Entre o excesso e a derrocada das instituições, qual o lugar do sujeito?


Comecemos com o óbvio, mas importante de salientar: não há um lugar definido, pré-determinado, para cada sujeito; logo, não pretendo chegar a uma resposta exata para a indagação que se apresenta no início deste trabalho. Em verdade, essa dúvida movimentará o pensar a respeito de nossa existência, como sujeitos na contemporaneidade. Entretanto, antes de refletirmos sobre o lugar do sujeito entre o excesso e a derrocada das instituições, faz-se apropriada uma breve contextualização histórica, além da apresentação de alguns conceitos.

Se a família humana é uma instituição, em conformidade com o que nos diz Lacan, a história das instituições começou com a família. Para utilizar uma referência judaico-cristã, cultura na qual estamos inseridos e que demarca nosso tempo, de acordo com os escritos bíblicos em Gênesis, nos primórdios da vida humana, na origem de todos os povos, havia um homem, Adão, e uma mulher, Eva. Estes seriam, respectivamente, o pai e a mãe da horda primitiva, proposta por Freud em “Totem e Tabu”. Eles constituíram uma família e tiveram filhos, não necessariamente nessa ordem. À parte a consanguinidade e as relações incestuosas que teriam ocorrido, conta-se que os filhos de Adão e Eva tiveram outros filhos e, assim, sucessivamente, através de netos, bisnetos, tataranetos, etc., outras famílias formaram-se, espalhando-se por toda a Terra, ao longo de milhares de anos e com incontáveis enlaces, dissidências e ramificações genealógicas.

Bastante razoável supor que essa conquista terrena pelos humanos foi possível devido ao relevante papel desempenhado pelas instituições, especialmente pela família, a partir da qual diversas outras instituições surgiram no decorrer da História. Entre essas se destacam a Igreja e o Estado, sendo o último composto por diversas subinstituições, como as jurídicas e militares. Notaremos que a importância das instituições não se restringiu, e não se resume, ao favorecimento do processo de dissipação dos sujeitos pelo mundo. Porque falaremos dessa relevância institucional para a humanidade, inicialmente precisamos compreender o que seria, afinal, uma instituição.

Longe de almejar o esgotamento conceitual, por se tratar de algo discutido em diferentes correntes teóricas (e utilizado de modos distintos até mesmo dentro de uma mesma corrente), ao se caracterizar a instituição numa esfera simbólica e/ou imaginária, tem-se um conceito atrelado às manifestações humanas na cultura e à sua ordem social (por exemplo, laços parentais, religião, economia, política, leis, educação). É justamente a ordem social que delimita uma cadeia de sentido para as ações, dá significado a uma série de construções humanas e delimita padrões de conduta esperados (e idealizados). Por sua vez, as organizações, de diversos tipos, remetem à dimensão concreta das instituições. Somente através das organizações e a partir dos outros sujeitos que as compõe, um sujeito pode apreender a ideia de uma instituição.

As instituições foram constituídas na tentativa de diminuir o estado de desamparo, inerente à condição humana, e a potencialidade de caos e destrutividade nas relações naturais entre as pessoas. Freud, na obra “O mal estar na civilização”, referindo-se à ordem preconizada pela sociedade e suas instituições, destaca que seus benefícios seriam incontestáveis. Ela (a ordem) capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito. Contudo, Freud ressalta que, mesmo sob a égide do instituído, as forças psíquicas dos indivíduos estão conservadas, ou seja, as pulsões sexuais e agressivas dos sujeitos, embora cerceadas, permanecem pulsando. Dito de outro modo: sempre há algum grau de fragilidade, de instabilidade, no equilíbrio da ordem promovida pelas instituições, pois a pulsão nunca dorme.

Assim, não se deve entender a instituição como algo conservador, desprovida de ações contrárias, uma vez que em seu bojo encontram-se movimentos causados por seu, digamos, “germe transformador”: o desejo. Ao longo dos séculos, nas diversas culturas, a repressão a tais movimentos, e consequentemente ao desejo, tem variado enormemente, mas sempre com a suposta pretensão de permitir a vida coletivamente.

Antes de prosseguirmos, cabem aqui dois parêntesis para a conceituação de desejo e sujeito, do ponto de vista psicanalítico, transcrevendo trechos de um artigo de Torezan e Aguiar:

- Em Freud, o desejo é caracterizado por um impulso na busca da reprodução de uma satisfação original, mas de forma alucinatória; ou seja, faz referência a um objeto atrelado originariamente à satisfação e não mais encontrado, um objeto perdido e, então, representado na ordem do Simbólico. Assim, o desejo pode se realizar sem nunca se satisfazer - diferentemente do que acontece com a necessidade -, e sempre de forma parcial, na medida em que o encontro com o objeto, tomado pelo desejo circunstancialmente, também produz remissão ao mítico objeto perdido para sempre, reabrindo a insatisfação e relançando o desejo em sua incansável circularidade

- O sujeito da psicanálise é o sujeito do desejo, estabelecido por Freud através da noção de inconsciente, marcado e movido pela falta [do objeto perdido, que é inconsciente]; distinto do ser biológico e do sujeito da consciência filosófica. Esse sujeito se constitui por sua inserção em uma ordem simbólica que o antecede, atravessado pela linguagem, tomado pelo desejo de um Outro e mediado por um terceiro.

Poderíamos mergulhar profundamente, falando muito mais sobre desejo e sujeito, todavia incorreríamos na chamada fuga ao tema. O que intento deixar bem demarcado, apresentando brevemente tais conceitos, são os enlaces do sujeito com o desejo e deste com a moralidade, pois o excesso ou a ausência das instituições revela-se fundamentalmente nas questões morais. Se até o momento não esclareci neste texto a relação entre desejo e moral, Lacan, no Seminário 7, ajuda-nos a sabê-la: a gênese da dimensão moral não se enraíza em outro lugar senão no próprio desejo. É da energia do desejo que se depreende a instância que se apresentará no término de sua elaboração como censura.

Pois bem, as instituições censuram o sujeito do desejo? Sim, anteriormente já percebemos isso, ao mencionar o cerco às pulsões. Compreendemos, ainda, que alguma censura é salutar, até mesmo um pré-requisito, para o convívio humano em sociedade. Por outro lado, a censura desmedida é nociva às capacidades e potencialidades criativas do sujeito.

Voltando-nos uma vez mais para a condição dos sujeitos inseridos numa civilização ocidental de tradições judaico-cristãs, um exemplo conhecido e robusto de repressão institucional foi aquele que, na era medieval, partiu de uma instituição religiosa, a saber, a Igreja Católica (registre-se que contrariando veementemente o ensino de Jesus explicitado nos quatro Evangelhos). Tal repressão sobreveio notoriamente como rígida moral e controle estrito no acesso ao conhecimento, mas também se configurou em violência física e mortes, nas Cruzadas e fogueiras da Inquisição. Nesse tipo de excesso promovido por uma instituição, configura-se uma situação na qual praticamente não há lugar para o sujeito do desejo, pois é como se o sujeito fosse apagado (ou, naquela ocasião medieval, queimado, quando arriscava diferenciar-se a partir de seu próprio desejo).

Apesar disso, a História da nossa civilização aponta que a escuridão medieval foi subjugada, séculos após, por movimentos contrários a ela: tomaram forma a Reforma Protestante, o Iluminismo e grandes revoluções, como a Francesa. Tais movimentos resultaram na perda do poder institucional da Igreja, porquanto agora em tese apartada da política, e na redução das intervenções do Estado sobre temas que não os de interesse coletivo, fortalecendo a noção dos direitos e liberdades individuais, inclusive das mulheres, impulsionados mais tarde pelos movimentos feministas.

A diminuição da influência institucional na escala macrossocial igualmente se fez sentir em esfera menor, com a mudança das configurações familiares, instituições predominantemente patriarcais outrora, que agora se apresentam também em diversos outros formatos, sem o mesmo poder anteriormente atribuído à figura do pai. Cabe afirmar que as famílias de hoje não têm forma definida, tampouco exercem grande controle sobre os sujeitos que as integram, e, diferente de outras épocas, parece haver poucos valores morais tomados como de substancial importância para o coletivo familiar. Além disso, estatísticas mostram que é cada vez maior o número de pessoas vivendo só, de modo a prevalecer uma moralidade individual, não raro de bases inconsistentes.

A derrocada das instituições é evidente. Seu desabamento não é total, entretanto deveras significativo. Então, uma pergunta coloca-se importante neste momento histórico: como fica o sujeito? Para tentar respondê-la, é necessário perceber algumas características da sociedade contemporânea.

Nesse sentido, vale o diálogo com Bauman, para quem a pós-modernidade (mais conhecida como os dias atuais) é marcada pela vida líquida, cuja característica marcante é a velocidade. O que até ontem era uma paixão, hoje parece entediante; aquilo que fazia algum sentido poucas horas atrás, num instante perdeu a razão de ser. As relações entre sujeitos, estabelecidas nesse contexto de instabilidade, tendem à fluidez, à superficialidade, ao efêmero, ao descarte.

Em tal mundo fluido, embora propagada como bem inalienável e de maior valor aos indivíduos, por garantir (teoricamente) suas escolhas particulares e individualidade, constata-se que a liberdade não é de acesso tão fácil quanto pode aparentar, uma vez que está intimamente atrelada ao poderio econômico, à capacidade de consumir. Assim, na vida líquida desejos não costumam ser censurados; o impedimento a eles não costuma ser de ordem moral, mas sim da ordem do capital.

Portanto, a vida líquida é uma vida de consumo, nas palavras do próprio Bauman, e, para se livrar do embaraço de ser deixado para trás, de ficar preso a algo com o qual ninguém mais quer ser visto, de ser pego cochilando e de perder o trem do progresso em vez de viajar, deve-se ter em mente que é da natureza das coisas exigir vigilância, não lealdade. No mundo líquido moderno, a lealdade é motivo de vergonha, não de orgulho. Isto, a meu ver, faz desmoronar os restos identificatórios que porventura ainda existam nas ruínas da relação entre sujeitos e instituições, às quais seria necessário um mínimo grau de lealdade e sensação de pertencimento. De fato, aspas novamente para o sociólogo pensador, o advento da sociedade líquido-moderna significou a morte das principais utopias sociais e, de modo mais geral, da ideia de “boa sociedade”.

Tendo agora que dar conta de seu desejo sem referências, sem um norte e sem censuras institucionais de cunho moral, talvez uma resposta apropriada para a questão do lugar do sujeito atual seria dizer que ele, sujeito contemporâneo, não fica em lugar algum, pois flutua sem rumo nos sedutores mares do mundo líquido moderno. E quando eventualmente pensa ter encontrado uma direção, não tarda a lhe aparecer um motivo para se desviar da rota traçada. Isso traz muitas implicações, inclusive à psicanálise. Vejamos.

Forbes afirma que a psicanálise propõe estabelecer um sujeito que, por ser responsável, só então é livre, e elogia Lacan, ressaltando que uma de suas grandes contribuições foi situar o analista não como um modelo, seja do que for, mas como um elemento causador, como uma provocação que faz falar, uma causa e não um ideal. A proposta de Lacan seria convocar o analisando a passar pelo mundo com sua diferença, ou seja, a honrar a marca de seu próprio desejo e a entusiasmar-se com a invenção. [...] O analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar um futuro para si, sem nenhuma outra razão além daquela do desejo.

Concordo com a proposta lacaniana. Penso que a invenção, a possibilidade de que o sujeito busque algo novo a partir do seu próprio desejo, deve habitar o âmago de nossa ética como psicanalistas. Entretanto, seria insensato negligenciar a condição flutuante do sujeito pós-moderno e a capacidade destrutiva inerente a essa condição. Não negligenciá-la certamente não pressupõe que o psicanalista deva incutir valores morais, os seus próprios ou de outrem, na vida do analisando, mas é preciso ter uma mínima noção da direção da análise, sabendo reconhecer quando o desejo está movendo o sujeito para lugares em que prevalece a pulsão de morte.

Dessa forma, surgem outras questões: enquanto psicanalistas atuando na clínica, na transferência, embora busquemos um esvaziamento, uma neutralidade do Eu, como poderíamos reconhecer algo prejudicial ou destrutivo para outro ser humano senão a partir de um conjunto de valores? E, afinal, existem valores que, independentes de qualquer instituição, poderíamos considerar universais? Eis perguntas para manter nosso pensar em movimento.

Por ora, concluo dizendo que o sujeito que procura seu lugar no mundo atual, sendo ético com o próprio desejo, provavelmente o encontrará em algum ponto entre o excesso e a derrocada das instituições, mas não nos extremos. Trabalhando com esse sujeito, o desafio do psicanalista contemporâneo parece ser, valendo-me aqui da fala de Roudinesco, pensar a ideia de diferença sem ceder ao diferencialismo e [...] renunciar à imagem imperiosa da maestria, mas sem por isso apagar o ideal platônico do mestre.

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*Este trabalho foi apresentado originalmente à Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica, em maio de 2019, durante reunião de articulação com o tema institucional do corrente ano: Instituições, Transferência e Ética.

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  1. REFERÊNCIAS:


    BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 210 p.

    FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? 12. ed. Barueri-SP: Manole, 2016. 224 p.

    FREUD, Sigmund. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras Completas Sigmund Freud (P. C. L. Souza, trad., Vol. 11, pp. 13- 244). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)

    FREUD, Sigmund. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)

    KOHARA, P.K.I. A instituição para o sujeito: metapsicologia da prática psicanalítica na instituição. São Paulo, 2009. 154f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

    LACAN, Jacques. A instituição familiar, Estrutura cultural da família humana. In: A família. Assírio Alvim: Lisboa, 1981, p. 10-14.

    LACAN, Jacques. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Antônio Quinet].

    PEREIRA, W. C. C. (2007). Movimento institucionalista: principais abordagens. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7(1), 6-16.

    ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 163 p.

    SOCIEDADE BÍBLICA INTERNACIONAL (Org.). Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 1991.

    TOREZAN, Zeila C. Facci; AGUIAR, Fernando. O sujeito da psicanálise: particularidades na contemporaneidade. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 11, n. 2, p. 525-554, 2011 . Disponível em . acessos em 07 maio 2019.

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    As imagens utilizadas na postagem foram obtidas livremente na internet nos seguintes endereços eletrônicos:

    https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/

    https://www.carredartistes.com/en/art-online-gallery-contemporary-artist-christian-raffin/11290-family-live-n3876.html

    https://www.ancient.eu/image/8792/medieval-siege/

    http://lnx.giovannicarlini.com/zygmunt-bauman-liquid-life/

    [acesso em 25 maio 2019]

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