Lentas elaborações: a psicanálise em meio à doença orgânica

Um homem com câncer apresentou-se na consulta médica como um ser humano bom, em sua própria visão. Como então poderia um câncer estar crescendo dentro de si? Que fatalidade!

Sim, o homem mencionado considerava uma fatalidade, talvez uma injustiça, estar com uma neoplasia. Nota-se que foi o próprio sujeito quem associou o câncer a algo mau, ao indignar-se com o fato de alguém “bom como ele” estar padecendo de tal doença, reconhecidamente “maligna”. Então é tempo de questionarmos: seria mesmo possível para nós, humanos, sermos tão bons assim, a ponto de nos tornarmos imunes ao que é mau? Ou seriam bondade e maldade polos entre os quais necessariamente transitamos, pendendo ora mais para um lado, ora para o outro?

Podemos também nos perguntar se cânceres, calculoses, reações autoimunes, condições inflamatórias crônicas, nefropatias, cardiopatias, diabetes e tantas outras patologias orgânicas seriam consequências do acaso. Parece-me que não. Isto não significa que as pessoas sejam “culpadas” pelas situações mórbidas que experimentam, tampouco que tais doenças correspondam a uma espécie de “punição”.

Não contar com o acaso significa compreender que a morbidade traz consigo algum sentido em potencial, a ser descoberto (ou não, a depender do desejo do sujeito). Trata-se, pois, de uma oportunidade para aprender sobre si. Assim, cada ser humano pode compreender, entre incontáveis possibilidades de narrativas e interpretações, seu processo singular de adoecimento. Contudo, para o sujeito que desenvolve a doença, qualquer sentido que se possa a ela atribuir é obscuro, inconsciente, especialmente no momento inicial de apresentação da patologia. Além disso, jamais haverá um sentido único.

Os leitores frequentes deste blog sabem que defendo a importância de se inserir a doença na biografia do sujeito doente. Existe uma história a ser lida, idealmente em paralelo aos tratamentos ditos convencionais (estes que se ocupam prioritariamente do corpo). Entretanto, uma ressalva há que ser feita ao psicanalista que intencione favorecer o processo de elaboração psíquica no cenário das doenças orgânicas: interpretações precipitadas impedem que ocorra um trabalho verdadeiramente elaborativo, a se desenvolver pelo próprio paciente.

Cuidar da psique em meio à patologia física exige um percurso que demanda cautela, paciência, repetições e vínculo, a fim de iluminar gradativamente aquilo que está nas sombras do sujeito, com o devido cuidado para não ofuscá-lo. Não é papel de um terapeuta, especialmente se for psicanalista, acusar ou julgar o paciente, tampouco denunciar precocemente ao último a existência de cisões psicossomáticas, pois tais condutas inviabilizariam as possibilidades elaborativas por parte de quem se encontra doente.

O trabalho elaborativo é incompatível com a pressa, já devíamos saber. Uma advertência quanto às afoitas interpretações na clínica fora sinalizada por Freud há bastante tempo, ao discorrer sobre o que se denominou psicanálise “selvagem”. Embora esteja originalmente no contexto das neuroses, a advertência de Herr Professor é plenamente válida para trabalhos psicanalíticos mais contemporâneos, como aqueles que se pautam na psicossomática. Freud diz que uma intervenção psicanalítica [...] certamente pressupõe um contato mais prolongado com o doente, e tentativas de, logo na primeira sessão, atropelá-lo com a comunicação abrupta de seus segredos, adivinhados pelo médico, são tecnicamente condenáveis e geralmente colhem como resultado uma inimizade profunda por parte do doente em relação ao médico, cortando todas as possíveis influências futuras.

Ao encontro do pensamento freudiano, Lacan, no livro 1 de seu Seminário, ressalta que Freud, tanto quanto pode, renuncia à sugestão para deixar o sujeito integrar aquilo de que está separado pelas resistências. Mais adiante no mesmo seminário, quando discorre sobre a resistência e as defesas, Lacan afirma que se alguma coisa faz a originalidade do tratamento analítico, é ter percebido, na origem, de cara, a relação problemática do sujeito consigo mesmo. O achado propriamente dito, a descoberta [...] é ter colocado essa relação em conjunção com o sentido dos sintomas. [...] É a recusa desse sentido pelo sujeito que lhe coloca um problema. Esse sentido não lhe deve ser revelado, deve ser assumido por ele. Nisso, a Psicanálise é uma técnica que respeita a pessoa humana [...] – que não somente a respeita, mas só pode funcionar respeitando-a.

Encontra-se, todavia, na necessidade do tempo dilatado um dos grandes desafios para a realização da clínica psicanalítica das desorganizações psicossomáticas, pois vivemos hoje num mundo em que a velocidade e a fragilidade das relações imperam em quase tudo, um mundo no qual predomina a liquidez da vida humana, apontada por Bauman: para os sujeitos levados pela vida líquida, todos aqueles custos exorbitantes das antigas terapias não são mais necessários (e aqui entendo que ele não fala apenas de custo financeiro, mas do preço do envolvimento, do vínculo, da transferência). Em seu lugar, continua Bauman, cairão muito bem as novas e aperfeiçoadas dietas, os aparelhos de ginástica, as mudanças de papel de parede, os tacos no lugar dos carpetes (ou vice-versa), a troca de uma minivan por um jipe (ou o contrário), de uma camiseta por uma blusa, de vestidos ou forros de sofá monocromáticos por outros ricamente coloridos, o aumento ou a redução dos seios, as trocas de tênis e de marcas de bebidas, as rotinas diárias adaptadas à última moda e a adoção de um vocabulário surpreendentemente novo para expressar publicamente confissões íntimas... E, como último recurso, no horizonte extremamente distante, assombram as maravilhas da modificação genética. Não importa o que aconteça, não há necessidade de desespero. Se todas essas varinhas-mágicas se revelarem insuficientes ou, apesar de toda a benevolência em relação ao consumidor, se mostrarem embaraçosas ou lentas demais, existem as drogas que prometem uma visita instantânea, ainda que breve, à eternidade (felizmente com outras drogas que garantem o bilhete de volta).

A enfermidade, ao contrário das rápidas mudanças na vida líquida, não costuma surgir da noite para o dia, especialmente quando se trata da lesão de órgão. Ela é um estado decorrente da persistência de uma cisão ou de dissociações múltiplas na organização do ego do paciente, como salientou Winnicott. Ou seja, questões muito arcaicas, enraizadas profundamente no psiquismo do sujeito, estão envolvidas no processo do adoecimento; é sobre elas, portanto, que, como analista, deve-se atuar. No entanto, não se recomenda mexer rapidamente em raízes, tampouco arrancá-las velozmente, a menos que se negligencie o potencial destrutivo de tais manobras.

Muitas das propostas terapêuticas na pós-modernidade sequer se ocupam das raízes, da estrutura dos sujeitos, e ainda prometem resultados de curto prazo, alimentando as pretensões da maioria das pessoas mergulhadas em tempos líquidos. Falo de promessas que vendem muito bem e até podem trazer benefícios, mas estes não se sustentam por muito tempo. Na melhor das hipóteses, os sintomas são deslocados e o sofrimento do sujeito permanece.

Dizemos que nesses pacientes, nos quais o corpo (soma) sofreu uma lesão (ou anomalia orgânica), há desintegração ou desorganização psicossomática. A presença da lesão é uma inscrição defensiva, relacionada à alienação de representações psíquicas, situação em que o ego, por motivos diversos, foi incapaz de elaborá-las. Nasio, citando o Seminário 2 de Lacan, afirma que as reações psicossomáticas, no sentido de doença orgânica, estão no nível do Real, e vai adiante, dizendo que o que não veio à luz do simbólico reaparece no Real sob a forma de uma lesão de órgão.

