditas naturais (ou fisiológicas) e funções eróticas. Logo, podemos dizer que o corpo humano é um tanto quanto pervertido, pelo menos potencialmente. E é desde muito cedo na vida, quando ainda somos bebês, que todos descobrimos e nos valemos das perversões, em maior ou menor grau, para lidar com alguns impulsos sexuais já existentes em nós.

Claro que há situações em que perversões podem resultar em maldades, desrespeito às escolhas do outro e até mesmo crimes tipificados em lei, e acredito que, como sociedade, devemos nos posicionar firmemente contrários a tais práticas perversas. Perversões atreladas à crueldade e à psicopatia, embora existam, não serão foco desta resenha. Minha intenção aqui é abordar situações em que as perversões são erroneamente rotuladas enquanto problemas, quando simplesmente, em práticas consentidas, expressam manifestações da diversidade sexual humana e quando se configuraram uma das poucas saídas que determinadas pessoas encontram para lidar com conflitos introjetados em sua psique desde a tenra infância, conforme explicarei mais adiante.

É fato que a sexualidade humana tem expressões muito variadas se comparada à prática sexual dos animais. Isto ocorre não apenas porque dispomos das já mencionadas incontáveis zonas erógenas além dos genitais, mas também porque somos a única espécie viva inserida na linguagem e, portanto, na cultura, o que torna o sexo entre humanos uma prática que extrapola sobremaneira sua finalidade reprodutiva biológica. Estão aí o sexo oral, anal etc. para comprovarem.

O ato sexual para o ser humano não é instintivo, mas pulsional. Ou seja, seu objetivo principal é a busca de satisfação das pulsões sexuais, busca esta que pode ocorrer de inúmeras maneiras, entre as quais formas não universalmente prazerosas, até mesmo sádicas e masoquistas, muitas vezes reprovadas no meio cultural em que se encontra o indivíduo. Pode ocorrer, pois, de a pessoa se deparar com a não aceitação ou a condenação de algumas práticas sexuais por seu grupo familiar e/ou religioso; assim, embora as deseje, força-se a não vivê-las, ou seja, recalca ou reprime suas pulsões. Mas o recalque e a repressão nem sempre são possíveis, já dizia Freud no célebre ensaio intitulado “'Bate-se numa criança': contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais", texto publicado em 1919:

As pulsões sexuais [...] são capazes de fazer fracassar o propósito do recalcamento e de fazer forçar sua representação através de formações substitutivas de natureza perturbadora [entre as quais as perversões]. Por isso, a sexualidade infantil submetida ao recalcamento é a força pulsional mais importante da formação do sintoma. (FREUD, 2019, p. 153)

No excerto acima temos outro aspecto de essencial compreensão às perversões, a saber, sua relação com a sexualidade infantil. É durante a infância, ainda numa fase pré-edipiana, que acontecem os eventos que definirão o quanto uma criança, dali em diante até a vida adulta, lançará mão daquilo que McDougall (2015, p 173) chama de solução perversa da sexualidade humana. Entre esses eventos pré-edipianos, há aqueles que demandam excessivamente soluções perversas, por estabelecerem uma dependência amorosa, não relativa aos cuidados vitais, entre a criança e a mãe (pessoa que exerce a função materna, não necessariamente a genitora). Em outras palavras, na origem das perversões, enquanto estrutura clínica, está uma relação de amor desmedida entre mãe-bebê, que talvez nem devêssemos chamar de amor, mas de paixão ou fixação. Afinal, trata-se mesmo de uma relação na qual a criança não somente passou a representar um objeto fálico para a mãe, mas, principalmente, fixou-se nesse lugar:

Todo o problema das perversões consiste em conceber como a criança, em sua relação com a mãe, [...] não por sua dependência vital, mas pela dependência de seu amor, isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário desse desejo, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo. (LACAN, 1998, p. 561)

Por certo o universo de um infante recém-nascido é totalmente centrado na figura materna, mas para que se desenvolva um sujeito adulto independente desta, aos poucos a criança precisa ser apresentada ao mundo real, num processo que a descole do amor materno. Este salutar e gradativo descolamento do amor da mãe, de modo que não se configure uma perene dependência, só é possível quando entra em cena uma terceira pessoa na relação. Não uma pessoa qualquer, mas alguém capaz de abalar a relação inicial mãe-bebê, de atrair o desejo da mãe e castrar os desejos incestuosos da criança. Esse alguém é o pai, não necessariamente o genitor, mas a pessoa que exerce a função paterna.

Na configuração das perversões, em decorrência da função paterna precariamente exercida ou praticamente ausente, é igualmente marcante a dificuldade ou impossibilidade da criança introjetar a lei da castração. Isto faz a criança imaginar que pode tudo e insistir numa posição de objeto fálico para a mãe, entrelaçada por nós muito firmes ao desejo materno:

Em todo o período pré-edipiano em que as perversões se originam, trata-se de um jogo que prossegue, um jogo de passa-anel [...], até mesmo nosso jogo de par ou ímpar, onde o falo é fundamental como significante, fundamental neste imaginário da mãe a que se trata de unir, já que o eu da criança repousa sobre a onipotência da mãe. Trata-se de ver onde ele está e onde não está. Ele nunca está realmente ali onde está, e nunca está completamente ausente ali onde não está. Toda a classificação das perversões deve se fundar nesse ponto. Qualquer que seja o valor das contribuições sobre a identificação com a mãe e a identificação com o objeto etc., o essencial é a relação ao falo. (LACAN, 1995, p. 197)

Portanto, a persistência da criança em ocupar lugar prioritário no desejo materno, não abdicando desse local, é aspecto fundamental na configuração das perversões enquanto estrutura clínica, estando aí também as raízes de problemas narcísicos. E, ainda que o falo seja um objeto imaginário, o emaranhado de nós psíquicos que ele promove é bem difícil de soltar. Para o psicanalista, esse conhecimento é importantíssimo se o sujeito que se apresenta ao consultório relata, entre os sofrimentos que motivam sua busca pela análise, algo da ordem das perversões, pois uma das coisas que direciona o tratamento psicanalítico é a compreensão da relação fálica em cada caso, bem como o manejo da transferência a partir daí.

Também é de suma importância saber que perversão não é necessariamente motivo de sofrimento ou sintoma para alguém, tendo em vista que muita gente pode ser feliz e bem resolvida com as próprias perversões. Ao psicanalista, exercendo seu ofício, cabe escutar qualquer tipo de história, de demanda, e fazer a pessoa pensar a respeito, sem julgar moralmente os comportamentos, especialmente os sexuais. Não raro, inclusive, as soluções sexuais ditas menos convencionais, perversas, representam a única maneira que uma pessoa foi capaz de encontrar para equilibrar-se no complexo jogo pulsional, muitas vezes bastante conflituoso em função dos arranjos fálicos acima mencionados. O certo é que, desde a primeira infância, todos estamos subjugados por tal jogo pulsional associado aos desejos incestuosos da sexualidade infantil, que vão se atualizando sobre outros objetos durante a adolescência e na idade adulta, então teremos que nos haver com isso:

A "solução sexual" que cada um de nós encontra traduz nossa tentativa de solucionar os conflitos – reais ou imaginários – presentes desde o início da vida, para escapar ao sofrimento psíquico: a particularidade de cada "solução sexual" responde ao equilíbrio singular da dinâmica pulsional do sujeito. (CECCARELLI, 2017, p. 142)

Para concluir, penso que se a base do saber psicanalítico sobre as perversões for mais difundida, proporcionando que qualquer pessoa tenha um entendimento mínimo sobre esse tema, através de um olhar que vá além das definições dos dicionários, possivelmente a convivência social com as diferenças sexuais tornar-se-á mais harmoniosa e respeitosa. Isto é algo que tem certa urgência, especialmente se levarmos em conta algumas mudanças referentes às configurações familiares na cultura ocidental, observadas nas últimas décadas, que a meu ver aumentam a ocorrência das perversões.

Entre tais mudanças estão, por exemplo, a redução expressiva do número de famílias nucleares com pai, mãe e filhos vivendo juntos, ao mesmo tempo em que se tornaram mais numerosos os casais homoafetivos com filhos. São situações que, ao interferirem nas relações fálicas construídas na infância, fornecem pistas que, longe de esgotarem a questão, nos ajudam a compreender porque hoje as soluções perversas da sexualidade humana parecem estar mais presentes na polis e, consequentemente, mais prevalentes na clínica psicanalítica.

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REFERÊNCIAS

CECCARELLI, Paulo Roberto. Psicanálise, sexo e gênero. Estud. psicanal., Belo Horizonte, n. 48, p. 135-145, dez. 2017. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372017000200014&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 30 jan. 2024.

FREUD, Sigmund. “Bate-se numa criança”: contribuição para o estudo da origem das perversões sexuais (1919). In: FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão: Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 123-156. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Dulce Duque Estrada.

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590. Tradução de Vera Ribeiro.

MCDOUGALL, Joyce. Teatros do Eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Zagodoni, 2015. 207 p.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 874 p. Tradução de: Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Supervisão da edição brasileira: Marco Antonio Coutinho Jorge.

ZIMERMAN, David E.. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999. 478 p.


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As imagens do post, respectivamente na ordem em que aparecem, foram obtidas na internet nos seguintes endereços eletrônicos:

https://olddesignshop.com/2015/05/victorian-mother-and-baby-free-clip-art/

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Martirio_de_Santa_Águeda,_por_Sebastiano_del_Piombo.jpg
“O Martírio de Sant’Agata” (1520) - Sebastiano del Piombo

https://link.springer.com/chapter/10.1057/9780230244689_1
Capa do livro: Peakman, J. (eds) Sexual Perversions, 1670–1890. Palgrave Macmillan, London. https://doi.org/10.1057/9780230244689_1

https://www.museumtv.art/artnews/oeuvres/reve-cause-par-le-vol-dune-abeille-autour-dune-grenade-une-seconde-avant-leveil-de/
Pintura de Salvador Dalí

[acesso em 31 jan 2024]







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