Psicanálise lacaniana, polarização política e armadilhas do ego

A clínica lacaniana é apresentada como um “retorno a Freud”, notório enunciado do próprio Lacan durante os anos de 1950. Mas, afinal, o que significa essa ideia de retornar a Freud? Busco respostas neste artigo, ao explorar conceitos lacanianos importantes, do modo mais didático possível. Além disso, apresento-lhes uma hipótese que explica em parte a influência marcante de Lacan para a Psicanálise no Brasil, tecendo articulações com questões políticas de nosso país, entre as quais a polarização contemporânea que expôs o calcanhar de Aquiles de muitos analistas.

Nos anos que se seguiram ao falecimento de Freud, muitos se propuseram manter vivo seu legado, dando sequência à empreitada inaugurada pelo pai da Psicanálise. No entanto, não foram poucos os que se perderam de princípios freudianos elementares e, em consequência, passaram a praticar “psicanálises” muito diferentes da ensinada por Freud. Foi em tal contexto que Jacques Lacan, percebendo os problemas advindos do distanciamento das balizas fundadoras da clínica psicanalítica original, apresentou-se como crítico contundente desse processo, desenvolvendo uma alternativa ao mesmo tempo inovadora e estruturada em Freud, hoje conhecida como clínica psicanalítica lacaniana.

Entendo que o âmago das críticas de Lacan está sobre novos tipos de abordagem que, embora anunciados como psicanálise, almejam fortalecer o Eu do paciente, ideia perseguida pelos praticantes daquela que mais tarde ficou conhecida como psicologia do ego e, de certa forma, também pelos psicanalistas que dão ênfase às chamadas relações de objeto. Lacan (1998, p. 251) afirma que esse ego, cuja força nossos teóricos definem agora pela capacidade de suportar uma frustração, é frustração em sua essência. É frustração, não de um desejo do sujeito, mas do objeto em que seu desejo está alienado, e, quanto mais este se elabora, mais se aprofunda no sujeito a alienação de seu gozo

Na concepção lacaniana, portanto, tentar fortalecer o Eu para que este seja capaz de suportar frustrações é uma tarefa que já começa fracassada, pois, por definição, resgatando a metapsicologia freudiana, o Eu, instância psíquica que abriga nossa consciência, encontra-se em estado de alienação. Isto é ressaltado durante seu segundo seminário, quando Lacan (2010, p. 18-19) sublinha que com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo. [...] O sujeito está descentrado com relação ao indivíduo. É o que [Eu] é um outro quer dizer. Sendo assim, a direção da cura analítica deve trabalhar noutro sentido, contrário ao fortalecimento egoico, ou seja, no sentido de esvaziamento do Eu. Vejamos os alicerces de tal pensamento.

Seguramente os dizeres de Lacan estão em consonância com as origens da Psicanálise. A constatação de que o Eu não é senhor em sua própria casa ficou conhecida como uma das revoluções trazidas pelo pensamento freudiano. Vale destacar aqui uma reflexão do próprio Freud (2020, p. 307-08):

Normalmente, nada nos é mais seguro do que o sentimento que temos de nós mesmos, de nosso próprio Eu. Esse Eu aparece para nós como autônomo, unitário, bem posicionado em relação a todo o resto. Que essa aparência seja um engodo, que o Eu, pelo contrário, sem fronteira nítida, tenha continuidade para dentro em uma entidade anímica inconsciente que chamamos de Isso, ao qual, por assim dizer, serve de fachada, isso foi o que somente nos foi ensinado pela investigação psicanalítica, que nos deve ainda muitas informações sobre a relação do Eu com o Isso.

Dessa forma, está indicado em Freud que o tratamento psicanalítico pauta-se na investigação da relação entre Eu e Isso. Lacan o seguiu, mostrando caminhos para esta investigação, cuja finalidade é permitir ao sujeito se desalienar e dar conta de seu desejo, o qual é inconsciente. Ao trabalhar para derrubar muralhas narcísicas, entende-se que a psicanálise passa longe das técnicas de autoajuda, que a psicanálise é de outra natureza. Trata-se de uma natureza subversiva, que, se levada às últimas consequências, pode abalar estruturas até então intocadas, inquestionáveis, causar estranheza e deixar marcas profundas. Ressalte-se que sustentar essa subversão tem um preço (caro, diga-se de passagem), mas assim como Freud mostrou-se disposto a pagá-lo, Lacan também o fez.


