A trajetória e a importância de um grupo de estudos em Medicina Psicossomática


A TRAJETÓRIA E A IMPORTÂNCIA DE UM GRUPO DE ESTUDOS EM MEDICINA PSICOSSOMÁTICA*

autores:

Bruno Guimarães Tannus
Beatriz Manzan Dalla Vecchia
Yuri Cordeiro Szeremata

*trabalho apresentado originalmente no 19º Congresso Brasileiro de Medicina Psicossomática, ocorrido na cidade de Caxias do Sul-RS, em setembro de 2018, e premiado como melhor trabalho na modalidade apresentações orais.


Introdução

Atualmente o Hospital Governador Celso Ramos (HGCR) é um dos principais recursos de alta complexidade disponibilizado pelo sistema público de saúde na cidade de Florianópolis-SC. Além de receber pacientes encaminhados de outros serviços de saúde que necessitam suporte hospitalar, o HGCR também trabalha com “portas abertas”, acolhendo a população que busca espontaneamente atendimento de urgência. Ocorre, no entanto, que a maioria dos atendimentos dessa demanda espontânea não se configura, tecnicamente, situações graves sob a ótica médica. Porém, é fato que essas pessoas, habitualmente alheias à organização e aos fluxos do sistema de saúde, esperam alguma resposta do serviço hospitalar para seus problemas.

Entendendo a necessidade de abordar de modo diferente esse tipo de paciente que busca ativamente o hospital, particularmente nos diversos casos em que não se suspeita de doenças orgânicas agudas, um médico especialista em medicina de família, membro do corpo clínico do HGCR desde 2014, passou a empreender a abordagem centrada na pessoa em tais situações, sempre que ela se mostrava apropriada apesar do contexto hospitalar emergencial. Medicina centrada na pessoa foi um termo criado pelo médico e psicanalista Michael Balint (STEWART et al., 2017), considerado um dos pioneiros da psicossomática (VOLICH, 2016; EKSTERMAN, 2010a).

Os benefícios da utilização pelo médico de um método clínico centrado na pessoa são muitos (STEWART et al., 2017), especialmente quando o profissional está diante de pacientes cujos sintomas não podem ser adequadamente explicados pelo modelo clínico convencional focado na doença. Nestas circunstâncias torna-se particularmente relevante explorar os aspectos subjetivos do processo de adoecimento (ANDERSON; RODRIGUES, 2012; FORTES et al., 2013).

Embora estivesse ciente de que a abordagem centrada na pessoa não fosse usual no ambiente de uma emergência hospitalar, o médico de família em pauta notou que o recurso propiciava evitar prescrições e solicitações de exames complementares desnecessárias em seus atendimentos. Além disso, os pacientes pareciam mais satisfeitos com as condutas pactuadas. O médico observou, ainda, que boa parte dos acadêmicos de medicina estagiários no referido hospital demonstrava surpresa e curiosidade diante da atitude de valorizar também a subjetividade dos pacientes nas consultas médicas.

Compreendendo que havia uma demanda dos estudantes mencionados pelos conhecimentos da psicossomática, uma vez que esta é estrutural à medicina da pessoa (EKSTERMAN, 1975; PERESTRELLO, 2006), o médico teve a ideia de criar um grupo de estudos sobre o tema, na segunda metade de 2017. A intenção de constituir o grupo foi divulgada através de contato direto com os estagiários no HGCR e de canais de comunicação virtual, como e-mails, grupos do WhatsApp e redes sociais.

Não demorou muito para que o grupo estivesse formado e seu objetivo principal seria propiciar um espaço para livre circulação dos interessados em psicossomática, agregando saberes alternativos aos currículos oficiais das faculdades de medicina da região. Entretanto, é interessante apontar que, antes mesmo da primeira reunião, muitos estudantes e profissionais de outras áreas da saúde, como psicologia, fisioterapia, educação física e nutrição, souberam do grupo e decidiram dele participar, tornando-o interdisciplinar desde o início.

A intenção do presente trabalho é apresentar as experiências do grupo de estudos supracitado, nomeado Psicossomática Florianópolis, ressaltando sua importância na visão de alguns dos participantes. Devemos registrar que o grupo não tem qualquer vínculo formal com o HGCR, apesar de esta instituição ceder gentilmente sua sala de treinamentos para abrigar os encontros daquele.


