Uma breve crônica da medicina moderna

“Doutor, eu posso te processar se você não pedir o exame pra mim.” Foi exatamente assim, em tom de ameaça, que uma mulher jovem, de 20 e poucos anos, falou comigo recentemente em consulta, quando inicialmente recusei solicitar uma ressonância magnética de crânio para ela. Esse caso me fez pensar e refletir sobre diversos assuntos. Boa oportunidade, portanto, para escrever e registrar algumas ideias. Vejamos.

O exame mencionado, supostamente indicado por outro médico, segundo informou a jovem, seria para “investigar sequelas neurológicas da Covid-19”. No entanto, se a história é verídica, o colega sequer se deu ao trabalho de formalizar a solicitação, talvez por saber, em seu íntimo, que era absurda. Não porque sequelas neurológicas dessa doença inexistam, mas porque a mulher em questão apresentava inespecíficas e eventuais parestesias (“formigamentos”), queixas somáticas claramente incompatíveis com doença neurológica na ocasião, tendo em vista também que o exame físico era normal e a cognição estava preservada. A paciente tinha de fato passado pela Covid-19, contudo como um quadro gripal leve, e não teve nenhum sintoma que remetesse à meningite ou encefalite potencialmente causadas pelo coronavírus. Aquele suposto médico, todavia, alheio ao que a clínica lhe dizia, teria optado pelo que chamarei de medicina às avessas, ao colocar a tecnologia em primeiro lugar, destituindo a clínica de sua soberania.

Apesar de a medicina às avessas ser algo corriqueiro, bastante prevalente atualmente, a lição que mais me marcou durante a graduação médica, aprendida com alguns dos meus melhores mestres, foi que a clínica é soberana. Isto reflete um dos fundamentos da Medicina, a saber: antes de qualquer outra coisa, quando nos propomos a clinicar, estamos a lidar com seres humanos. Sendo assim, embora as novas tecnologias sejam muito úteis, elas são (ou deveriam ser) recursos complementares à relação médico-paciente. Não foi à toa que os exames complementares receberam esse nome.

Quando um médico prioriza a tecnologia em detrimento da clínica, o resultado que se tem é o processo de desumanização da medicina, também frequentemente observado em nossos dias. Associado ao problema de não se estruturar o atendimento médico em função do humano, há uma tendência de o profissional incorrer no uso inapropriado do poder atribuído a ele. Que poder seria esse? Um dos mais importantes dos quais se tem notícia: o conhecimento sobre a doença.

Ilustremos tal poder voltando ao caso da moça que me demandava a ressonância magnética. Ela acreditou enfaticamente no que o outro médico teria lhe dito, pois em tese ele detinha conhecimento sobre a Covid-19. E justamente essa crença motivou as ações subsequentes da jovem, bem como alimentou sua ansiedade sobre a possibilidade de estar doente e a esperança num exame que definiria seu diagnóstico. Só que não.

Confesso que senti um pouco de raiva ao ser coagido com o pedido do exame de imagem àquela maneira. Entretanto, ao entender que o colega utilizou mal o poder a ele conferido, percebi que seria mais sensato utilizar de empatia pela moça do que deixar a raiva dominar a relação transferencial. E, oferecendo-lhe um pouco mais de escuta naquela consulta, instiguei-lhe ir além do convencional, falar algo de si e de suas preocupações. Assim, descobri que ela sofrera ataques de pânico outrora, bem antes da Covid-19, e que o medo de morrer ou de ficar com uma sequela reacendeu muito forte nela nestes sombrios tempos pandêmicos.

No final da consulta, após expor meus argumentos e explicar à paciente os motivos pelos quais eu considerava a ressonância magnética um exame inútil naquele contexto, ela me disse, com os olhos lacrimejando, que já havia agendado o exame, que o pagaria com recursos próprios, não do sistema de saúde, e que fazê-lo a deixaria mais tranquila. Praticamente suplicou-me. Aparentava haver ali uma resistência ainda muito firme da parte dela em desistir da ressonância; eu sabia que não a venceríamos naquele dia. Então, sem abdicar de meus valores como médico, cedi ao pedido, interrogando-me se era o correto a se fazer e deixando claro na requisição do exame que não havia suspeita clínica de sequelas neurológicas da doença da vez. Por outro lado, pode ser, afinal, que estávamos mesmo lidando com sequelas, no entanto de algo bem mais profundo, de outra natureza, invisível às ressonâncias ou a quaisquer outros recursos tecnológicos.

Comentários

  1. As imagens da postagem foram obtidas livremente na internet e estão disponíveis, respectivamente, em:

    https://wallpaperaccess.com/medicine-art

    https://umaine.edu/research/2019/10/01/new-program-combines-medicine-arts/

    https://www.saatchiart.com/art/Painting-Panic/924138/3397310/view - Panic, by Lori Doty

    [acesso em 16 mar 2021]

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  2. Parabéns, Bruno...sensível e pertinente, como sempre.

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  3. Amei este relato e o pujante humanismo no atendimento. É o que procuro nos atendimentos médicos, cuja maioria, está muito distante do humano, e como foi dito, têm priorizado a tecnologia em detrimento da clínica.

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    1. Olá, Stella!
      Agradeço por sua leitura e pelo comentário neste espaço.
      Um abraço.

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