Brigas de torcidas, carnavais e hospitais públicos

Na obra “Moisés e o monoteísmo”, embora se dedique fundamentalmente à compreensão daquilo que mais tarde Lacan conceituaria como Nome-do-Pai, há um pequeno trecho em que Freud comenta especificamente sobre o ódio direcionado aos judeus. Nesses comentários podemos encontrar uma articulação relevante com o chamado narcisismo das pequenas diferenças.

Falamos de narcisismo das pequenas diferenças, o que não quer dizer que os efeitos de tal narcisismo sejam pequenos ou invisíveis. Ao contrário, podem ser traumáticos, notáveis. O narcisismo em pauta, o das pequenas diferenças, remete à tendência de cada sujeito em se separar dos outros em função de diversidades menores, enaltecendo-as em detrimento das muitas semelhanças que existem entre ele, sujeito, e as demais pessoas. Pode-se verificar a mesma tendência também em grupos de sujeitos no tocante a outros grupos.

Freud afirma, em sua obra supracitada, que um fenômeno de tal intensidade e permanência como o ódio do povo pelos judeus deve [...] possuir mais de um fundamento, alguns deles claramente derivados da realidade, que não exigem interpretação, e outros a jazer mais profundamente, derivados de fontes ocultas, que poderiam ser consideradas as razões específicas. [...] A intolerância dos grupos é quase sempre, de modo bastante estranho, exibida mais intensamente contra pequenas diferenças do que contra diferenças fundamentais.

A partir das afirmações de Freud transcritas acima, que paralelos poderíamos traçar, no cotidiano e na clínica atuais, em relação ao tipo de ódio e intolerância que ele menciona? Inúmeras situações podem ser apontadas, todavia escolhi ilustrar o assunto com exemplos tipicamente brasileiros.

Comecemos com algo que tem potencial para provocar traumas em todos os sentidos, inclusive no corpo, a saber, as brigas de torcidas organizadas de futebol. Obviamente essa agressividade não é exclusiva dos torcedores de times no Brasil (se é que podemos chamar os briguentos de torcedores), mas nossa história recente é repleta de ocorrências do tipo, comumente destrutivas.

Nas brigas de torcidas odeia-se o outro simplesmente porque ele veste uma camisa diferente. Isto, claro, é o fundamento derivado da realidade, cuja interpretação se dispensa, como assinalou Freud. Mas, afinal, o que de fato está representado nesse ódio, que pode até matar?

A intolerância entre torcedores de times diferentes é mesmo estranha, pois em tese seriam pessoas com uma afeição comum pelo futebol. Entre os times variam as cores, os estádios, as histórias e os títulos, todavia, em essência, todos jogam o mesmo jogo. E, afinal, que graça teria o futebol sem que um time tivesse seu grande rival? O que seria do Palmeiras sem o Corinthians, do Flamengo sem o Vasco, do Cruzeiro sem o Atlético, do Grêmio sem o Inter?


É verdade que muitos desses duelos não se restringem ao campo ou às brincadeiras nas quais se mantém o respeito pelo outro ser humano. Às vezes a disputa torna-se uma verdadeira guerra. Aqui estaria colocada a questão cujo fundamento jaz mais profundamente, cuja fonte está oculta a um primeiro olhar: o que exatamente está em disputa nos casos em que a agressividade aflora e o esporte é deixado à revelia?

Convém nos perguntarmos, ainda, se tal agressividade, suposta e erroneamente em nome do futebol, manifestar-se-ia se os indivíduos estivessem sozinhos. Será que ela somente se exterioriza por estarem em grupo?

O próprio Freud pode nos ajudar a encontrar respostas para as duas últimas perguntas, através de seus escritos em “Psicologia das massas e análise do eu”, quando menciona que [...] na massa o indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes. As características aparentemente novas, que ele então apresenta, são justamente as manifestações desse inconsciente, no qual se acha contido, em predisposição, tudo de mau da alma humana. Não é difícil compreendermos o esvaecer da consciência ou do sentimento de responsabilidade nestas circunstâncias. Há muito afirmamos que o cerne da chamada consciência moral consiste no “medo social”.

Uma segunda articulação possível entre o narcisismo das pequenas diferenças e algo cotidiano pode ser demonstrada no carnaval, tradicional festa da cultura brasileira. Apesar de o carnaval ser famoso pela mistura de etnias e pela liberdade irrestrita ao gozo, há certa demonstração de intolerância em algumas ocasiões, quando nos trios elétricos coloca-se uma espécie de cordão de isolamento, separando os foliões mais abastados dos menos favorecidos economicamente. Difícil precisar o tamanho dessa “pequena” diferença.


À parte a estupidez de os festeiros se colocarem voluntariamente num lugar em que nem as próprias necessidades fisiológicas podem ser respeitadas, quando se vê, através de uma foto tirada do alto, toda essa multidão que a priori estaria reunida pelos mesmos motivos (a diversão e a libertinagem do carnaval), é possível perceber que a tal corda separa não apenas os ricos dos pobres. Seria exagero compara-la a um tipo de apartheid?

Finalmente, um exemplo de intolerância a ocorrer na clínica, mais precisamente na clínica médica, da qual no atual momento tenho mais propriedade para falar do que da clínica psicanalítica, pois nesta última sou iniciante.