Metodologia

Trata-se este artigo de uma pesquisa explicativa, permeada por traços exploratórios, na medida em que também são apresentados depoimentos de pessoas que participaram do grupo de estudos e disponibilizaram seu relato voluntariamente, até o momento desta redação. Descreve-se, brevemente, a trajetória do grupo de estudos Psicossomática Florianópolis, enfatizando os pressupostos e conceitos teóricos que embasam seus encontros. 

Marco conceitual

Psicossomática Florianópolis é um grupo de estudos pensado e estruturado para facilitar que seus participantes se aproximem da psicossomática psicanalítica e da medicina da pessoa. A correlação entre ambas é notada sem grandes dificuldades, como demonstrado no decorrer dos próximos parágrafos.

Para que seja possível a cura de qualquer sintoma ou doença, pressupõe-se que a pessoa afetada busque algum restabelecimento da integração entre corpo e psique, atribuindo assim significados à sua condição de sofrimento (DETHLEFSEN; DAHLKE, 2012; LELOUP, 2015). Desta concepção decorre a abordagem centrada na pessoa, um método que tira o foco da doença, embora não negligencie esta última (STEWART et al., 2017; PERESTRELLO, 2006).

Praticar medicina centrada na pessoa é um esforço para se reconciliar a medicina clínica com a existencial. Assim, demanda o entendimento da pessoa como um todo. Demanda, ainda, conhecer a experiência que cada pessoa tem com sua própria doença ou sensação de adoecimento. A partir disso, pactuam-se planos de manejo dos problemas entre o profissional de saúde e a pessoa atendida (STEWART et al., 2017).

Através da psicossomática, entende-se que é preciso esclarecer de que sofre a pessoa, não apenas no corpo, mas também na alma – aqui deve ficar claro que não se fala de alma num sentido religioso, mas da psique, como usado por Freud (2017) –. De outro modo, se a linguagem implícita no sintoma não for decodificada através de uma escuta atenciosa, o sintoma tende à falta de significado e à permanência, ainda que talvez se manifeste de modo diferente (VOLICH, 2016; DETHLEFSEN; DAHLKE, 2012).

Percebe-se, pois, que a medicina da pessoa tem suas raízes na psicossomática. Não por acaso, Perestrello (2006) afirma, em sua mais conhecida obra, o livro A Medicina da Pessoa, que todas as doenças são psicossomáticas. Assim, abordagens isoladamente psicológicas e terapias que se reduzem à anomalia orgânica seriam igualmente infrutíferas, uma vez que a distinção entre doentes funcionais e orgânicos, além de artificial, não contribui para a compreensão dos problemas reais da clínica. Esse autor defende que toda pessoa doente deve ser tratada de modo integral.
Segundo Eksterman (2010a; 2010b), no diálogo entre a Psicanálise e a Medicina encontra-se a Medicina Psicossomática, esta que se ergue sobre três pilares:
1. A etiopatogenia somática está comprometida com a função psicológica (ressaltando que comprometimento difere de uma relação reducionista de causa-efeito);
2. A ação assistencial em saúde é um processo complexo;
3. A natureza do ato médico é humanista, portanto a terapêutica deve estruturar-se em função da pessoa.

Dessa forma, caminha-se praticamente pela mesma estrada quando se pensa em integralidade em saúde, medicina da pessoa e psicossomática. A propósito desta última, é importante ressaltar que suas modernas correntes estão atreladas à Psicanálise (VOLICH, 2016), o que implica a compreensão de qualquer distúrbio da saúde pela observação do paciente em sua singularidade. Melhor dizendo, sintomas e doenças são inseridos na biografia de cada sujeito (EKSTERMAN, 2010b).


Resultados

Os estudos do grupo em pauta iniciaram-se pelas ideias sintetizadas acima, passando também por questões básicas da metapsicologia freudiana, a qual sabidamente foi determinante para o desenvolvimento da psicossomática psicanalítica (VOLICH, 2016; PERES; CAROPRESO; SIMANKE, 2015). Na continuidade dos encontros, pretende-se adentrar teorias de autores mais contemporâneos, como Pierre Marty e Joyce McDougall (CAPITÃO; CARVALHO, 2006), sempre as articulando com casos clínicos que os participantes compartilham para fomentar o debate no grupo, momento batizado como “histórias da clínica”.

Conforme apontado anteriormente, não apenas estudantes de medicina, mas também profissionais de saúde diversos aderiram ao Psicossomática Florianópolis, que vinha se reunindo a cada 40 dias, em média, desde outubro de 2017, quando ocorrera a primeira reunião. Neste ano de 2018 houve um período de reorganização, com alguns meses sem encontros presenciais, no entanto o grupo mantém-se ativo, com novo encontro agendado. A propósito, o agendamento das reuniões e o compartilhamento de artigos e outros materiais de estudo ocorrem através do aplicativo WhatsApp, no qual se criou um grupo que representa virtualmente todos os integrantes do Psicossomática Florianópolis. A participação nos encontros presenciais, bem como os movimentos de entrada e saída de integrantes do grupo, tem sido totalmente livre, conforme o desejo dos sujeitos.

Na elaboração deste trabalho, obtivemos depoimentos de colegas que participaram, até o momento, de pelo menos uma das reuniões presenciais do grupo de estudos, com a intenção de ilustrar alguns impactos do Psicossomática Florianópolis na formação e atuação dos estudantes e profissionais de saúde que se envolveram nele. Os colegas contribuíram de livre e espontânea vontade com seus relatos. A seguir, apresenta-se uma síntese dos depoimentos, com a ressalva de que não se pretende analisar detalhadamente, no presente trabalho, os discursos dos sujeitos.

A introdução à psicossomática, através das vivências do grupo, permitiu aos participantes o contato com uma “[...] nova prática clínica, em que se valoriza o indivíduo em sua integralidade, seus conflitos, contextos e perspectivas, valorizando a dignidade humana” (participante acadêmico de medicina). A medicina lecionada atualmente nas universidades propõe a seus alunos “[...] um olhar mais restrito, direcionado a identificar doenças orgânicas e tratá-las. A participação do grupo de psicossomática proporcionou contato com uma abordagem do processo de saúde e doença distinta do ambiente acadêmico.” (participante acadêmica de medicina). Dessa forma, o grupo permitiu “[...] preencher lacunas de conhecimento” (participante educador físico e acadêmico de fisioterapia), auxiliando a obter “[...] uma visão holística para identificar a raiz das queixas que os pacientes apresentam” (participante terapeuta estética e massoterapeuta clínica).

Pôde-se constatar que “[...] conhecer o paciente dentro da sua realidade e observá-lo além da doença” (participante nutricionista) é imprescindível para obter “[...] não apenas um melhor diagnóstico, mas também uma melhor terapêutica” (participante acadêmico de medicina). “A psicossomática amplia as competências interpessoais dos profissionais, horizontalizando o relacionamento profissional-paciente, através do fortalecimento desse vínculo, para que o paciente confie sua história e suas dores àquele outro que o atende” (participante acadêmica de medicina).

“Diversos fatores podem estar envolvidos no adoecimento do paciente; cada pessoa é única e traz consigo uma subjetividade” (participante nutricionista). Portanto, torna-se necessário “[...] elucidar essas questões sintomáticas na elaboração de hipóteses sobre suas causas, podendo [...] construir novos raciocínios e estratégias de tratamento mais eficazes” (participante educador físico e acadêmico de fisioterapia). O grupo de estudos permitiu que as “[...] possibilidades de tratamento e a identificação de causas patológicas fossem ampliadas” (participante acadêmica de medicina).

Há que se registrar o fato de que os depoimentos dos colegas revelaram ser a psicossomática um tema ausente ou bastante negligenciado em suas formações acadêmicas. A propósito, percebemos que os estudos e debates que ocorreram no grupo de estudos suscitaram surpresas e, consequentemente, críticas sobre a ausência da psicossomática como conteúdo curricular formal. Uma participante acadêmica de medicina afirmou que a “[...] compreensão de mente e corpo como unidade deveria ser abordada e integrada nos estudos médicos, situação que não ocorre na atual grade curricular, infelizmente.” Outra colega estudante de medicina disse que “Ainda que em alguns momentos na graduação tenha sido comentado sobre os aspectos da psicossomática, não houve espaço para aprofundar nas teorias.” Um terceiro estudante de medicina revelou que, no caso de sua faculdade, a psicossomática “[...] é um tema pouco ou [...] nada abordado durante o curso de Medicina”.

