Pode haver amargura em meio à doçura do diabetes?

Em algumas situações pode ser um tanto angustiante ser médico. Não é por não saber o que o protocolo indica prescrever, mas porque, apesar de segui-lo conforme preconizado, simplesmente não há uma resposta terapêutica no doente. Ao contrário, ele parece piorar.

Serei mais específico para ilustrar o que estou dizendo e contarei brevemente uma história que poucos dias atrás gerou-me tal angústia, o caso do sr. Valter. Este, claro, é um nome próprio inventado, com o intuito de respeitar o sigilo médico ao qual tem direito o paciente real, mas asseguro-lhe, caro leitor, que os fatos não são meros devaneios de minha cabeça.  


Valter é um homem que, não há muito tempo, ingressou na chamada terceira idade. Fora diagnosticado com diabetes antes disso, todavia não se pode dizer que “sofre” de diabetes, pois não se queixa de qualquer coisa sobre essa alteração metabólica glicêmica que um dia disseram-lhe ter. Na verdade, Valter não se queixa de quase nada, apesar de indubitavelmente sofrer de muitas coisas.

A propósito do diabetes, vale registrar, antes de prosseguirmos no caso particular de Valter, que se trata de uma condição na qual acontece uma dificuldade de metabolizar os carboidratos ingeridos na dieta. Em consequência, elevam-se perigosamente os níveis de glicose circulante nos vasos sanguíneos. Os perigos do excesso de glicose são reais em função de seus potencias danos sobre rins, nervos, retina e sistema cardiovascular, por exemplo.

O diabetes decorre de uma incapacidade, total ou parcial, instalada no pâncreas do doente, no tocante à função do referido órgão em secretar insulina, e/ou é consequência de uma resistência periférica, também adquirida, dos tecidos corporais contra a ação normal que se esperaria da insulina. Muitas vezes ambos os problemas ocorrem concomitantemente.

Os motivos das alterações pancreáticas e da resistência insulínica são diversos e interagem entre si: anormalidades geneticamente adquiridas, estilo de vida sedentário, alimentação repleta de carboidratos, obesidade, entre tantos outros fatores, especulativos ou não. Portanto, não seria inteligente afirmar que existe uma relação simplista de causa e efeito para explicar a origem do diabetes.

O que facilmente se comprova na clínica é a influência notória do psiquismo, tanto na gênese quanto na manutenção do diabetes. Todavia, lamentavelmente tal influência é negligenciada, não apenas pelos pacientes, mas pelos próprios profissionais de saúde que os atendem.


Voltando a contar um pouco da história do sr. Valter, o comprometimento anímico (psíquico), embora à primeira vista estivesse quase imperceptível, pôde ser parcialmente descortinado quando a devida atenção lhe foi considerada. Vejamos o que se passou.

Valter dizia fazer alimentação apropriada para o tratamento do diabetes, estava pouca coisa acima do peso considerado ideal e tomava “direitinho” as medicações prescritas. Recentemente, com base em resultados de seus exames laboratoriais, pactuamos que, infelizmente, seria o momento de iniciar insulina suplementar, um trauma para muitos diabéticos por causa das agulhadas diárias, mas não para Valter, que começou a utiliza-la sem queixas, “seguindo o protocolo”, como de praxe vinha fazendo seu tratamento.

Para minha estranha e desagradável surpresa, contudo, seus índices sanguíneos de hemoglobina glicada (parâmetro laboratorial ideal para verificar a evolução do diabetes ao longo do tempo) pioraram após o início do tratamento insulínico. Além disso, ele começou a apresentar sinais laboratoriais de nefropatia diabética (a doença renal provocada pelo diabetes). Diante do aparente paradoxo, uma hipótese inicial seria que o próprio Valter estivesse sabotando algo na terapêutica proposta (e omitindo essa sabotagem de nossas conversas). Porém, eu o conhecia há um bom tempo, o suficiente para compreender que má adesão ao tratamento não era seu problema.

Comecei então a lembrar das oportunidades em que tentei ouvir um pouco sobre a história de vida daquele homem. Digo que tentei porque, ao disponibilizar minha escuta, sempre me deparava com um discurso, além de relutante, empobrecido de emoções, com nítida dificuldade para expressar sentimentos. Isto por certo não significava que os sentimentos de Valter inexistiam, mas que provavelmente eram escoados por outras vias, diferentes da palavra.

Essa característica de Valter, encontrada em muita gente, é chamada na psicossomática de alexitimia [do grego: a (sem) + lexis (palavra) + thimus (ânimo ou afetividade)]. O termo foi criado por Peter Sifneos, na década de 1970, para descrever as deficiências afetivas e cognitivas observadas em alguns indivíduos quanto ao modo de experimentar e expressar emoções. Apesar de algumas controvérsias, o conceito de alexitimia tem sua utilidade quando entendido como um fator de risco a aumentar a susceptibilidade ao adoecimento orgânico. Dito de outra maneira, o perfil alexitímico pode facilitar a eclosão de doenças somáticas, embora obviamente não seja causa necessária nem suficiente para tal.


Valter falou-me raras vezes (e logo procurava mudar o assunto) sobre o relacionamento ruim que ele mantinha com a esposa. Apesar das insatisfações, ambos insistiam em manter as aparências e continuavam juntos, casados, perante a sociedade. Na realidade íntima, no entanto, o que havia era uma convivência medíocre, carente de carinho e de amor. O que não lhes faltava era cumplicidade para não encarar a “vergonha da separação” e, possivelmente, para manter pequenos benefícios secundários de uma vida a dois, especialmente considerando a faixa etária em questão, na qual a solidão pode ser duríssima.

Até hoje Valter nunca conseguiu me dizer claramente, com suas próprias palavras, o quanto de amargura a situação do casamento malfadado lhe causa. Entretanto, eu vinha percebendo um amargo praticamente silencioso, velado, durante suas consultas. Tornou-se a mim evidente depois da enxurrada de glicose que os exames acusaram estar em circulação no corpo dele, apesar dos medicamentos corretamente utilizados. Por ora, a doçura potencialmente fatal do diabetes talvez seja a única alternativa que Valter consiga elaborar para adoçar os dissabores em sua vida.


Comentários

  1. Bibliografia consultada:
    - Silva AFR, Caldeira G. Alexitimia e pensamento operatório: a questão do afeto na psicossomática. In: Mello Filho J, Burd M (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 158-166.
    - Volich RM. Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. 8a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016.
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    Links das imagens que acompanham o texto:
    - https://pt.dreamstime.com/imagem-editorial-cena-emotiva-na-arte-desloca%C3%A7%C3%A3o-da-rua-do-cora%C3%A7%C3%A3o-que-descreve-perda-e-amargura-denver-do-centro-image62296770
    - http://www.lalungavitaterapie.it/per-una-cultura-della-salute/cose-utili-da-conoscere/prendersi-cura-del-cuore/
    - https://www.saatchiart.com/art/Painting-Bitterness/699198/2662997/view
    [acesso livre para download em 06 jul 2018]

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