Um caso de endometriose para pensar o corpo na psicanálise

Considerando a clínica psicanalítica em nossa atualidade, já atravessada pela clínica do real apresentada por Lacan no final de seu ensino, podemos fazer muitas articulações sobre a relação entre corpo e subjetividade pertinentes ao ofício do analista. Em verdade, com os sucessivos apelos ao corpo no mundo contemporâneo, particularmente aqueles que encontram ecos na medicina, o psicanalista de hoje, na escuta diária que seu ofício requer, lida com pessoas cuja subjetividade está de algum modo contaminada por tais apelos, não raro excessivos e causadores de sofrimento.

É pertinente apontar que questões do corpo estão presentes na Psicanálise desde o nascimento desta centenária senhora. Melhor dizendo, foi por causa de enfermidades que afetavam o corpo e que não eram satisfatoriamente tratadas pela medicina, a saber, as neuroses histéricas, que a psicanálise surgiu. Seu surgimento se deu com as perspicazes observações clínicas de Sigmund Freud, durante seu trabalho devidamente registrado nos “Estudos sobre a histeria”, em conjunto com Josef Breuer.

Entre as observações desses primórdios psicanalíticos, talvez a mais importante, que selou definitivamente a relação da psicanálise com o corpo, foi que aqueles sintomas histéricos, predominantemente somáticos (corporais), podiam ser tratados pela fala, mais especificamente através de um recurso terapêutico que se propunha, nos dizeres de Freud e Breuer (2016, p. 20), pôr o afeto em palavras. Aqui eles não estão se referindo a qualquer afeto, mas aos afetos que outrora estiveram ligados a traumas psíquicos. Estes traumas, ao sofrerem o processo de recalque por se configurarem ideias intoleráveis à consciência, permitiam que afetos ficassem soltos, sem representação psíquica, e assim fossem escoados pelo corpo na forma de sintomas.

Indubitavelmente a psicanálise atual continua sendo um importante recurso para colocar afetos desligados, angustiantes, em palavras. No entanto, a clínica do real propõe ao ato analítico ir além do recalque, conferindo à psicanálise o status de práxis, cujo vetor é tratar o real pelo simbólico. Assim, há possibilidade de intervenções sobre diversas outras formas de mal estar, por exemplo, aquelas relacionadas ao gozo, conceito que Lacan desenvolveu a partir dos ensaios de Freud que demonstraram a pulsão de morte e as diversas formas de repetição que contradizem o princípio do prazer. O gozo seria a coisa que se repete na repetição. Em termos inventivos ou produtivos na vida do sujeito, o gozo é aquilo que não serve para nada (LACAN, 1985, p. 11).

De fato, em função de circunstâncias sociais que não serão detalhadas no presente artigo, as múltiplas formas de apresentação do mal estar no humano revelam-se hoje aos psicanalistas ainda mais complexas do que pareciam na época dos primeiros estudos da histeria. Compreende-se agora que o corpo pode ser afetado tanto por conversões histéricas quanto por fenômenos psicossomáticos, estes capazes de alterá-lo organicamente, modificando não apenas as funções fisiológicas, mas a própria anatomia corporal. Durante uma conferência em Genebra, na Suíça, no ano de 1975, Lacan esboçou algumas ideias de como isso diz respeito também à psicanálise:

É por esse viés, pela revelação do gozo específico que há na sua fixação, que é preciso sempre visar abordar o psicossomático. Nisto podemos esperar que o inconsciente, a invenção do inconsciente possa servir para alguma coisa. O que esperamos é dar-lhe o sentido do que se trata. O psicossomático é algo que, de todo modo, está, no seu fundamento, profundamente arraigado no imaginário. (LACAN, 2022, p. 16)

Dessa forma, podemos dizer que o corpo está mais presente do que nunca na psicanálise. Entretanto, ao pensá-lo em termos analíticos, a pergunta essencial que devemos fazer é: com que corpo estamos lidando ao receber uma pessoa em análise? O psicanalista precisa ter clareza sobre isso, para não incorrer em erros potencialmente graves. O corpo que a ele se apresenta é, primeiramente, corpo de alguém único, o sujeito em análise, humano marcado pela linguagem e subjugado pelas pulsões, e de tal corpo não podem escapar ao analista nenhum entre os três registros: real, corpo que adentra fisicamente a realidade do setting analítico; imaginário, corpo construído por imagens projetadas/introjetadas a respeito de si (imagens não necessariamente perceptíveis na realidade e que poderão modificar-se a partir das intervenções analíticas); e simbólico, corpo que advém da psicanálise, com as infinitas possibilidades de representações a lhe darem algum sentido ao ser falado. 

