O homem cujas pernas foram arrancadas

“Arrancou minhas pernas.” Esta foi a metáfora utilizada por Duarte para reportar-me o que sentia no tocante à morte do filho, jovem policial que perdera a vida em serviço, num acidente enquanto pilotava uma motocicleta. Duarte valia-se com alguma frequência de metáforas, mas notei que não conseguia muito mais do que elas para expressar seus afetos. A propósito, em pouco tempo tratando seu caso percebi que ele, o homem cujas pernas foram arrancadas, tinha significativa dificuldade para falar sobre sentimentos e emoções. Era como se, além das pernas, certos pensamentos fossem “arrancados” de seu psiquismo, não deixando quase nenhum vestígio.

Mesmo a metáfora das pernas arrancadas não apareceu na primeira ocasião em que Duarte veio consultar-me, num ambulatório da Aeronáutica. No encontro clínico inicial, o homem queixava-se de fraqueza e achava-se “desgastado”. Militar reformado, aos 65 anos ele parecia triste e de fato consumido pelo tempo, um idoso envelhecido. Ao contrário de outras pessoas que chegam à terceira idade com aspecto mais jovial, aparentava ter mais idade do que indicava sua carteira de identidade. Cabe sublinhar que tal discrepância entre os tempos biológico e cronológico é um fenômeno relativamente comum, e que a tendência a se envelhecer de forma bem ou mal sucedida é determinada pela história singular de cada sujeito, inclusas aqui características genéticas e biológicas, mas sobretudo circunstâncias psicossociais que acompanham esse processo inexorável de retorno do corpo ao estado inorgânico, sem alma. Vale frisar, ainda, que essa volta ao inanimado é uma constatação fundamental da qual Freud valeu-se para conceituar a pulsão de morte. De certo modo, portanto, a pulsão de morte estava subjugando a pulsão de vida no caso de Duarte.

Quanto à sua queixa de estar fraco, além de indicativa de uma pulsão de vida cambaleante, demandaria a investigação de muitos problemas clínicos do ponto de vista médico convencional. Pensei, por exemplo, nas possibilidades de anemia, insuficiência cardíaca, hipotireoidismo, deficiência de vitamina D, neoplasias, estados inflamatórios sistêmicos, diabetes e disfunção renal, entre outras. Todavia, após cuidadosa avaliação clínica e realização de exames complementares, nenhuma das hipóteses de doença orgânica confirmou-se.

Reforçava-se, assim, a necessidade de contextualização do sintoma na biografia do sujeito, dizer o que poderia representar essa perda das forças, a partir de sentidos que só poderiam advir do próprio sujeito e suas elaborações. Antes disso, no entanto, é essencial contextualizar também o cenário do atendimento, que conforme mencionei ocorria numa instituição militar, fato que embora não impedisse uma escuta psicanalítica de minha parte, provavelmente reforçasse no paciente uma transferência algo engessada ao meu posto de tenente médico na ocasião. Apesar disso e de estar ciente de que meu paciente não estava em análise, não abdiquei da ética da psicanálise, a saber, dessa 
dimensão mais profunda do movimento do pensamento, do trabalho e da técnica analíticos, conforme Lacan a ela se refere no Seminário 7.

Perguntei ao homem o que se passava em sua vida quando começou a sensação de fraqueza, há aproximadamente seis meses. Não foi difícil para ele lembrar que há exatos seis meses acontecera o falecimento do filho, porém essa associação, não tão livre, provocou pouco ou nenhum efeito em Duarte. Trouxe-me então a metáfora das pernas arrancadas, contudo falava da morte do rapaz como se fosse apenas uma fatalidade do destino, sem sequer modificar a expressão facial durante o relato. Tampouco demonstrava vontade de prosseguir no assunto, porquanto não foi oportuno mencionar a analogia na qual pensei: de alguma maneira, assim como as pernas dão sustentação ao corpo, o filho exercia apoio importante para aquele pai.

Ocorreu-me, pois, que Duarte apresentava características operatórias e alexitímicas, termos cunhados por psicanalistas de renomadas escolas de pesquisa em psicossomática. De modo sucinto, segundo Joyce McDougall explica no livro “Teatros do Corpo: o psicossoma em psicanálise”, o pensamento operatório remete a um 
modo de pensar, de alguma maneira “deslibidinizado” e extremamente pragmático, enquanto a alexitimia, palavra de origem grega (a = sem; lexis = palavra; thymos = coração ou afetividade), designa o fato de que o indivíduo não tem palavras para dar nome a seus estados afetivos, ou, caso consiga dar nome a eles, o fato de que não consegue distinguir um estado do outro. A importância dessas características reside na observação de que elas aumentam a chance de descargas somáticas, notoriamente as lesões de órgão, como única saída encontrada para a dor mental provocada por afetos dolorosos forcluídos, nos dizeres da própria McDougall.

Alguns teóricos questionam se a lesão de órgão poderia corresponder a uma alucinação inscrita no soma (corpo), tendo em vista sua similaridade à psicose no tocante à presença de forclusão. Este conceito lacaniano, por sua vez, desenvolvido no Seminário 3, refere-se ao mecanismo de exclusão de um significante fundamental do universo simbólico do indivíduo. Não integradas no inconsciente, ao contrário do que ocorre no recalque, tais representações insuportáveis excluídas, e os afetos a ela ligados, retornam de forma alucinatória no real do sujeito, que inclui o corpo.

Naquelas primeiras consultas de Duarte comigo entendi que precisaríamos de mais tempo, em outros encontros clínicos, para, talvez, acessarmos algo mais profundo relativo à dor psíquica que deduzi nele haver em decorrência da morte do filho, portanto sugeri que voltasse outras vezes para conversarmos. Ele concordou, sem compreender bem o porquê da minha sugestão, tendo em vista que nenhum outro exame complementar seria por ora necessário. Médicos, afinal, não costumam sugerir a seus pacientes que retornem somente para conversar. Expliquei-lhe, então, que através de uma conversa, digamos terapêutica, teríamos chance de cuidar melhor daquela fraqueza que o acometia.

No mesmo dia, após Duarte deixar o consultório, decidi fazer uma breve revisão em seu prontuário. Rapidamente notei algo importante: o número de consultas dele no ambulatório médico, em diversas especialidades, aumentara sobremaneira no período que se sucedeu à morte do filho. As queixas do velho homem nessas consultas eram diversas, mas sempre estavam relacionadas ao corpo, ou seja, lamuriava-se de sintomas essencialmente físicos, não mentais. Havia, contudo, uma nítida correlação, pelo menos temporal, entre seu luto e a incidência daqueles sintomas.

Na obra Luto e Melancolia, Freud afirma que 
o luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso [que a melancolia]a mesma perda de interesse pelo mundo externo - na medida em que este não evoca esse alguém -, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. [...] Entretanto, segue Freud, o teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível [...], a qual pode ser intensa o bastante para dar lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Duarte, a rigor, não se encontrava em condição psicótica, mas essa leitura de Freud, atrelada ao que foi dito acima sobre potenciais destinos corporais de afetos forcluídos, reforçava minha hipótese da importância implícita do luto nas queixas somáticas do paciente.

Na revisão de prontuário também me chamou atenção a grande quantidade de intervenções cirúrgicas às quais Duarte submeteu-se, não nos últimos seis meses, mas ao longo da vida. Se o corpo desse homem perdera as pernas somente metaforicamente, o mesmo não se pode dizer acerca das pequenas mutilações que ele sofrera em estômago, intestino, pele e próstata, para retirar partes desses órgãos devido lesões diagnosticadas como cancerosas. Somam-se a essas intervenções, ainda, cirurgias realizadas para correção de hérnias inguinais e colocação de prótese no quadril, desgastado pela artrose. As várias lesões de órgão de Duarte corroboravam a tese mencionada anteriormente. Ademais, a historicidade dessas lesões revelava sua presença muito além do período enlutado.

Após algum tempo, ele aceitou minha sugestão de retornar em nova consulta. Começou a conversa ainda focado num pragmatismo corporal, excluindo de seu discurso dores mentais explícitas. Apresentou-me certo temor em ter desenvolvido outro tipo de câncer qualquer e queria exames complementares. Não havia, porém, nenhuma novidade em seus sintomas que justificasse pensar nisso. Duarte silenciou-se, parecendo contrariado quando falei que não seria oportuno por ora submetê-lo a novos exames. Aproveitei o momento para sublinhar-lhe as várias cirurgias que constatei revisando seu prontuário, ao que ele comentou: “Volta e meia tiro um pedaço de mim”. Chamei-lhe atenção para o fato de ter usado a primeira pessoa do singular em sua frase, como se ele próprio tirasse os pedaços de si, não os cirurgiões. Diferente era a situação de suas pernas, que permaneciam no real do corpo, mas eram arrancadas por outro alguém (ou algo) na metáfora. Estávamos diante de uma estranha mistura de perdas reais e simbólicas, de todo modo o corpo a se fazer palco principal, falando de sofrimentos para os quais palavras não são encontradas ou, quando encontradas, parecem insuficientes.

Duarte acrescentou ser “propenso a câncer”, ao lembrar que os pedaços retirados de si nas cirurgias o foram em consequência de supostas neoplasias. Questionei por que ele teria tal propensão e tive como resposta “a genética”. Apontou-me exemplos de familiares que tiveram câncer; seguiu-se novo silêncio, desta vez por ele não saber mais o que dizer. Lembrei-me do câncer como uma doença bastante atrelada à morte, constatando de novo ali a forte presença da pulsão de mesmo nome, entretanto optei não tecer nenhum comentário sobre isso. O que fiz, ao me deparar com aquele psiquismo ao mesmo tempo árido e fatalista, foi arriscar uma pergunta sobre como Duarte estava lidando com a situação dos pedaços que foram simbolicamente arrancados de si, referindo-me obviamente às pernas e recordando-lhe a metáfora que usara acerca do falecimento do filho. O homem respondeu que “estava empurrando a vida com a barriga” e que “trabalhava para esquecer a morte do filho”. Dava-me então outros fortes indícios de que sobrevivia alheio à pulsão de vida e que lhe era demasiado trabalhoso aquele luto.

Tendo-lhe chamado atenção para tais aspectos de sua fala, Duarte revelou-me a seguir que sonhara recentemente com o filho (algo surpreendente, pois a pobreza da vida onírica é uma característica marcante de pacientes alexitímicos). No sonho, encontrava-o quatro anos no futuro e perguntava-lhe se ele, o filho, havia “forjado a própria morte”. A única interpretação a que conseguimos chegar naquele momento, a partir do sonho, era que Duarte questionava o tal fator acidental na morte do filho, algo que outrora ele verbalizara sem espaço para dúvidas. Não fluíram seus pensamentos sobre isso e novamente trouxe o corpo à cena principal, perguntando-me o que eu achava de uma mancha diferente que ele observara em seu antebraço. Olhei-a e, considerando-a suspeita, recomendei que consultasse uma colega médica dermatologista, quem poderia melhor avaliar a pequena lesão de pele através de um dermatoscópio.

Não quis causar alarde sobre o potencial de aquela mancha ser um melanoma, uma vez que Duarte já era suficientemente preocupado com “propensões cancerígenas”. No entanto, a dermatologista, após realizar a biopsia, confirmou o diagnóstico de malignidade. Pior, a biopsia revelou que as margens da lesão estavam comprometidas, ou seja, havia o risco de ela ter infiltrado mais profundamente a pele, atingindo a corrente sanguínea e resultando em metástases. Aconteceu, a partir de então, que o homem conseguiu motivos suficientes para se ocupar mais ainda do real do corpo. Ficou praticamente impossível acessar outras questões em nossos encontros daquele momento em diante.

Todavia, porquanto mantive disponibilidade para ouvi-lo, Duarte continuou vindo às consultas comigo, em paralelo à epopeia de exames complementares a que se submetia, para descartar a presença de focos do melanoma em outros órgãos, e aos preparativos para um procedimento adicional, executado por cirurgião plástico, para retirar de modo ampliado as margens da pele comprometidas pelo câncer que a adentrava. Embora ele não falasse mais das dificuldades do luto pelo filho, vinha atualizar-me acerca do tratamento do melanoma e questionar-me sobre a evolução da doença, que nem eu nem outros médicos poderíamos afirmar com segurança como seria. Contou-me que uma tomografia de abdome mostrou possíveis focos de implantes metastáticos no fígado. Dias angustiantes passaram-se lentamente para ele até que uma cintilografia afastou tal suspeita.

Faltava ainda o resultado da nova biopsia, realizada pelo cirurgião, para sabermos se finalmente todo o melanoma fora retirado. O homem das pernas arrancadas manteve-se independente de cadeira de rodas e persistia nos retornos, espontaneamente, “apenas para falar” comigo. E apesar de estar complicado acessa-lo sobre outros dramas, pude confirmar, enfim, que havia se instalado um tipo significativo de transferência entre nós. Que efeitos ela estaria produzindo, não se sabe ao certo, mas Duarte demonstrou alívio, e até um lampejo de alegria, ao receber o resultado da derradeira biopsia: as margens cirúrgicas estavam livres.

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*Embora a vinheta clínica do texto acima apresente a história de um personagem real, seu verdadeiro nome foi substituído por um nome fictício, resguardando o sigilo que a ética com a clínica exige.

**Este trabalho foi apresentado originalmente durante a 18a edição das Jornadas da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica, em outubro de 2019, cujo tema principal era “Instituições, Transferência e Ética”.

Comentários

  1. REFERÊNCIAS:

    FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).

    LACAN, Jacques. O Seminário _ Livro III: As psicoses. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

    LACAN, Jacques. O Seminário _ Livro VII: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

    MCDOUGALL, Joyce. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. 194 p.

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    As imagens da postagem foram obtidas livremente nos seguintes endereços na internet:

    https://www.saatchiart.com/art/Drawing-The-Man-Without-Legs/957013/3467628/view

    https://www.amazon.com/Alexitimia/dp/B07L68SFVJ

    https://www.saatchiart.com/print/Printmaking-Luto/86350/1376194/view

    https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,o-que-dizer-ou-nao-para-uma-pessoa-que-enfrenta-o-luto,70002717907

    [acesso em 05 out 2019]

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