Quando afetos alimentam gastrites

Afeto é uma palavra cujo significado ordinário seria o sentimento terno que nutrimos por alguém, mas ela pode também ser utilizada para expressar, sem a pretensão de apresentar aqui uma erudita definição, aquilo que nos afeta. Deste segundo tipo de afeto, particularmente daqueles afetos que nos causam aflições, a psicanálise vem se ocupando desde os seus primórdios, quando Freud analisava, estudava e teorizava sobre casos de histeria. 

Não costumam nos causar angústia os afetos atrelados a ideias prazerosas. Por exemplo, imaginemos como se afetou o apaixonado torcedor palmeirense ao ver seu time do coração fazer um gol importante, como aquele que o Palmeiras marcou contra o Santos nos últimos minutos da final da Libertadores 2020, valendo ao alviverde o título do torneio continental. Além disso, é relativamente simples reconhecermos ideias conscientes relacionadas a afetos desprazerosos. Para usar o mesmo exemplo futebolístico, pensemos como se afetou o torcedor aficionado pelo Santos ao assistir o mesmo gol...

Diferentemente dos afetos ligados a ideias conscientes, prazerosas ou não, pode ser extremamente difícil identificar por que tantas vezes nos afetamos sem motivo aparente. Questões afetivas para as quais as respostas não são óbvias têm relevância notória à psicanálise, primeiro porque, conforme Freud menciona ao tecer comentários sobre o caso Dora, a ação do afeto ligado a uma ideia inconsciente é mais intensa e, como ele não pode ser inibido, mais prejudicial que a do afeto ligado a uma ideia consciente; depois, porque é justamente sobre tais questões afetivas que o trabalho analítico pode demonstrar muitos dos seus efeitos.

Na obra “O Inconsciente”, Freud explica que ideias são investimentos de traços mnemônicos, enquanto os afetos e sentimentos correspondem a processos de descarga, cujas expressões finais são percebidas como sensações, o que torna o corpo intrinsecamente relacionado às descargas afetivas. Nesse mesmo texto, Herr Professor ressalta que, embora uma ideia possa sucumbir ao processo denominado repressão, o afeto a ela ligado jamais será inconsciente. De fato, às vezes somos tomados por sensações ruins, sentimo-nos angustiados ou mesmo com sintomas que se apresentam na esfera somática (corporal), e simplesmente não encontramos explicações conscientes para tais estados afetivos. São casos em que o afeto comprova sua existência ao se fazer sentir, no entanto a ideia a ele ligada está inacessível ao indivíduo afetado.

Isso não quer dizer que uma ideia reprimida não possa ser encontrada, claro que com algum trabalho. No clássico “A interpretação dos sonhos”, Freud afirma que a psicanálise reconhece todo afeto como justificado, mostrando-nos o caminho certo para compreender os afetos sem motivos aparentes: buscar a representação que ao afeto pertence, que foi reprimida por um substituto. Antes de iniciar tal busca, porém, convém revisitar o texto de Freud sobre o inconsciente, onde ele escreve que, em decorrência da repressão, o afeto pode permanecer como é (no todo ou em parte), ter seu desenvolvimento interrompido (supressão do afeto), ou transformar-se num montante de afeto qualitativamente diferente, sobretudo em angústia. 

Quero chamar atenção para essa possibilidade de transformação dos afetos em angústia, particularmente em tipos somáticos de angústia, ou seja, aqueles que se configuram essencialmente como tensões físicas, registradas no corpo, e para os quais não há representação psíquica. As pessoas que se sentem assim habitualmente buscam atendimento de um médico, não de um analista. Portanto, compreender essa dinâmica afetiva deveria ser de particular interesse à medicina, especialmente quando o destino dessa porção de afeto sem representação foi somático. Se não há tal entendimento da parte do médico, devido à sua formação acadêmica não raro centrada na doença, é comum que pacientes angustiados sejam tratados de maneira rasa, apenas com solicitações de exames complementares para afastar potenciais lesões de órgão e prescrições de medicamentos para alívio sintomático. Desta forma, os pacientes podem ficar cronicamente dependentes de medicações, cuja suspensão geralmente resulta no reaparecimento dos sintomas, ou têm seus sintomas deslocados para outra formação patológica, de natureza psíquica ou comportamental, ou para uma diferente região do corpo. 

Recordo-me então de um caso, cujo personagem principal apresentarei com o nome fictício Wander. Ele tem me procurado como médico, não como analista, algo que precisa estar claro desde o início desta vinheta clínica, pois é bastante distinto o tipo de demanda que se leva a uma consulta médica se comparado à demanda de análise. No entanto, podemos, enquanto médicos, nos valer da escuta analítica, que decerto reduz as iatrogenias produzidas a partir de condutas superficialmente embasadas, e apesar de eu ter falado sobre isso outrora, vale o reforço.

Pois bem, o senhor Wander sofre há alguns anos de dores no estômago, de modo independente do tipo de alimento que ele coma. Porquanto suas dores são recorrentes, e levando em conta o fato de ele estar idoso, já o submetemos a exames endoscópicos em mais de uma oportunidade, pois é importante investigar a possibilidade de úlceras e cânceres estomacais nesse contexto. Todavia, nunca encontramos nada mais do que gastrites, em variadas intensidades. A inflamação da gastrite era esperada, tendo em vista a apresentação do quadro clínico e sua boa resposta às medicações antiácidas da classe dos chamados inibidores da bomba de prótons, entre os quais o representante mais conhecido é o omeprazol.

Tentar inibir a produção da secreção ácida do estômago do paciente sem buscar o entendimento de seu, digamos, estado afetivo inflamado, não favoreceria a real resolução do problema. Então, certa vez perguntei: o que está lhe afetando na vida? Foi quando ele se abriu e revelou um desafeto conjugal que vem se arrastando há anos. Wander vive com a esposa e uma das filhas na praia dos Açores, localizada no extremo sul da ilha de Santa Catarina, onde impera a tranquilidade social. Entretanto, essa calmaria toda o incomoda desde que se instalaram por lá, pois ele, carioca de nascimento, sempre apreciou lugares movimentados. A esposa, ao contrário, não abre mão dos Açores e é avessa a toda e qualquer sugestão de Wander para a família se mudar daquela praia.

Depois de verbalizar-me o conflito mencionado, o homem conseguiu reduzir as doses de omeprazol por um tempo, mas volta e meia retorna às minhas consultas queixando-se dos mesmos sintomas. Desde então, fizemos várias trocas de inibidores da bomba de prótons: esomeprazol, pantoprazol, dexlanzoprazol, enfim, todos da classe se prestam a aliviar seus sintomas, porém não mais do que temporariamente. Ao questionar-lhe sobre o conflito com a mulher, relatou que nada mudou, mas disse se sentir mais aliviado e tranquilo quando pode conversar comigo sobre os contrastes entre “a muvuca do Rio de Janeiro” e a calmaria dos Açores. 

Na última ocasião em que nos vimos, Wander contou que esteve na Flórida, visitando outra filha, a qual se mudara em definitivo para os Estados Unidos. Ele ficou três meses na terra do Tio Sam, achou tudo “maravilhoso e organizado”, além de movimentado, e percebeu que, mesmo sem tomar antiácidos durante o período da viagem, não sentiu nenhum desconforto estomacal. Maravilhado, pensou até em se mudar para uma pequena cidade ao norte de Miami. Só pensou.

Sabe-se que encontrar, tornar consciente a representação originalmente ligada a um afeto, ou desligar o afeto da representação substituta, configura-se árdua tarefa para a psicanálise, notoriamente nos casos em que há significativa resistência por parte do paciente. De volta aos comentários sobre o caso Dora, Freud nos alerta que, para o assombro daquele que pretende curar o doente, pode-se tropeçar numa grande resistência, a qual ensina que a intenção do paciente de se livrar de seus males não é nem tão cabal nem tão séria quanto parecia. Confesso que não sei muito sobre as intenções e os desejos inconscientes do senhor Wander, e provavelmente nem ele próprio saiba, haja vista sequer ter iniciado uma análise, mas enquanto pudermos aliviar um pouco de suas tensões através da fala, ainda que esporadicamente, talvez estejamos evitando que uma úlcera perfure seu estômago.


**este trabalho foi originalmente apresentado na Jornada de Cartéis, Grupos de Trabalho e Grupos de Estudo da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, realizada em 06 e 07 de agosto de 2021.

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REFERÊNCIAS:

Freud Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume II: Estudos sobre a Histeria (1893~1895). Rio de Janeiro: Imago; [198-] década provável. 220 p.

Freud Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume VII: Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos (1901~1905). Rio de Janeiro: Imago; [198-] década provável. 196 p.

Freud Sigmund. Obras completas, volume 4: A interpretação dos sonhos (1900). São Paulo: Companhia das Letras; 2019. 729 p.

Freud Sigmund. Obras completas, volume 12: Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras; [201-] década provável. 225 p.

Silva Antonio Franco Ribeiro, Caldeira Geraldo. Alexitimia e pensamento operatório: a questão do afeto na psicossomática. In: Mello Filho J, Burd M (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 158-166.

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Imagens da postagem, respectivamente:

1. Butterflies in my Stomach – Artwork by Jennifer

Disponível em: https://www.jenniferkronmiller.art/productshh/butterflies-in-my-stomach [acesso em 08 ago 2021]

2. Mask of Hands, Anxiety Painting – by Rivka Korf

Disponível em: https://www.saatchiart.com/art/Painting-Mask-of-Hands-Anxiety/995997/3646992/view [acesso em 08 ago 2021]

3. Mr. Stomach Painting – by Denis Shipilov

Disponível em: https://www.saatchiart.com/art/Painting-Mr-Stomach/1180040/4793405/view [acesso em 08 ago 2021]

Comentários

  1. Caro colega, é sempre muito enriquecedora a apreciação de uma abordagem que supere a tão estigmatizada oposição corpo-mente. As gastrites, não todas, evidentemente, denotam a inscrição desse registro palavreiro que faz do sujeito, ao acessar o corpo senão pelo significante que o representa, um objeto para a medicina que não pode ser tratado como um amontoado de processos metabólicos e bioquímicos. Isso impõe ao profissional da área médica uma sensibilidade muito acurada para efetivar uma correta prescrição farmacoterapêutica bem como um encaminhamento profícuo quando essas estratégias não se mostram suficientes. O « afeto » e os « conteúdos ideativos » dos primários e secundários de Freud são sem dúvida uma pista muito fecunda para que possamos afinal encontrar no Inconsciente, na medida em que não vai sem o corpo, aquilo que pode ser, através do discurso que o circunda, um caminho para o sujeito se relocalizar em seu sofrimento. E quiçá até dele se livrar. Os franceses dizem, como na imagem compartilhada, "avoir des papillons dans le ventre", algo que talvez para nós possa ser o "friozinho na barriga". Não universal, esse friozinho pode ser geleira que queima. A experiência da psicanálise, pela "atenção uniformemente suspensa", sustenatada por um sujeito advertido, possibilita a "irrupção livre", uma nova borda literal que dê consistência ao indizível do corpo, que sempre existe.

    Parabéns pelo trabalho e pelo texto. Abc. Daniel

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    1. Caro Daniel,
      Que honra receber sua visita neste espaço e o registro desse comentário, tão rico!
      Obrigado e um forte abraço.

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  2. Bruno, parabéns pela exposição!
    Abraços
    David, UBS2 RF1

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    1. Prazado David,
      Obrigado por sua visita e comentário aqui no blog!
      Abraços

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