A expulsão, ou como disse o próprio Lacan ironicamente, sua “excomunhão” da International Psychoanalytical Association (IPA) é provavelmente o momento mais emblemático do preço que ele pagou pela “coisa freudiana”, e também representa o grande incômodo que o psicanalista francês causava em seus pares. A propósito dessa ruptura institucional, Jorge e Ferreira (2005, p. 26) apontam que depois de ter sido considerado anátema pela IPA [...], de ter mudado o tema de seu seminário — de Os Nomes-do-Pai para Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise — e de ter percebido que a IPA não é mais uma instituição freudiana, ele [Lacan] funda sua instituição e a batiza de Escola Freudiana de Paris. E embora Lacan tenha sempre enfatizado a importância de uma clínica psicanalítica firmemente alicerçada nos conceitos fundamentais elaborados por Freud, procurando resgatá-los ao longo de todo seu ensino, isso ganhou força adicional após o episódio do rompimento mencionado.

Ainda que Lacan padecesse de alguma arrogância, e considerando que os embates entre os psicanalistas de ontem e hoje estão repletos de disputas egoicas, talvez mais fortes do que as divergências teóricas em si, não é por acaso que, na segunda lição do Seminário 11, referindo-se ao que estava em jogo na sua excomunhão, [Lacan] fala de recusa do conceito e introduz os quatro conceitos freudianos fundamentais: inconsciente, repetição, transferência e pulsão (JORGE; FERREIRA, 2005, p. 26-7). A Psicanálise estava se perdendo de suas origens conceituais, mas surgiu alguém obstinado por recuperá-las, mesmo que fosse necessário um movimento com certas radicalidades para cumprir tal objetivo. 

À (re)introdução do quarteto conceitual, resgatando a obra freudiana, articulam-se o Real, o Simbólico e o Imaginário, pilares igualmente bem conhecidos da clínica lacaniana, além do conceito de objeto a, aquele ao qual Lacan se refere como sua única invenção (JORGE; FERREIRA, 2005). Entretanto, em termos clínicos, possivelmente a maior contribuição de Lacan foi ter colocado holofotes sobre a função e o campo da fala e da linguagem no ato analítico, naquele que me parece ser um dos textos mais importantes de seus Escritos (LACAN, 1998, p. 247):

Afirmamos, quanto a nós, que a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada, portanto, quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala.

Ao ordenar os conceitos psicanalíticos no campo da linguagem, da fala do analisante, fica delimitado o lugar de ação do psicanalista. Define-se assim que o material de trabalho do analista é unicamente o discurso do sujeito, as palavras que jorram dele próprio. O analista não deve colocar palavras na boca do analisante, seu ofício se dá sobre o que de fato é dito, ciente de que muitas vezes a pessoa diz sem saber o que diz. O analista, então, dialeticamente, marca, pontua e apresenta ao analisante as verdades em sua fala, outrora encobertas, denegadas, distorcidas ou simplesmente despercebidas e negligenciadas.

A consequência disso é que não temos na psicanálise uma prática de doutrinação, mas de descoberta e assunção das verdades singulares que realizam a história de cada sujeito, conforme Lacan (1998, p. 303) afirma: a análise só pode ter como meta o advento de uma fala verdadeira e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação com o futuro. A manutenção dessa dialética opõe-se a qualquer orientação objetivante da análise.

Ao recusar orientações objetivantes e tendências doutrinadoras, a psicanálise lacaniana coloca-se como uma práxis defensora das liberdades individuais, o que talvez explique sua robusta expansão para países latino-americanos que viviam sob ditaduras nas décadas de 1960 e 1970, como foram os casos de Brasil e Argentina. Especificamente em nosso país, com a transição para um regime em tese democrático e a garantia constitucional da liberdade de expressão, a psicanálise floresceu e ao longo das últimas décadas diversas instituições psicanalíticas foram criadas.