Ao questionar sobre o lugar do analista e o que seria sua intervenção em tal cenário, o mesmo Nasio responde que intervir é mudar a barreira, ou seja, dar um nome à lesão e assim remetê-la para algo outro. Esta é a primeira – das intervenções de um analista – tanto no sentido cronológico como no de importância – diante de uma afecção de órgão. Dar-lhe um nome significa emoldurá-la, dar-lhe uma história, por exemplo, restituir-lhe uma descendência. Fazer com que a barreira não seja mais uma lesão e sim um nome.

Reforço que o perfil de pacientes sobre o qual falamos aqui necessita de alguém que os acompanhe sem tentar modificar o quadro defensivo até que eles possam, a partir de si mesmos, lentamente, permitir que o processo de amadurecimento ocorra na direção da integração, que lhe é própria. O que se espera de quem assume a função terapêutica é que seja facilitador desse processo, notadamente através da escuta qualificada e da contenção de excitações, como faz uma mãe suficientemente boa exercendo a função materna. De fato, a psicanálise do analisando somatizante depende mais de disposições verdadeiras, interiores do analista, do que das palavras que diz, ou seja, nesse trabalho lento e cuidadoso, aqui sublinhado previamente, a intuição e os afetos do analista serão mais úteis do que sua inteligente capacidade interpretativa, embora alguns pensem o contrário quando se fala de psicossomática.

Resta saber, em cada caso particular, a que sacrifícios paciente e psicanalista estarão dispostos, a fim de manter o vínculo de um longo, e não raro penoso, tratamento. O paciente, no mínimo, deverá livrar-se progressivamente de convicções enganosas de seu Eu que até então lhe eram inquestionáveis.

---o---

*este trabalho foi originalmente apresentado nas Jornadas Internas da Maiêutica Florianópolis, em novembro de 2018.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:

    BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 210 p.

    BOMBANA, José Atílio. Transferência e interpretação na clínica da somatização. In: VOLICH, Rubens Marcelo; FERRAZ, Flavio Carvalho; RANÑA, Wagner. Psicossoma IV: Corpo, história, pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 327-334.

    DIAS, Elsa Oliveira. O distúrbio psicossomático em Winnicott. In: VOLICH, Rubens Marcelo; FERRAZ, Flavio Carvalho; RANÑA, Wagner. Psicossoma IV: Corpo, história, pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 107-120.

    FREUD, Sigmund. Sobre psicanálise "selvagem" (1910). In: FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 81-91. Tradução de: Claudia Dornbusch.

    LACAN, Jacques. A resistência e as defesas. In: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Cap. 3. p. 44-55. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Betty Milan].

    NASIO, Juan-David. Psicossomática: As formações do objeto a. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 171 p. Com intervenções de Pierre Benold e Jean Guir; tradução Felipe Leclerq em colaboração com Miguel Kertzman.

    WINNICOTT, Donald W.. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. 462 p.

    ---o---

    As imagens do artigo foram obtidas livremente na internet:

    1. https://www.abc.net.au/radionational/programs/allinthemind/hypochondria-and-psychosomatic-illness/6866448 [acesso em 02 dez 2018].

    2. https://www.thebestbrainpossible.com/its-all-in-your-mind/ [acesso em 02 dez 2018].

    3. “Body and soul” – by Naz Deniz. Disponível em: https://www.saatchiart.com/art/New-Media-Body-and-Soul/1095645/4330632/view [acesso em 30 nov 2018].

    4. “Puzzled” – by Sam Sidders. Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/puzzled-sam-sidders.html [acesso em 02 dez 2018].

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os adolescentes e algumas psicoses do nosso tempo

Sobre violência autoinfligida e a queda do pai na era moderna

A masturbação coletiva e os estudantes de Medicina