Por uma clínica médica com escuta psicanalítica

Adelaide veio ao consultório relatar-me que há bastante tempo sofre com dores abdominais. Difusas, mal localizadas, tais dores são intermitentes e não interferem na fisiologia das funções digestivas dela, ou seja, a mulher não apresenta vômitos, diarreia ou constipação associados ao sintoma principal. Tampouco tem dificuldades urinárias ou secreções vaginais anormais. Nega, ainda, febre ou outros sintomas sistêmicos, como perda de peso involuntária (ao contrário, lamenta estar obesa).

Um clínico com alguma experiência em medicina, apenas com o curto trecho de anamnese mencionado, cogitará como boa a hipótese de que se trata de um distúrbio não lesivo das vísceras do abdome, embora, claro, deva considerar dados semiológicos adicionais. A propósito, o exame físico da paciente revelava um abdome de difícil avaliação, em decorrência de um panículo adiposo avantajado e de prováveis cicatrizes na anatomia interna, consequentes de uma grande intervenção cirúrgica prévia, à qual Adelaide submeteu-se num passado distante; todavia, notava-se facilmente que se tratava de uma barriga inocente, em termos da possibilidade de urgência médica.

A essas informações soma-se o fato de que Adelaide consultara-se, antes de mim, com diversos outros médicos sobre o mesmo problema. Realizou muitos exames complementares, de laboratório e de imagem, os quais resultaram normais, fortalecendo a suspeita diagnóstica de que não há lesão de órgão. Neste ponto a medicina convencional costuma empacar, quando afirma que a pessoa “não tem nada”, ou provocar iatrogenia. Este termo, convém esclarecê-lo, refere-se a danos causados pela prescrição leviana de medicamentos, cujos efeitos mal se sabe quais serão, ou por intervenções com exames e procedimentos adicionais desnecessários, não raro invasivos, à procura daquilo que num contexto como o de Adelaide definitivamente não será encontrado, a saber, a doença ou anomalia orgânica.

Alguns anos de prática em atendimentos médicos na clínica generalista, tanto executados ambulatorialmente quanto realizados em urgência hospitalar, permitem-me afirmar com segurança que a esmagadora maioria dos sintomas queixados pelos pacientes aos médicos não possui uma doença que os explique. Baseado nisso, embora estejamos hoje num cenário de fenômenos histéricos e neuróticos algo diferente da época de Freud, percebo que continua sendo de grande utilidade à clínica o ensino transmitido pelo mestre através de seus trabalhos, desde aqueles realizados nos primórdios da Psicanálise, com a histeria, até os que mais tarde proveram um robusto entendimento acerca das neuroses.

Nas “Conferências Introdutórias à Psicanálise”, que remontam ao período da Primeira Guerra Mundial, escreveu Freud que a sintomatologia da histeria nos levou à concepção de que, à parte seu papel funcional, devemos atribuir aos órgãos do corpo também uma importância sexual, erógena, e que o cumprimento daquele primeiro papel é perturbado quando este último lhes faz demandas em excesso. Notemos que Freud diz “também”, no tocante ao papel sexual que os órgãos do corpo desempenham, e relaciona, de modo perspicaz e inédito, condições disfuncionais corporais a transbordamentos da energia libidinal, enquanto a medicina convencional até hoje opta por infelizes expressões para se referir a tais disfunções, rotulando-as como “idiopáticas” e dando-se por satisfeita com isso, ignorando a libido.


Mais adiante nessas conferências, explicando como um deslocamento da libido pode estar pervertido na forma de um sintoma corporal que aparentemente, especialmente para um leigo em teoria psicanalítica, não teria nada a ver com questões da sexualidade, Freud afirma: Como o sonho, o sintoma apresenta como realizada uma satisfação; trata-se de uma satisfação à maneira infantil, mas que, por intermédio de uma condensação extrema, pode ser comprimida em uma única inervação e, pela via de um extremo deslocamento, pode se restringir a um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal. Não admira, pois, que muitas vezes tenhamos dificuldade em reconhecer no sintoma a satisfação libidinal conjecturada e sempre confirmada.

O terceiro e último fragmento, da mesma referência freudiana, que considero igualmente importante transcrever nesta ocasião, a fim de articular o ensino de Freud com a clínica médica contemporânea, seria o seguinte: São sempre os fatores quantitativos [referindo-se à libido] que decidem se há adoecimento ou não. (...) Em vários estados de excitação se pode observar diretamente a mistura de libido e angústia e, por fim, a substituição daquela por essa. São duas as impressões que se adquirem de todos esses fatos: em primeiro lugar, a de que se trata de uma acumulação da libido impedida de ter seu emprego normal; em segundo, a de que nisso nos encontramos no terreno dos processos somáticos. Este trecho, a meu ver, demonstra com clareza que a psicossomática já estava no discurso de Freud. Não por acaso, as mais importantes teorias desenvolvidas posteriormente na psicossomática psicanalítica, sempre vinculadas à clínica, têm na metapsicologia freudiana e nas questões da economia libidinal seus mais importantes alicerces.

Retomando o caso de Adelaide, eu sabia que era preciso possibilitar a ela uma mudança de foco e estava ciente de que isso não seria tarefa simplória, primeiramente porque, quando é possível acontecer algum trabalho elaborativo psíquico, as elaborações são particularmente lentas nas situações em que o corpo está afetado mais diretamente. No entanto, para ressaltar a importância de não se abrir mão desse trabalho, cito Roberto Harari, em conferência intitulada “Entre o corpo e a palavra”, na qual ele sublinha que muitos significantes têm referências corporais (...) e que, sistematicamente, o corpo resulta vítima das palavras que Freud refere como ‘fora do comércio associativo’. Isso quer dizer que ficam isoladas em outra instância psíquica. O sujeito não tem condições de incorporar essa outra instância e obter esse pequeno grau de liberdade. (...) A análise tem que conseguir minimamente, como alvo de cura, como sucesso, um pouco mais de liberdade para o sujeito sofredor. (...) A liberdade não é um a priori, uma coisa que vem conosco, senão que é um ponto a conseguir. Aí está onde se inscreve a pertinência da análise.

Entretanto, a segunda grande dificuldade relativa ao caso em questão reside no fato de que Adelaide, como diversos outros pacientes que buscam consulta médica, não estava à procura de psicanálise quando veio me pedir ajuda, mas sim de alguma solução para seu problema que preferencialmente não exigisse muito esforço de si mesma. Certo, mas, como afirmo no título deste artigo, o que intento demonstrar é exatamente a diferença que uma escuta psicanalítica pode fazer durante consultas médicas, mesmo para pessoas que não estão buscando análise, mesmo que a posição do médico não seja a de analista. Parto da premissa que, ainda que não haja lesão de órgão, certamente alguém que se queixa tem algo. No mínimo, essa pessoa tem algo a dizer. Portanto, permiti-la falar e se ouvir além do sintoma é crucial para que alguma mudança em seu sofrimento possa, senão ocorrer, ao menos despertar. Caso contrário, empaca-se no pegajoso gozo do sintoma. E se inicialmente nenhuma modificação relevante seja possível, penso que, na pior das hipóteses, a escuta psicanalítica na consulta médica evita sobremaneira a iatrogenia.

Joyce McDougall, psicanalista neozelandesa radicada na França cuja obra se destaca na psicossomática, no livro “Teatros do Eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica”, afirma que a somatização frente aos conflitos negados faz parte do teatro psíquico de todo mundo. Ainda na introdução desse livro, McDougall escreve que é falando que o Eu se encontra e se ouve. O discurso que ele constrói sobre si mesmo, e sobre esses outros nele, oferece-lhe os poderes dos quais havia abdicado, ao mesmo tempo em que lhe dá, também, sua capacidade de refletir e de sentir. Na medida em que o sintoma se torna metáfora e a lembrança se reconstrói, o inaceitável e o insensato do passado mudam de signo. Afinal de contas, o que o indivíduo tinha dilapidado de seus haveres psíquicos lhe será entregue, permitindo-lhe reconhecer-se como ator e autor do drama de sua vida, como gerente de seu passado e de seu futuro. (...) A análise pode ser para alguns o único jeito capaz de liberá-los dos papéis escritos com antecedência, e nos quais se repetem de maneira lancinante as mortes e a dor psíquica.

Então, advertido dessas coisas, fiz a seguinte pergunta para Adelaide: “O que mais está acontecendo em sua vida, além dessas dores na barriga?” Ela vacilou um pouco, demonstrando alguma surpresa porquanto um médico quisesse ouvi-la sobre outros assuntos que não seus sintomas corporais, mas logo se animou a falar. E foi a partir do relato dela que descortinamos parte do palco em que se desenrolam algumas cenas sofridas de sua vida, cenas que ao serem revisitadas permitem que determinados sintomas se dissolvam. Reduz-se, assim, através da fala, a importância que os sintomas recebiam outrora, pois, quando outros dramas ganham voz, o corpo é menos investido patologicamente.

Adelaide contou-me que, embora esteja idosa, sente-se com saúde e disposição relativamente boas. Atualmente tenta engajar-se em atividades proporcionadas pelo núcleo de estudos da terceira idade, projeto da universidade local, entre as quais os cursos de idiomas são seus preferidos. Ela está aprendendo italiano e recentemente surgiu uma oportunidade incrível para viajar em intercâmbio justamente à Itália, jubilando-se com a ideia. A viagem duraria poucas semanas. Seguindo seu desejo, Adelaide fez as contas e, ao perceber que em suas economias possuía o suficiente para realiza-la, neste sentido moveu-se.

Antes de comprar as passagens aéreas, Adelaide decidiu convidar o marido, Marcondes, para viajar consigo, mas, segundo previra, ele disse não. Em contrapartida aos lampejos de vida pulsante em Adelaide, Marcondes é um homem idoso extremamente repetitivo, cuja sobrevivência consiste numa mesmice (há controvérsias se tal modo de funcionamento pode ser descrito como “viver”): acorda todos os dias não antes das dez da manhã, depois de passar longas horas acordado na madrugada, conectado à internet, navegando em mares virtuais. A cada novo velho dia, Marcondes arrasta-se novamente ao que ele nomeia como seu escritório residencial, ali permanecendo durante praticamente o dia inteiro, ligado ao computador e à Globo News, provavelmente bastante desligado de si. Sequer faz questão de ir à cozinha para se alimentar e comumente solicita que Adelaide lhe traga as refeições no tal escritório. Se para isso ela consegue lhe dizer não, para muitas outras costuma atendê-lo.

Adelaide fala com pesar sobre o comportamento do marido e o considera “muito dependente dela”, a ponto de ele ficar deveras irritado quando não a tem por perto. Ao ouvi-la dizer isso, questiono se o homem teria alguma deficiência física ou cognitiva, ao que ela responde não. Em casos desse tipo, nem é preciso analisar muito para observar que quem é tido como “dependente” só se mantém em tal condição quando sua dependência é nutrida pelas ações do outro.

Foi nesse cenário que, poucos dias antes da data em que Adelaide partiria para a sonhada viagem italiana, Marcondes tivera uma queda, que denominou acidental e resultou-lhe em fratura na perna. Uma pena, mas acidentes acontecem, não? No caso de Marcondes, nada muito grave, tampouco cirúrgico. Gesso e muletas resolveriam o problema ortopédico em algumas semanas, porém ele suplicou que Adelaide não o deixasse naquela situação, pois precisaria da ajuda dela, especificamente dela. Embora um dos filhos do casal tenha se prontificado a cuida-lo enquanto Adelaide estivesse no continente europeu, ela não conseguiu dizer não à demanda de seu velho homem.

A viagem à Itália faz parte agora de uma longa lista de diversos outros desejos não realizados ao longo da vida de Adelaide, a maioria, segundo ela, desejos dos quais abdicou porque o marido “não queria gastar” ou considerava-os “trabalhosos demais”. A diferença, desta vez, é que a mulher decidiu que ainda não desistiu de viajar. Revelou-me, com algum ar de alegria no final da consulta, que foi bom falar sobre seus problemas comigo, e que pretende remarcar as passagens. Ainda está viva. Despediu-se de mim na ocasião concordando que por ora seria desnecessária uma nova tomografia de seu abdome.

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*Embora a vinheta clínica do texto acima apresente histórias e personagens reais, seus verdadeiros nomes foram trocados por nomes fictícios, resguardando o sigilo exigido pela ética com a clínica.

**Este trabalho foi apresentado originalmente durante as jornadas internas da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica, em julho de 2019.

Comentários

  1. REFERÊNCIAS:

    FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias à Psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 630 p. (Obras completas, volume 13).

    HARARI, Roberto. Entre o corpo e a palavra. In: HARARI, Roberto. O psicanalista, o que é isso? REMOR, Carlos Augusto M.; LIED, Inezinha Brandão; MASCARELLO, Tânia Nöthen (Org.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. p. 175-191.

    MCDOUGALL, Joyce. Teatros do eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Zagodoni, 2015. 208 p.

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    As imagens da postagem foram obtidas livremente nos seguintes endereços na internet:

    https://www.npr.org/sections/health-shots/2015/07/30/425395825/close-listening-how-sound-reveals-the-invisible

    http://www.artnews.com/2017/02/01/the-sigmund-freud-collection-at-the-library-of-congress-has-been-digitized/

    https://www.carredartistes.com/en/art-online-gallery-contemporary-artist-baubeau-de-secondigne/18439-unique-contemporary-artwork-la-repetition-baubeau-de-secondigne.html

    https://theculturetrip.com/europe/italy/art/

    [acesso em 07 jul 2019]

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