Em tempos de pandemia, nem só de coronavírus padecem os sujeitos

Em meio à pandemia de coronavírus, diversas medidas foram adotadas com o objetivo de evitar a disseminação do microrganismo. Nos hospitais, logo na entrada estabeleceu-se um novo esquema de triagem, através do qual um enfermeiro questiona se o paciente possui algum sintoma respiratório, por exemplo, tosse, dor de garganta e/ou dispneia (falta de ar), e uma vez que o sujeito relate sentir um ou mais desses é imediatamente encaminhado para realizar a consulta médica numa ala separada das demais, destinada a receber apenas casos suspeitos ou confirmados de Covid-19, como é conhecida a infecção causada pelo novo coronavírus. No entanto, nessa área, em tese contaminada e não raro temida, nem sempre chegam pessoas triadas adequadamente.

Ilustrarei tal situação, de triagem inapropriada, contando o caso de Deise (nome fictício para uma pessoa real). Ela, uma mulher de 30 e poucos anos, chegou à ala Covid, onde eu atendia na ocasião, queixando-se de dores nas costas, que pioravam ao inspirar profundamente, e de uma dor que, nos dizeres da própria Deise, “vinha do estômago e subia pelo peito”, causando-lhe sensação de “enforcamento”. Não havia falta de ar entre as queixas, todavia, suponho eu, o enfermeiro talvez tenha entendido a questão da piora inspiratória e a dor que subia pelo peito como sendo sintomas respiratórios. Equívoco compreensível, pensei, mas o fato é que a mulher chegou até mim muito angustiada, dizendo que seu atendimento não deveria ocorrer naquele setor do hospital.

Equívocos frequentemente acontecem quando nossa escuta é apressada, e um profissional triador, caso se deixe levar pela rapidez costumeira que o sistema de saúde exige (seria isso saudável?), pode ficar com pouca margem para obter uma percepção ampliada das situações que lhe são apresentadas. Ampliar a percepção permite-nos maior chance de identificar aquilo que realmente perturba um sujeito, que no caso de Deise não era o coronavírus. Diferente do colega da triagem, eu disponibilizei mais tempo para ouvi-la. Naquele dia 20 de abril, questionei por que ela achava que não deveria ser atendida na ala Covid, ao que a mulher respondeu contando-me uma história de luto mal elaborado.

Porém, não haveria possibilidade de conhecer a narrativa de Deise sem que se colocasse um freio na velocidade habitual das coisas. Cabe dialogar com a obra “O tempo e o cão”, de Maria Rita Kehl, na qual ela afirma que a temporalidade contemporânea, frequentemente vivida como pura pressa, atropela a duração necessária que caracteriza o momento de compreender, a qual não se define pela marcação abstrata dos relógios. […] É razoável supor que a temporalidade moderna sacrifica o sujeito aos seus imperativos. Apesar de o funcionamento do sistema estar atrelado à temporalidade mencionada e de estarmos nele inseridos, acredito que ainda somos capazes de criar espaços de dilatação do tempo, espaços nos quais as histórias possam ser contadas. Assim o fiz. 

Relatou-me Deise que há aproximadamente dois anos, sua segunda filha, na oportunidade ainda bebê, com pouco menos de quatro meses de vida, faleceu. A causa da morte, conforme o atestado de óbito informava, teria sido “afogamento com leite materno”. Desde então aquela mãe sofria profundamente, afetada pela perda. Foi diagnosticada com depressão, tentou cometer suicídio e passou a tomar três classes de psicofármacos diferentes (escitalopram, amitriptilina e clonazepam). Disse-me que os tomava “para esquecer, para não pensar no falecimento da filha e para conseguir dormir”. Mas não adiantava. Em especial aos 20 dias de cada mês, fosse qual fosse o mês, Deise remetia-se ao dia 20 de dezembro em que nascera a filha perdida, e via-se tomada por uma violenta crise de ansiedade, com os mesmos sintomas que relatou ao enfermeiro da triagem, depois a mim. Ela já sabia, portanto, o que a afetava na ocasião, uma vez mais.

Algo intrigou-me: afetava Deise o dia do nascimento da criança, não da morte. Depois de verbalizar-lhe essa constatação, pedi permissão para iniciar seu exame físico. Certifiquei-me que os pulmões estavam limpos, não havia esforço respiratório e a saturação periférica de oxigênio era normal. Tampouco estava febril a paciente. Expliquei que sua condição clínica não indicava doença orgânica no momento, tentando tranquiliza-la.

Vale retornar à mesma referência de Maria Rita Kehl; noutro trecho ela escreve: assim como um significante representa o sujeito para outro significante, assim como nenhum ato de linguagem se completa fora da relação com o outro, o sentido e o saber extraídos de uma vivência só adquirem o estatuto de experiência no momento em que aquele que os viveu consegue compartilhá-los com alguém. No contexto do atendimento hospitalar de Deise, outros profissionais poderiam considerar de pouca importância ouvir algo da história dela. Entretanto, verificamos que engajar a paciente no relato de sua experiência foi fundamental ao atendimento, pois, antes mesmo de realizar o exame físico, a experiência compartilhada pela mulher deu-me pistas fortíssimas de que eu não estava diante de um caso de doença orgânica, muito menos de uma infecção por coronavírus.

Qual seja a relação entre profissional de saúde e pessoa atendida, a escuta é essencial a essa relação quando a pessoa tem capacidade para falar. No caso de Deise, a escuta permitiu inclusive que intervenções desnecessárias fossem evitadas, por exemplo, manter a paciente no hospital esperando por resultados de exames complementares. Em seguida, perguntei à mulher o que mais eu poderia fazer para ajudá-la. Ela mostrou-se reticente, chorou por alguns segundos, depois me pediu que lhe receitasse algo que fizesse aquela dor desaparecer. Respondi que certas dores não podemos tratar com medicamentos. Perguntei há quanto tempo ela se sentia “enforcada” por aquela dor, sem poder nomeá-la, ao que ela respondeu “nem se lembrar”, tanto tempo havia. Por fim, revelou-me a culpa que sentia porque, em tese, teria sido seu próprio leite o causador da morte da bebê. 

Silenciei-me breves instantes diante da revelação de culpa. Houvesse ou não confirmação anatomopatológica de que a tenra criança padecera asfixiada por leite materno, fato é que um atestado de óbito escrito em tais moldes soava cruel, ao imputar à mãe um tipo de responsabilidade sobre a morte da filha. Refletindo sobre essa crueldade, pensei se seria possível um alimento tão importante para os bebês lhes fazer mal. Concluí que sim, caso fosse dado a eles em excesso, mas naquela hora seria deveras inoportuno falar sobre maternagem excessiva, tampouco seria desejável continuar o assunto com a mulher. Por enquanto, para uma conversa na ala Covid, ela falara bastante, a ponto de admitir a existência de uma culpa que parecia ser extremamente dolorosa para si.

Era a primeira vez que Deise admitia sentir essa culpa, então levantei a hipótese de que seu reconhecimento pudesse reduzir, ou até eliminar, a incidência dos sintomas corporais que se repetiam mensalmente. Pode-se pensar tais descargas somáticas como excessos pulsionais que escoam para o corpo, os quais, enquanto excessos, em algum momento ultrapassaram a capacidade de simbolização do sujeito, porém não deixaram de ser significantes. Lacan, no Seminário 1, indica que o discurso do qual se ocupa a psicanálise não se dá somente pelo verbo, mas também pelo corpo, ao afirmar que somos [...] levados pela descoberta freudiana a escutar no discurso essa palavra que se manifesta através, ou mesmo apesar, do sujeito. Pelo seu corpo mesmo, o sujeito emite uma palavra que é, como tal, palavra da verdade, uma palavra que ele nem mesmo sabe que emite como significante. É que ele diz sempre mais do que quer dizer, sempre mais do que sabe dizer

Ainda havia muito o que pensar e dizer, concordou Deise. Encorajei-a então a trilhar um novo caminho, diferente do que ela percorrera até ali, para tratar sua dor através de outras vias. Com alguma gratidão no olhar, ela aceitou o encaminhamento que lhe ofereci a um terapeuta que pudesse continuar o trabalho de auxiliá-la a colocar seu sofrimento em palavras. E a propósito das palavras, recordo-me das que Joyce McDougall proferiu no epílogo do livro “Teatros do Eu”, para falar sobre a análise, esta que seria um teatro em que se reveem todos os roteiros, remodelam-se os rostos, reescrevem-se todas as réplicas. […] É sobre essa ocupação que se desvendará a verdade do indivíduo, quando ele tiver reconhecido grande parte das tramas que compõe seu tecido; quando ele tiver ajustado as contas com os personagens amados-odiados, desejados-rejeitados que o habitam; quando ele os tiver possuído em vez de ter sido por eles possuído; quando enfim ele tiver feito o inventário de sua herança e tiver tomado seu lugar no tabuleiro das gerações.

Talvez não fosse exatamente numa psicanálise que Deise iria se engajar, contudo, se ao menos fosse em alguma psicoterapia, importante mesmo seria ela conseguir um lugar de escuta e elaborações psíquicas, preferencialmente um lugar para dilatar o tempo, contrapondo-se à rapidez e ao encurtamento do tempo, tão comuns à vida moderna. Também havia a possibilidade, infelizmente real para muitíssimos casos, que a mulher continuasse alheia a qualquer tratamento que lhe desse voz. De uma coisa, no entanto, podemos nos convencer: em tempos de pandemia, nem só de coronavírus padecem os sujeitos.

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*Este trabalho foi originalmente apresentado à Maiêutica Florianópolis - Intituição Psicanalítica, na atividade intitulada "De que males padecem os sujeitos?", realizada em agosto de 2020.

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  1. REFERÊNCIAS:

    KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2015.

    KLEIN, Thais et al. A angústia nas neuroses atuais: uma questão para a clínica contemporânea?. Cad. psicanal., Rio de Janeiro, v. 38, n. 35, p. 49-64, dez. 2016. Disponível em . Acesso em 08 jun. 2020.

    LACAN, Jacques. A verdade surge da equivocação. In: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Cap. XXI. p. 339-54. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Betty Milan].

    MCDOUGALL, Joyce. Teatros do eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Zagodoni, 2015. 208 p.

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    As imagens da postagem, respectivamente na ordem em que aparecem no texto, estão disponíveis na internet em:

    https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/28/coronavirus-ultimas-noticias-e-o-que-sabemos-ate-esta-terca-feira-28.htm

    https://www.artmajeur.com/en/powermagicalpainting/artworks/11939480/time-clock

    https://www.deviantart.com/optic-echo/art/god-of-pain-44072886

    https://br.pinterest.com/pin/740490363719571561/

    [acesso em 11 ago 2020]

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