Há psicanálise no ambiente virtual?

Após mais de 20 dias de quarentena, devido à pandemia viral, enfim o analisante pôde voltar ao consultório do analista, graças ao afrouxamento nas medidas de isolamento social. Ao adentrar a sala de espera, observou que o recinto ainda era o mesmo, mas nem tanto. As paredes não mudaram, os móveis e os quadros conhecidos estavam ali, entretanto havia álcool gel em abundância sobre a mesinha de centro. E havia máscaras, muitas máscaras; um pacote cheio delas. Não pegou nenhuma, pois já trazia a sua própria de casa. Não queria correr o risco de contaminar o psicanalista ou de por este ser contaminado. O vírus, afinal, circula por aí e ninguém sabe exatamente onde está. Ninguém o vê, mas seus efeitos às vezes são percebidos. Pensou no inconsciente. Pensou na transferência analítica. Parou de pensar nessas coisas quando o analista abriu a porta.

O analista também usava máscara. O cumprimento não foi como o costumeiro, uma vez que os apertos de mãos não estavam apropriados, igualmente por causa do invisível microrganismo. Porém, deram um jeito: tocaram-se os cotovelos. Era verdade que os corpos de ambos estavam ali presentes, ainda que um pouco amordaçados pelas máscaras e recomendações sanitárias de afastamento.

O consultório e o divã também eram os mesmos, apesar de algumas novidades, como um tapete de entrada contendo solução para higienizar os calçados, o ar condicionado desligado e as janelas totalmente abertas. A temperatura era amena e o sol brilhava soberano naquele dia, favorecendo o cenário. E ainda que os ruídos que vinham das ruas atrapalhassem eventualmente algumas escutas e silêncios elaborativos, não importaram essas pequenas dificuldades, pois analista e analisante estavam lá, de corpo e alma presentes.

A dupla analisante-analista em pauta não considerou utilizar recursos audiovisuais tecnológicos durante o período de distanciamento no real, embora outras pessoas estivessem (e estejam) experimentando a possibilidade de haver psicanálise em encontros virtuais. Afinal, pode haver? 


Pensar uma resposta adequada a essa questão implica, inicialmente, levar nossa atenção ao conceito de transferência analítica. Lacan, no capítulo X do seminário 11, afirma que tal conceito é determinado pela função que tem numa praxis. Este conceito dirige o modo de tratar os pacientes. Inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito. Fica claro, portanto, que o tratamento é dirigido pela transferência. Logo, o manejo da transferência é prerrogativa para que haja análise e para que uma análise seja conduzida.

A seguir, suponho, teremos condições de compreender que existe uma dependência entre transferência e presença real do analista. Comecemos recorrendo aos escritos de Freud, mais especificamente ao texto “Lembrar, repetir e perlaborar”, quando ele fala acerca da neurose de transferência, na qual repousa o trabalho terapêutico da análise. Herr Professor ressalta que a transferência cria [...] uma zona intermediária entre a doença e a vida, onde se dá a transição da primeira para a segunda.

O motivo pelo qual a configuração dessa zona intermediária depende dos corpos presentes, tanto do analisante quanto do analista, é a questão pulsional que move o processo psicanalítico. A pulsão, conforme sabemos pelo próprio Freud, está na fronteira entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal (trecho de “As pulsões e seus destinos”). Dessa forma, sabemos que a pulsão não pode prescindir do corpo.

Prosseguindo com tal entendimento, no livro “Como trabalha um psicanalista?”, Nasio explica melhor o lugar fundamental da pulsão numa psicanálise: Não é a fala. O verdadeiro móbil da relação analítica é a pulsão que centraliza, polariza a relação analista-paciente. A fala está presente como efeito e, ao mesmo tempo, como vindo determinar o campo dessa relação. Mas o móbil é o objeto da pulsão. [...] O papel principal [do analista] em uma análise não é o de escutar ou interpretar, mas o de prestar-se, emprestar seu próprio corpo pulsional. [...] Se o analista compreende que está ali, na sua poltrona, para deixar-se tomar, deixar-se cercar, pegar, pela atividade pulsional, terá todas as chances de interpretar ou intervir de modo oportuno.

Então, retomando a pergunta colocada anteriormente, eu responderia que provavelmente pode haver algo da psicanálise em sessões virtuais. Pode haver, por exemplo, uma escuta analítica, que certamente tem seu valor e potenciais benefícios. Contudo, tem-se aí somente um pedaço de uma análise. Citando Jean-Bertrand Pontalis, análise não é exatamente dizer coisas que nunca dissemos a ninguém, ainda que isso aconteça. [...] Análise é uma experiência de intimidade. [...] Como se existisse ali uma espécie de intimidade que se cria entre dois seres humanos e que não tem equivalente em outro lugar. Está para além do conteúdo do que se possa dizer, é uma troca. No fim das contas isso é a transferência, uma relação entre duas intimidades.