Quanto à relevância do estudo da psicossomática, uma participante estudante de medicina mencionou que a importância do tema para sua “[...] formação acadêmica e futura prática profissional é enorme” e acrescentou que no curso de medicina de sua faculdade “[...] não existe nada que aborde o assunto.” Um participante educador físico e graduando em fisioterapia relatou que participar do grupo de estudos em psicossomática “[...] foi, em uma experiência pessoal, de suma importância para a tentativa de cumprir lacunas de conhecimento e manejo” faltantes em sua graduação. Um participante acadêmico de medicina mencionou que “Analisar as comorbidades e queixas dos pacientes a partir da psicossomática permite não apenas um melhor diagnóstico, mas também uma melhor terapêutica. O grupo ajudou a abrir meus olhos quanto a esse tema tão importante e com isso aprimorar minha relação médico paciente.” Outro acadêmico de medicina disse que o grupo “[...] desmitifica muitas questões que nos causam medo e preconceito, mudando totalmente nossa visão sobre a psicossomática e nos encorajando a abordar o assunto com os pacientes, o que aumenta o sucesso terapêutico”.

Convém citar um relato único, de uma participante acadêmica de medicina, acerca de experiência prévia com a psicossomática na universidade: “Durante a graduação de Medicina cursei a cadeira de Psicologia Médica, a qual propôs uma ‘nova’ maneira de acolher o paciente, como um ser completo e com particularidades, com base na Medicina Centrada na Pessoa”.


Considerações finais

Os depoimentos obtidos neste trabalho sugerem a importância singular do contato com aspectos teóricos e práticos da psicossomática para a formação profissional na área da saúde. Entretanto, apesar de sua reconhecida relevância, parece que essa temática ainda é negligenciada pela grade curricular ordinária dos cursos de graduação nos quais os participantes do grupo de estudos em pauta estão matriculados, ou dos quais são egressos.

Nossa experiência com o grupo de estudos Psicossomática Florianópolis vem mostrando que um espaço alternativo aos saberes convencionais é benéfico, contudo pensamos ser fundamental incluir a psicossomática, de modo mais consistente, nos programas oficiais de escolas formadoras dos diversos profissionais de saúde. Por certo, para que essa inclusão ocorra, deve haver docentes, especialmente aqueles envolvidos no planejamento dos modelos curriculares, que também a queiram.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, M. I. P.; RODRIGUES, R. D. Integralidade na prática do médico de família e na Atenção Primária à Saúde. In: GUSSO, Gustavo; LOPES, José M. C. (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 71-83.

CAPITÃO, C. G.; CARVALHO, É. B. Psicossomática: duas abordagens de um mesmo problema. Revista de Psicologia da Editora Vetor. 2006; 7(2), 21-29. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psic/v7n2/v7n2a04.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2018.

DETHLEFSEN, T.; DAHLKE, R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. 17 ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

EKSTERMAN, A. Psicanálise, psicossomática e medicina da pessoa. Relatório oficial apresentado no I Encontro Argentino-Brasileiro de Medicina Psicossomática. Buenos Aires, 1975. Disponível em: <http://www.medicinapsicossomatica.com.br/doc/psicanalise_medicina_pessoa.pdf>. Acesso em: 16 ago 2018.

______. Medicina Psicossomática no Brasil. In: FILHO, Julio de M.; BURD, Miriam (organizadores). Psicossomática hoje. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2010a, p. 39-45.

______. Psicossomática: o diálogo entre a psicanálise e a medicina. In: FILHO, Julio de M.; BURD, Miriam (organizadores). Psicossomática hoje. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2010b, p. 93-110.

FORTES, S et al. Queixas somáticas sem explicação médica. In: DUNCAN, Bruce B. et al (organizadores). Medicina ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2013, p. 1138-1147.

FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica (tradução: Claudia Dornbusch) – coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud. São Paulo: Autêntica, 2017.

LELOUP, J. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. 23 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

PERES, R. S.; CAROPRESO, F.; SIMANKE, R. T. A noção de representação em psicanálise: da metapsicologia à psicossomática. Psicologia Clínica. 2015; 27(1), 161-174. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pc/v27n1/09.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2018.

PERESTRELLO, D. A Medicina da Pessoa. 5 ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2006.

STEWART, M. et al. Método clínico centrado na pessoa: transformando o método clínico. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.

VOLICH, R. M. Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. 8 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2016.






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