Ainda que as intervenções do analista devam ocorrer pela via do simbólico, valendo-se de interpretações, cortes e ponderações, ele há de perceber em qual dos três registros de corpo do analisante estão acontecendo os efeitos da análise e há de saber que esses registros são entrelaçados pelo nó borromeano. Daí inferimos que uma análise também pode ter efeitos orgânicos e depreende-se a ideia de que corpo e mente são inseparáveis do ponto de vista psicanalítico, ao encontro dos pensamentos de Georg Groddeck:

Para o Isso, não há diferença alguma entre o organismo e o psiquismo. Por conseguinte, se é verdade que podemos agir sobre o Isso através da análise, é possível também - e se deve fazê-lo, se necessário - tratar as doenças orgânicas através da psicanálise. (GRODDECK, 2004, p. 112)

Por outro lado, Gonçalves (2022, p. 44), amparada em Lacan, aponta para um erro na relação da medicina com o corpo ao desconsiderar a dimensão do sujeito e do gozo, o que acarreta no desconhecimento simbólico do ser em relação à sua doença. O simbólico é desprezado ou negligenciado na maioria das intervenções médicas, as quais se concentram sobre o real do corpo, o corpo biológico (matéria orgânica), a partir de demandas alimentadas pelo imaginário de quem busca o tratamento. E é frequente que o imaginário dessa pessoa esteja impregnado por ideias equivocadas da realidade, especialmente quando se constituiu sob forte influência da mídia e das redes sociais, onde a realidade é transmutada por interesses de mercado, filtros e afins.

Os efeitos de tal impregnação podem ter sérias implicações na vida do sujeito e estarão atrelados ao que ele supõe de si mesmo e dos outros, bem como à sua (in)capacidade de simbolização. Afinal, comumente a realidade se apresenta diferente daquilo que se imaginava, seja sob a forma de resultados insatisfatórios dos tratamentos médicos, incluindo os procedimentos estéticos, seja no tocante às frustrações relativas ao que se esperava e não se obteve dos outros (que não conseguem mesmo ser agradáveis o tempo todo). Nesse contexto, se a pessoa encontra-se incapaz de realizar elaborações psíquicas pela via do simbólico, sobrevém a angústia, afeto por excelência.

A presença da angústia pode resultar em situações variadas. Na melhor das hipóteses, ela será o motor de uma psicanálise, que tem potencial de metabolizar o gozo, de retificar as pulsões. Contudo, o mais comum são outros cenários, não analíticos, e estes são facilitadores do escoamento das angústias para o somático ou outras vias não elaborativas. Ao não se ligarem a ideias que as possam representar, as angústias são capazes até mesmo de lesionar um órgão. Conforme menciona Nasio (2012, p. 75), o que não veio à luz do simbólico [...] reaparece no Real sob a forma de uma lesão de órgão.

Penso que as argumentações acima ficarão um pouco mais nítidas com a apresentação do fragmento clínico a seguir, com o qual concluirei este texto. Trata-se do caso de Lara (nome fictício), uma bela mulher que vivia às voltas com grande dúvida: seria ou não seria mãe? 

Quando estava com pouco mais de 30 anos de idade, Lara engravidou de seu namorado à época, um homem eventualmente explosivo e violento. Certo dia, durante uma briga entre os dois, Lara caiu no chão com um pesado armário sobre si, resultando no aborto daquela gestação, ainda em fase inicial. Depois que teve seu embrião violentamente abortado, a mulher terminou o namoro e entrou em grave estado depressivo, algumas vezes com nuances de psicose, quando alucinava estar novamente grávida. Fazia testes de farmácia e consultava médicos preocupada com a gravidez imaginária, mesmo sem estar se relacionando sexualmente com ninguém. Foi também nessa época que passou a ter um sonho recorrente e a dor referente ao filho abortado insistia em voltar para atormentá-la. Via uma criança linda, caminhando ao seu encontro em meio a um campo de girassóis, as flores prediletas de Lara, mas sempre acordava sozinha.

Passado algum tempo, recuperou-se da depressão e arranjou novo namorado, mas este revelou-se também violento, motivo pelo qual não foi considerado o homem ideal para ser pai do filho tão sonhado por Lara. No entanto, apesar do perfil problemático do novo namorado, ela queria mais ser mãe do que propriamente constituir uma família, então julgou apenas um detalhe que fosse ele o pai. Embora não utilizasse métodos contraceptivos na ocasião, a gravidez não veio, pelo menos não realmente. Aconteceu de Lara começar a sofrer, a cada ciclo menstrual, repetidos episódios de dor e inchaço abdominal, que lhe acarretavam inúmeras idas aos médicos. Foi diagnosticada com transtorno funcional, enfermidade que bem mais tarde, já fazendo análise, ela compreendeu como forma tortuosa (gozante) de experimentar no corpo uma espécie de “gravidez”. Seu abdome, ao inchar, parecia mesmo um útero gravídico, enquanto as dores remetiam-lhe ao trabalho de parto que nunca realizou. E a cada descida da menstruação sentia como se novamente abortasse, vivendo mais uma vez a tristeza do trauma de outrora.

Foi trabalhoso para Lara sair do relacionamento com aquele novo namorado, que se revelou abusivo, mas ela enfim conseguiu. Novamente solteira, obrigava-se a esvaziar o desejo de ser mãe. Além disso, com mais de 35 anos, sentia-se velha para engravidar, temendo que pudesse ter um bebê malformado. Em tal cenário, Lara passou a usar anabolizantes, com o argumento de potencializar seus resultados de academia, mas no fim das contas, ela soube depois em análise, essa era uma maneira de tornar-se infértil e silenciar seu desejo e seus medos.

Mais de um ano depois, conheceu o homem com quem viria a se casar. Amoroso, sempre aberto ao diálogo e não controlador, ele se mostrava bem diferente do perfil de namorados que Lara teve anteriormente. Tinha finalmente um companheiro que considerava a pessoa certa para ficar o resto da vida, constituir uma família e, consequentemente, experienciar a maternidade. Todavia, o fato de ela já estar com quase 40 anos de idade, seus temores e outros fatores fomentaram uma terrível ambiguidade a respeito do desejo de ser mãe. Foi quando iniciou sua psicanálise e passou a ressignificar a história que vivera até ali.

Lara trabalhou muitas coisas na análise, além dos pontos mencionados acima, e pôde notar incontáveis benefícios de sua jornada no divã, contudo não conseguia engravidar, embora estivesse disposta a isso com o marido. Ano passado, por outros motivos, ela decidiu interromper seu percurso analítico, mas ainda havia ambivalência sobre a questão da maternidade. Passadas algumas semanas da interrupção da psicanálise, Lara voltou a sofrer com dores abdominais, desta vez mais intensas e comprometendo suas funções digestivas. Precisou então realizar exames médicos complementares, os quais revelaram o diagnóstico de endometriose, com um significativo foco da doença acometendo seu intestino grosso. O caso era cirúrgico, notícia que a abalou profundamente.

Nos meses que se seguiram à descoberta da doença orgânica, Lara passou a focar suas atenções no corpo real. Está tomando uma medicação (dienogeste) que lhe acarreta efeitos adversos importantes, então anseia operar o mais breve possível, muitas vezes repetindo a frase: “Quero tirar logo isso de mim!”. Ela tem dito que não quer mais engravidar e, se possível for, solicitará aos cirurgiões que também retirem seu útero, embora ele esteja saudável, acreditando que assim não haverá chance para recidiva da endometriose. 

É totalmente compreensível sua ansiedade, pois as dores físicas que ela vem sentindo e os episódios de constipação perturbam-na demais. Porém, seria coisa do acaso a coincidência temporal entre o abandono da análise, deixando de ter esse singular lugar de escuta, e o diagnóstico da endometriose, uma enfermidade muito representativa do desejo de utilizar o útero? Tenhamos em mente que nessa doença o endométrio uterino espalha-se por diversos sítios corporais não apropriados, gritando por atenção à função reprodutiva feminina.

Quando nos dispomos a pensar psicanaliticamente, não buscamos relações simplórias de causa e efeito. Seria mesmo um erro crasso afirmar que a endometriose de Lara ocorreu porque ela deixara de se analisar (até porque seus médicos estimam que ela esteja desenvolvendo a doença há aproximadamente 10 anos). E é fato que são necessárias intervenções médicas sobre a realidade corporal para tratar a doença no atual estágio em que se encontra. Também é fato que muita coisa do real não é simbolizável. Entretanto, se juntamente com os tratamentos da medicina Lara decidir colocar-se também no divã, retomando sua experiência analítica, é bem provável que terá mais chances de amenizar suas dores psíquicas, tornar a endometriose menos estranha, atribuindo-lhe algum sentido, e se curar por outras vias.


—o—


REFERÊNCIAS:


FREUD, Sigmund; BREUER, Josef. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: Comunicação preliminar. In: FREUD, Sigmund; BREUER, Josef. Estudos sobre a histeria: Obras completas - volume 2 (1893-1895). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 16-32.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022. 262 p.

GRODDECK, Goerg. O livro dIsso. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. 241 p.

LACAN, Jacques. Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975). In: Campo Psicanalítico. [S. l.], 2022. Disponível em: https://campopsicanalitico.com.br/conferencia-em-genebra-sobre-o-sintoma/. Acesso em: 20 jan. 2023.

LACAN, Jacques. Do gozo. In: LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 20: Mais, ainda. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 9-23.

NASIO, Juan-David. Psicossomática: as formações do objeto a. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 171 p.



—o—


Imagens utilizadas no post, respectivamente na ordem em que aparecem, obtidas livremente na internet:

What does endometriosis pain feel like?
https://kaldascenter.com/blog/what-does-endometriosis-pain-feel-like
[acesso em 27 jan 23]

Real Simbólico Imaginário
https://ar.pinterest.com/pin/393572454909629345/
[acesso em 27 jan 23]

'When Dreams Escape' by Bonnie Marie Leeman (UK)
https://www.pinterest.es/pin/464926361508281857/
[acesso em 27 jan 23]

Vintage blanco y negro
https://www.pinterest.jp/pin/414190496965946150/
[acesso em 27 jan 23]

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina