Histórias de um plantão na madrugada

Fazia bastante tempo que eu não assumia plantão noturno no hospital público. Na semana passada voltei a viver essa experiência. Uma aventura, sob muitos aspectos, mas certamente um serviço importante à comunidade, pois no meio da madrugada, enquanto a maioria dorme, há os que sofrem. Pessoas com problemas muito diversos buscam atendimento médico na calada da noite, algumas com doenças orgânicas, patologias que modificam estruturalmente seus corpos, outras com sintomas desvalorizados pela medicina convencional, porquanto inexplicáveis em termos estritamente biológicos. Contudo, seja no primeiro grupo de pacientes, seja no segundo, em comum entre ambos existe o sofrimento humano, atravessado pelos conflitos da alma.

Já se passava das quatro da manhã quando José chegou ao plantão. Queixava-se de dor torácica intensa, ventilatório-dependente, estava febril e emagrecido. Afirmou ser portador do HIV, tendo abdicado da terapia antirretroviral há mais de dois anos. Ao exame clínico, apresentava-se com desconforto respiratório evidente e os pulmões tinham ausculta assimétrica, com os murmúrios praticamente abolidos na base direita. Uma radiografia simples do tórax mostrou um significativo derrame pleural e cavernas sugestivas de tuberculose pulmonar. A internação hospitalar era absolutamente necessária.

Enquanto procedia às medidas clínicas iniciais, indaguei sobre a vida de José. Ele contou-me ter sido outrora surfista profissional; seus olhos brilharam ao falar sobre aquela época de boas ondas. Todavia entristeceram-se novamente quando ele recordou sua iniciação nas drogas ilícitas, o envolvimento com o tráfico, prisão, homicídios, enfim, toda agonia de mazelas humanas que culminaram em sua vida atual, morando em um morro, sem família, foragido. Agradeceu-me por atendê-lo, por aliviar um pouco de sua dor física com analgésicos e de seu desconforto respiratório com oxigênio suplementar. Também demonstrou gratidão a mim por ouvi-lo e tratá-lo como ser humano, mesmo depois de ter me relevado o histórico do qual ele não se orgulhava, ao contrario, arrependia-se.

Ainda na badalada das quatro, a senhora Vera, aos 71 anos de idade, veio sem acompanhantes ao hospital, trazida por um taxista conhecido que a encontrara no ponto de ônibus e oferecera-lhe carona, explicando que o primeiro coletivo do dia ainda demoraria a passar. Questionei a paciente sobre o motivo de sua vinda. Com semblante deprimido, ela confessou que precisava sair de casa para fugir do filho, que a ofendia e maltratava constantemente, mas sobremaneira naquela noite. Não suportava mais a situação e o primeiro lugar onde lhe ocorreu buscar ajuda foi no hospital. A idosa não tinha nenhum ferimento físico grave, somente pequenos hematomas nos antebraços, constatei ao examiná-la. De sua alma, entretanto, impossível dizer o mesmo, pois estava dilacerada. Orientei que ela comunicasse os maus tratos à polícia e perguntei se eu poderia fazer algo mais no momento para ajudá-la, ao que ela respondeu: “Ter sido acolhida por ti foi o suficiente”.


Depois apareceu o jovem Roberto, que procurou atendimento porque se sentiu subitamente com palpitações, angústia e dor no peito, após fumar um cigarro de maconha naquela madrugada. Ele estava com muito medo de ter um infarto. Havia no caso um paradoxo, tendo em vista que a Cannabis sativa tem propriedades reconhecidamente depressoras do sistema nervoso central e o rapaz apresentava sintomas tipicamente ansiosos. Bem, assim somos os seres humanos: um tanto quanto paradoxais. Examinei calmamente o Roberto, recomendei que ele reassumisse gradativamente o controle consciente da própria respiração, tranquilizei-o afirmando que seu coração estava com ritmo regular, dentro da frequência normal, e que eu não suspeitava que ele estivesse infartando, pelo menos por enquanto. Em pouco tempo o jovem sentiu-se melhor e preparado para a alta hospitalar. Saiu de lá afirmando que nunca mais fumaria um baseado.

Eu poderia incluir incontáveis outros exemplos e até colocar pontos finais nessas histórias, porém sei que elas continuarão suas escritas por estradas ainda desconhecidas. Somente o desejo de cada sujeito poderá revelá-las, enquanto são trilhadas, de modo único, singular, embora com algumas semelhanças aqui e ali entre os variados personagens. E, claro, não se pode negar que o desejo é fortemente influenciado pelo ambiente, pela cultura e pelas políticas públicas.


Fato é que, como médico e psicanalista em formação, a disposição para ouvir com atenção e interesse genuínos tais histórias parece-me essencial. Trata-se de um requisito básico para prestar atendimento de qualidade às pessoas que, na madrugada ou não, precisam ser escutadas de modo pleno, uma escuta que compreende a linguagem do corpo e da alma como unidade indissociável durante nossas vidas. Essa escuta, afinal, pode ser uma luz que, apesar de discreta, em determinados momentos talvez seja a única a subjugar a escuridão do sofrimento humano, trazendo um vital lampejo de esperança.

---o--- 

Nota: os nomes próprios apresentados no texto acima são fictícios, embora representem pessoas e histórias reais.

Comentários

  1. As imagens que acompanham esta postagem foram obtidas livremente na internet, respectivamente nos seguintes endereços eletrônicos:

    https://fineartamerica.com/featured/new-growth-new-hope-holly-kempe.html

    http://blogs.correiobraziliense.com.br/consultoriosentimental/quando-dor-vem-da-alma/

    https://aniltonlevy.blogs.sapo.cv/6629.html

    [acesso em 12 fev 2019]

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina