As temíveis prescrições de alguns médicos

Médicos geralmente entendem pouco de farmacologia. A menos que cursemos pós-graduação nessa área ou que nos esforcemos em estudos complementares sobre os medicamentos, a maioria de nós, egressos dos cursos de medicina, deparou-se durante a graduação com conhecimentos apenas superficiais a respeito de como tais substâncias funcionam e agem no organismo humano. Entretanto, isso não impede que sejamos os principais, senão únicos, responsáveis pela prescrição de fármacos nas sociedades ocidentais contemporâneas. Será que sabemos o tamanho dessa responsabilidade e estamos em condições de assumi-la?
Dignos de reconhecimento pelo trabalho bem feito são os colegas médicos que prescrevem de acordo com suas áreas de atuação, que estudam modo de funcionamento, posologia e potenciais efeitos adversos das drogas que costumam colocar em seus receituários, não se atrevendo a indicar medicamentos cuja farmacologia não dominam. Estes colegas, a propósito, não mantém tratamentos farmacológicos com doses excessivas nem em combinações imprudentes, tampouco submetem seus pacientes a consumi-los por tempo demais.

Bom, se você esteve atento ao início desta conversa, presume que não é sobre a conduta ilibada dos médicos mencionados no parágrafo anterior que falarei nesta oportunidade. Quero discorrer a respeito de receitas que beiram a insanidade e de antemão devo dizer que boa parte dos médicos que as fornece parece cometer erros sem saber que os faz. Prescrevem com a intenção de ajudar, porém se deparam com sofrimentos humanos bem maiores do que a capacidade dos medicamentos em alivia-los. Neste cenário, talvez por desconhecerem outros recursos para o tratamento, aumentam doses desnecessariamente, associam drogas levianamente, enfim, perdem a noção do bom senso e partem para uma (ir)racionalidade não científica no tocante às prescrições.

Apresento, a título de exemplo, duas receitas descabidas, mas verídicas, ambas com elevado potencial iatrogênico (iatroagenia - estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico). A primeira dessas receitas resulta provavelmente da ânsia em aliviar dores que se manifestam no corpo. A segunda tipifica uma imprudência que ocorre, infelizmente com elevada frequência, no âmbito da psiquiatria: a combinação de diversos psicofármacos, ao mesmo tempo, para uma só pessoa.

Há na prescrição acima quatro classes de analgésicos diferentes (analgésico comum, opioide, anti-inflamatórios esteroides e não esteroides), além de relaxante muscular e vitaminas do complexo B. À parte a questão de que não há evidência suficiente para afirmar que tantas drogas juntas exerceriam melhor efeito sobre a dor, fez-se pouco caso de um princípio básico da analgesia chamado escalonamento, que seria, em linhas gerais, aumentar gradativamente a potência dos analgésicos prescritos apenas se a pessoa necessitar. Por fim, e talvez o mais preocupante, o emissor dessa receita elevou sobremaneira o risco de seu paciente sofrer efeitos adversos decorrentes de medicamentos, pois tal risco aumenta de modo diretamente proporcional ao número de substâncias consumidas e às doses prescritas.
Esse segundo caso incorre num problema semelhante ao anterior no tocante à possibilidade de efeitos adversos. Mas penso em outra situação bastante problemática aqui: ao se associar quase todos os grupos de psicofármacos disponíveis (antidepressivo, ansiolítico, estabilizador do humor, antipsicótico, hipnótico indutor de sono), perde-se a noção das interações medicamentosas e do que vai acontecer em termos terapêuticos. Em verdade, é de se esperar que nada terapêutico ocorra, pois tantas drogas agindo ao mesmo tempo no cérebro de alguém dificilmente proporcionariam algum benefício. Ademais, não se pode afirmar que prescrições assim tenham endosso científico. O excesso de psicofármacos é, antes de qualquer outra coisa, uma pretensão de silenciar o sintoma. Silenciando-o, contudo, tornam o sujeito apático, alienado e incapaz de refletir sobre seu próprio sofrimento.

Minha intenção, ao expor essas receitas, que representam extremos caricaturais lamentavelmente comuns, não é denunciar os colegas que as emitiram, tanto que seus nomes foram mantidos em sigilo, bem como a identificação dos pacientes. O objetivo é chamar atenção para problemas que muitas vezes sequer são percebidos e, a partir de sua constatação, propor, nas linhas que me restam a seguir, esboços de alternativas para supera-los.

Sim, por ora apenas esboçar será possível, não tanto pela limitação deste espaço, mas porque modificar a relação entre ser humano e medicamento (e, por extensão, qualquer outra terapia que visa amenizar sintomas) exige uma mudança de paradigma. Sendo realistas, devemos saber que modificar paradigmas requer coragem e grandes esforços, não sai barato. Logo, a maioria das pessoas terá muita resistência quanto a isso. Também será resistente à mudança, com uma força infinitamente mais poderosa do que a dos indivíduos, o complexo médico-farmacológico-industrial, entretanto dele não falaremos hoje.

O paradigma que permite utilizar com sabedoria e parcimônia os tratamentos sintomáticos é aquele que entende os sintomas como recursos dos quais qualquer ser humano pode valer-se, em regra de modo involuntário, quando se encontra imerso em contextos de sofrimentos que ultrapassam sua capacidade de elabora-los ou escoa-los por outras vias, menos traumáticas para o corpo, como a fala e a sublimação pela arte. Através dessa compreensão, portanto, o sintoma é tomado como uma das formas de expressão do humano, não como um inimigo a ser eliminado ou extirpado a qualquer custo.

Como então lidar com o sintoma? Citando Antonio Quinet, não se deve calar o sintoma e sim fazê-lo falar. Pois por trás de todo sintoma há um sujeito. O sintoma é uma mensagem cifrada que conta uma história. É uma forma de dizer que não encontrou seu dito. Que fique bem claro: não calar o sintoma não implica abrir mão de certos alívios sintomáticos, muitas vezes necessários, que medicamentos e outros recursos podem proporcionar. Não calar o sintoma significa oportunizar o sujeito falar, contar sua história de outro modo, diferente do sintoma, e assim talvez dar-lhe um sentido. Continuando com Quinet, a psicanálise transforma o maldito sintoma em um bem dito.

Na consulta médica, ainda que o(a) doutor(a) não seja psicanalista, é fácil perceber que faz toda diferença acolher o sintoma através de uma escuta ampliada, atenta também ao que se desenrola no palco da vida do sujeito. Falando nisso, recordo-me do caso de uma mulher de meia idade que recentemente atendi. Ela estava há mais de 30 dias apresentando um quadro clínico de poliartrite (inflamação em mais de uma articulação), muito dolorosa, e consultara-se no período com diversos médicos, entre os quais um reumatologista. Foram unânimes em prescrever muitos analgésicos, dos mais variados tipos, e o reumatologista ainda solicitou um caminhão de exames complementares, incluindo sorologias para detectar todos os autoanticorpos imagináveis, que custaram o olho da cara para a paciente, mas resultaram totalmente não reagentes. Isto possivelmente provocou certo desagrado no médico, pois, não podendo ele dar um nome específico àquela artrite e receitar a droga antirreumática propagandeada no congresso de especialistas como a bola da vez, restou-lhe admitir à paciente que não sabia o que fazer no caso dela, a não ser, claro, prescrever remédios para combater a dor e a inflamação.


Nenhum dos colegas médicos que atendeu a paciente antes de mim pareceu estar preocupado se ela teria condições de gastar com as receitas prescritas ou com os exames indicados, pois até então ninguém sequer perguntara sobre sua ocupação. Descobri ser vigilante, ganhava não mais do que dois salários mínimos mensais. Menos de cinco minutos de conversa também foram suficientes para saber que a mulher, pouco antes da deflagração da artrite, havia brigado com o namorado, expulsando-o de casa, e com o filho, que deixara a cidade levando consigo os netos que ela tanto ama.

Naquele dia, a mulher vigilante dispensou novas injeções de analgésico ou anti-inflamatório. Dizia estar “mais aliviada” por ter falado de seus outros dramas e agradeceu-me por tê-la ajudado a enxergar além do sintoma. Se depois disso ela conseguiu encontrar a cura para sua doença reumática, não sei, pois se tratava de uma consulta de urgência, e não voltei a vê-la. Um saber, no entanto, essencial para tornar menos temerárias as prescrições médicas, reforça-se quando nos deparamos com casos assim: dores físicas são indissociáveis de sofrimentos mentais, pois corpo e alma (soma e psique) configuram-se uma unidade enquanto o ser humano vive sua existência terrena. Qualquer tentativa de aparta-los é mera abstração.


Comentários

  1. REFERÊNCIAS:

    IATROGENIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2019.

    QUINET, Antonio. O sintoma: variações freudianas, 1. São Paulo: Giostri, 2014.

    ---o---

    Imagens artísticas da postagem obtidas livremente na internet em:

    https://www.flickr.com/photos/noparainnita/2790696841/ - No, the drugs don’t work

    https://br.pinterest.com/pin/526780487654770843/ - “The Drugs Don’t Work?”

    [acesso em 29 dez 2019]

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina