Angústia e pandemia

Anguish, por August Friedrich Albrecht Schenck

A obra “Anguish”, do artista August Friedrich Albrecht Schenck, revela uma estreita relação entre morte e angústia. A morte é uma situação de perda para a qual não há respostas prontas, como usualmente são as demais circunstâncias nas quais uma angústia avassaladora se impõe. De acordo com Lacan, no Seminário 10, a angústia é esse corte – esse corte nítido sem o qual a presença do significante, seu funcionamento, seu sulco no real, é impensável; é esse corte a se abrir, e deixando aparecer [...] o inesperado, a visita, a notícia [...]. A angústia não é a dúvida, a angústia é a causa da dúvida. A morte, provavelmente o pedaço de real mais angustiante para a existência humana, frequentemente é esse inesperado, essa visita, essa notícia. A atual pandemia de coronavírus, por andar entrelaçada com a ideia da morte, angustia. 

Entretanto, o fato de não se saber como ficará o mundo depois dos efeitos sociais e econômicos do Covid-19 também tem sido bastante angustiante para muitas pessoas, mais até do que o medo de morrer agonizando pela síndrome da angústia respiratória grave. Em verdade, os acontecimentos deflagrados pelo presente pandêmico trazem consigo um excesso de real que chega a ser escrachado, às vezes até zombeteiro. O real se apresenta para implodir com força as pretensões do homem de controlar o curso do mundo, de dominar a natureza, de achar que terá todas as respostas, porque o cenário que se apresenta está ao avesso disso, repleto de incertezas, de potenciais perdas e faltas.

Por ora, apenas previsões e suposições podem ser feitas sobre o futuro da humanidade depois da pandemia. E assim foi no passado, quando outras enormes dificuldades geraram perguntas cujas respostas nunca soubemos antes da experiência de observar, pensar, vivenciar, agir. De novo é possível que tenhamos chance de aprender algo a posteriori, todavia não chegaremos a qualquer entendimento sem antes experimentarmos a sensação de angústia, cada um a seu modo, com seus singulares recursos para lidar com ela.

A crise é inesperada, desagradável, indesejável, embora não indesejada; pois se não há respostas para ela num primeiro momento, quando a angústia predomina, as dúvidas que surgem a seguir, causadas pela própria angústia, podem ser o alicerce da capacidade inventiva de uma nova coletividade humana, com laços fortalecidos e prioridades menos egocêntricas. Talvez toda essa angústia tenha mesmo alguma serventia, pois algumas pessoas que vivem como amortecidas somente conseguem despertar perante o trauma. Nossas histórias, e igualmente a psicanálise, mostram que a dor, apesar de traumática, costuma ser o ponto de partida de avivamentos e lindas criações.

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  1. REFERÊNCIAS:

    LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia, 1962-63. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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    A imagem utilizada na postagem está disponível e foi obtida na Wikipédia:
    https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:August_Friedrich_Albrecht_Schenck_-_Anguish_-_Google_Art_Project.jpg [acesso em 11 maio 2020]

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