A realidade virtual parece-me não propiciar intimidade real. No cenário virtual, a pulsão, motor de uma análise, fica cerceada, restrita a um dos lados da tela, impossibilitada de saltar e fixar-se em outro lugar. Inversamente, a neurose de transferência é uma neoformação psíquica considerada um tipo vivo de tecido, cujo estabelecimento depende do real, e é justamente através dela que se desenvolve o tratamento e que os efeitos mais profundos de uma psicanálise se fazem sentir. A neurose de transferência cria uma nova possibilidade para os destinos da pulsão.

Não é minha intenção colocar ponto final no assunto, tampouco agarrar a resposta à qual cheguei como sendo a única possível. Se assim fosse, não estaríamos pensando psicanaliticamente. Retomando Lacan, no mesmo capítulo do seminário 11: No inconsciente há um saber que não é de modo algum a ser concebido como saber a ter acabamento, a se concluir. Todavia, devo finalizar por ora, esclarecendo que a vinheta do analisante citado acima não é fictícia. A experiência dele revelou que, embora máscaras, álcool gel e afins sejam obrigações atuais incômodas, elas podem ser dribladas e não impedem a intimidade necessária ao trabalho analítico. As máscaras que importam continuam a cair quando se está verdadeiramente em análise. Valeu a pena esperar.

Comentários

  1. REFERÊNCIAS:

    FREUD, Sigmund. Lembrar, repetir e perlaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 151-164. Tradução de: Claudia Dornbusch.

    FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos (1915). Belo Horizonte: Autêntica, 2017. 164 p. Tradução: Pedro Helioro Chaves.

    LACAN, Jacques. Presença do Analista. In: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentas da psicanálise, 1964. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Cap. X. p. 119-129. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de M.D. Magno].

    NASIO, Juan-David. Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Zahar, 1999. 170 p. Tradução: Lucy Magalhães. Revisão técnica: Marco Antônio Coutinho Jorge.

    PONTALIS, Jean-Bertrand. Na borda das palavras. In: SELAIBE, Mara; CARVALHO, Andréa (org.). Psicanálise entrevista: volume 1. São Paulo: Estação Liberdade, 2014. p. 27-55.

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    As imagens utilizadas na postagem, na ordem em que aparecem, estão disponíveis e foram obtidas na internet:

    - https://images.app.goo.gl/odt1m1994ax7BrEv9 [acesso em 14 abr 2020]

    - Illustration: Leonard Beard for the Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2017/oct/07/virtual-reality-acrophobia-paranoia-fear-of-flying-ptsd-depression-mental-health [acesso em 14 abr 2020]

    - “Psychoanalysis”, de Mattijin Franssen. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mattijn/5111356795 [acesso em 14 abr 2020]

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  2. Agradeço pelo texto

    Me gerou algumas questões:
    A análise presencial não falta pedaços então?
    A presença também não é da ordem de um virtual?
    De que corpo estamos falando na psicanálise?
    Parece que a tua resposta sobre as máscaras no final, responde sobre a possibilidade do atendimento online.
    Eu li assim “A experiência dele revelou que, embora celular, internet e afins sejam obrigações atuais incômodas, elas podem ser dribladas e não impedem a intimidade necessária ao trabalho analítico. As máscaras que importam continuam a cair quando se está verdadeiramente em análise”.

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  3. Gostei muito do seu texto, Bruno! Vc dá seu testemunho enquanto analisante , e tb traz um pouco da teoria.
    Eu tenho atendido alguns pacientes on line e outros presencialmente, tomando as medidas de segurança.
    Sobre a questão pulsional, penso que o objeto pulsional voz está presente no discurso do analisante que escutamos em uma sessão on line, mas não sem os “ruídos” da tecnologia utilizada. Administrar tais ruídos vem sendo um desafio aos analistas, tanto que uma grande maioria se queixa do quanto é muito mais cansativo fazer as sessões neste formato.
    Sobre a presença do analista, acho que ela pode se estabelecer por meio das intervenções deste, e não necessariamente pela sua presença física.
    Por fim, vale destacar que em Psicanálise não cabe generalizar e sim tratar singularmente cada caso, como vc também pontuou em seu texto.

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  4. Caros Marcos e Deise,

    Muito interessantes as leituras de vocês sobre o tema! Agradeço por compartilharem-nas aqui. Comprovam que o debate sobre esse assunto continuará em aberto, que aquilo que dele puder se aprender, o será fazendo.

    Abraços.

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