Nos anos mais recentes, entretanto, os pilares democráticos brasileiros mostraram-se frágeis e descortinou-se o que vem sendo apontado como uma crise entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, crise que abriu espaço para ideias e discursos totalitários, tanto de vertentes políticas de direita quanto de esquerda (A CRISE… 2022). No meio do caminho dessa polarização, encontramos alguns psicanalistas dispostos a escutar o que esses extremos têm a dizer e o que pode estar neles representado. Todavia, muitos psicanalistas, aparentemente a maioria, escolheram um lado como "o certo".

Posicionar-se politicamente e lutar por ideias nessa seara, enquanto cidadão vivendo num regime democrático, obviamente é direito de qualquer pessoa, inclusive daquelas que se ocupam do ofício de analista. Até aí tudo bem. O problema começa quando se desqualifica e não se tolera o direito do outro ter um posicionamento diferente. Pior ainda, para um psicanalista, é quando esse tipo de intolerância contamina seu local de trabalho, o setting analítico, conforme ilustrado pelo fragmento clínico que registrarei a seguir, oriundo de uma história real, a mim contada por pessoa próxima. Farei o relato de modo a resguardar sigilo sobre as partes envolvidas. 

Essa pessoa estava em análise há mais de dois anos e recentemente o(a) psicanalista, de formação lacaniana, começou a trazer para as sessões o tema das eleições presidenciais no Brasil. À revelia do discurso da analisante, que sequer tinha apresentado a disputa eleitoral como uma questão para a análise, o(a) psicanalista, ciente de que havia uma história de abuso sexual no caso, afirmou que se ela votasse em determinado candidato seria como se estivesse votando em seu abusador. Indignada por essa interpretação, que lhe pareceu inapropriada e sem sentido, a pessoa decidiu pôr fim àquela análise. 

Casos assim, em que o analista cai nas armadilhas do seu Eu, revelando as próprias resistências e complexos internos que possui, não são incomuns e podem atrapalhá-lo na absorção daquilo que lhe é apresentado pelo analisando (FREUD, 2017, p. 99), mesmo que se saiba, teoricamente, que quando o psicanalista [de fato] ocupa o seu lugar, a sua realidade psíquica muda e se estrutura como uma outra realidade, sem componente egoico (NASIO, 1999, p. 125).

Quando um analista é vítima de armadilhas do ego, isto indica que ainda há necessidade de se aprofundar em sua análise pessoal. Também é possível que esteja lhe faltando compreensão das obras de Freud e Lacan, leituras que, é bom que se diga, sempre devem ser (re)visitadas por qualquer psicanalista. Mas, para além das armadilhas egoicas, a vinheta clínica aqui registrada demonstra a dificuldade de se concentrar o ato analítico dentro do campo estrito da fala e da linguagem do sujeito. Esta, porém, não nos esqueçamos, foi a luta que Lacan empreendeu em sua trajetória na Psicanálise e, portanto, a que se espera daqueles que dignamente desejam segui-lo enquanto psicanalistas.

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REFERÊNCIAS

A CRISE dos 3 Poderes. Produção de Brasil Paralelo. [S.I.]: Brasil Paralelo, 2022. P&B.

FREUD, Sigmund. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico (1912). In: FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica: Obras incompletas de Sigmund Freud. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 93-106.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura e outros escritos: Obras incompletas de Sigmund Freud. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 305-410.

JORGE, Marco Antonio Coutinho; FERREIRA, Nadiá Paula. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 87 p.

LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. p. 238-324.

LACAN, Jacques. Psicologia e metapsicologia. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-1955. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 11-24.

NASIO, Juan-David. Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Zahar, 1999.


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Fontes das imagens utilizadas neste post, respectivamente na sequência em que aparecem:

https://www.juliet-artmagazine.com/en/shilpa-gupta-do-not-see-do-not-hear-do-not-speak-again/

https://danieltutt.com/2018/10/23/lacan-and-the-politics-of-psychoanalysis-an-interview-with-thomas-svolos/

https://www.domusweb.it/en/art/2020/10/09/art-as-a-political-manifesto.html

https://www.newyorker.com/magazine/1980/11/24/the-impossible-profession-i

[acesso em 11 nov 2022]

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