Embora o direito à assistência em saúde seja garantido constitucionalmente, o que está à disposição de ricos difere enormemente daquilo que se propõe aos pobres. A intolerância a que me refiro na clínica pode ser encontrada na atenção à saúde dispensada pelos médicos (e provavelmente também pelos outros profissionais da área). Não reside essa intolerância na transformação da saúde em mercadoria, apesar disto ocorrer e influenciar o processo. Trata-se de um não tolerar geralmente velado, advindo de dois fatos: 1) a maioria dos médicos ainda são filhos das elites financeiras em nosso país; e 2) há enormes distinções entre saúde pública e privada, a começar porque a primeira é amplamente comercializável e rentável; quanto à outra, nem tanto.

Sabe-se que as doenças orgânicas são mais prevalentes entre os menos favorecidos. Muitos médicos, porém, vêm de uma realidade social economicamente vantajosa e minoritária; assim, eles nem sempre chegam a demonstrar aversão em atender pacientes socialmente vulneráveis, mas se tornam habitualmente profissionais incapazes de contextualizar a clínica àqueles sofrimentos humanos que talvez sejam os mais relevantes. Perante esse abismo social, podem se angustiar tanto médicos quanto pacientes. 


Então, paradoxalmente, são justamente esses médicos, socialmente bem alocados, que costumam compor o corpo clínico de hospitais públicos, onde seus pares em termos de classe social não são pacientes frequentes. O desconforto que uma porção desses médicos tem ao atender, por exemplo, uma pessoa em condição de rua, suja e maltrapilha, contrasta com o que sentem ao trabalhar com o paciente cujo padecimento não inclui a miséria material. Não me parece ilícito deduzir que uma posição desconfortável por parte do médico de alguma forma prejudicaria a qualidade do atendimento prestado ao doente.

Possivelmente seja um tanto forçada a relação entre o mal estar médico mencionado e a intolerância em pauta neste texto, todavia, a propósito dos pacientes é notório: quem pode pagar pela mercadoria saúde procura naturalmente atendimento médico no âmbito privado. Se eventualmente a pessoa rica é levada de ambulância ao hospital público (isto é comum em acidentes de trânsito, por exemplo), logo exige ser retirada dali. No imaginário do rico, ele teme estar em um hospital onde não receberia tratamento adequado, ou simplesmente não deseja estar num local feito para assistir aos “diferentes”, aliás, um lugar repleto destas pessoas estranhas a seu círculo social, pois hospitais públicos nunca estão vazios. Neles o rico sente-se praticamente estrangeiro, não os tolera.

Em todas essas manifestações, seja de ódio ou de apenas certo grau de intolerância, o não reconhecimento no outro daquilo que o sujeito tem ou pensa ser, apesar de não estarmos falando de diferenças na essência humana, torna insustentável ou no mínimo dificulta a convivência harmoniosa entre as pessoas. No caso das torcidas, violentas brigas. No caso dos cordões de isolamento carnavalescos, segregações preconceituosas. No caso da assistência à saúde, disparidades.
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*O trabalho acima foi apresentado originalmente na Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica, em articulação ao tema institucional de 2018: o narcisismo das pequenas diferenças. Na ocasião, finalizei a apresentação tomando emprestada uma canção dos Engenheiros do Hawaii chamada "Vícios de Linguagem" (letra: Humberto Gessinger / álbum: Simples de Coração - 1994), cujos áudio e versos estão disponíveis a seguir.


Tudo se resume a uma briga de torcidas 
E a gente ali no meio, no meio das bandeiras 
O jogo não importa, ninguém tá assistindo 
E a gente ali no meio, no meio da cegueira 
Tudo se reduz a um campo de batalha 
E a gente ali no meio 

Tudo se resume a disputa entre partidos 
Lama na imprensa, sangue nas bandeiras 
A verdade passa ao largo, como se não existisse 
E a gente ali no meio, como se não existisse 
Tudo se reduz, a uma cruz e uma espada 
Tchê, de que lado tu estás? 
Ninguém pode agradar os dois lados 
Hey, it's time to make a choice 
We all want to hear your voice (it's true) 
Faça a sua aposta, tome a sua decisão 

Tudo se produz na mesma linha de montagem 
Apogeu e decadência na mais nobre linhagem 
Votos de silêncio... vícios de linguagem 
Nada traduz 

Hey, don't you know that you are 
In the middle of a war (yes, you are) 
Tchê, de que lado tu estás? 
Ninguém pode ficar no meio do tiroteio 
Now it's time to say whose side you're on 
Tudo se resume, se presume, se reduz 
E o principal fica fora do resumo 
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Imagens da postagem, na ordem em que aparecem:

1. "Narcissism" Painting by Madelin Adena Smith. Disponível em: https://www.saatchiart.com/art/Painting-Narcissism/979826/3754001/view [acesso em 15 set 2018].

2. Imagem disponível em: https://www.simnoticias.com.br/stjd-suspende-organizadas-do-corinthians-e-interdita-parte-da-arena-por-confusao-no-maracana/ [acesso em 05 set 2018].

3. Imagem disponível em: http://palpit.blogspot.com/2010/03/folia-palida-do-cordao-de-isolamento.html [acesso em 05 set 2018].

4. "The Emergency Room" by Jose Perez. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/perez/emergency.html [acesso em 15 set 2018].

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