A mulher que tentava engravidar

Uma colega médica pediu opinião sobre um caso de paciente mulher, na ocasião com 32 anos de idade, que fora ao consultório queixando-se de que “tentava engravidar há 10 anos”. Casada há quase duas décadas, ainda sem filhos, a mulher buscava novamente ajuda médica para aquele que considerava seu grande problema. Outrora já fizera isso, inclusive submetendo-se a tratamentos indutores da ovulação, sem sucesso. Questionava então a colega na consultoria: qual seria o melhor tratamento para essa mulher que tenta engravidar?

O marido da paciente apresentava espermograma normal, então a médica deduziu, talvez precipitadamente, que não seria ele o responsável pelo insucesso da tão sonhada gravidez. Quanto à
 mulher cujo anseio era estar gestante, realizou previamente alguns exames de imagem (ultrassom e histerossalpingografia), a fim de investigar se possuía eventual anormalidade anatômica que a impedisse de engravidar. Seus ovários e úteros mostraram-se normais, exceto por uma única alteração, a saber, a oclusão da tuba uterina esquerda. Isto muito provavelmente vinha dificultando o contato entre os óvulos produzidos pelo ovário esquerdo e os espermatozoides do marido que conseguiam adentrar o útero, contudo não basta para explicar a infertilidade, pois a permeabilidade da tuba contralateral, à direita, está livre para o tão almejado encontro dos gametas.

Por certo é pertinente a avaliação deste caso por um cirurgião ginecológico com experiência em tais situações, pois a obstrução tubária esquerda, encontrada na histerossalpingografia, talvez seja abordável cirurgicamente e isto aumente as chances de o casal alcançar seus propósitos. Salientando que a oclusão de uma das tubas uterinas demonstra uma resistência, mas não explica totalmente a dificuldade de engravidar, é necessário se aprofundar nessa história. Compreender fatores não orgânicos, habitualmente encontrados nas entrelinhas da narrativa, será fundamental para o adequado seguimento de casos assim.


Comecemos pela importância de não colocar à parte o homem do casal simplesmente por ele ter espermograma normal, pois seu desejo de ser pai (ou não) tem implicações no desejo da parceira. Da mesma forma, é importante compreender detalhes da história dessa mulher. Sabemos, afinal, pela experiência analítica, que nem sempre o que se verbaliza como querer é de fato aquilo que se deseja. Às vezes encontramos incongruências entre querer e desejo nos próprio dizeres da pessoa, como demonstro a seguir.

A mulher em questão diz estar “tentando engravidar há 10 anos”. Começando por uma escuta literal do que foi dito, fica claro que se trata de alguém que está tentando. Quem tenta, faz menção de, esforça-se, contudo não chega a concretizar o ato. Portanto, é preciso uma mudança de rumos, que começaria por alterações no discurso, a partir de pensamentos novos, como investigar que ideias ela própria, como mulher que vivencia essa infertilidade, teria sobre a gênese de sua dificuldade. Escutar os modelos explanatórios das pessoas referentes a seus problemas de saúde é condição para fomentar um espaço de narrativas livres que, por sua vez, permitem expressões mais ativas de cada sujeito diante da situação vivenciada. 

Portanto, a resposta para a pergunta “Qual seria o melhor tratamento para a paciente que tenta engravidar?” pode não ser aquilo que se espera, tendo em vista que, no tocante a tentativas, ela já está obtendo bastante sucesso. É interessante mudar o foco das perguntas, por exemplo: qual a sua motivação para tornar-se mãe? Esse querer é acolhido por seu marido? 


Esse olhar sistêmico e psicanalítico muitas vezes revela que a questão da infertilidade se trata de um problema enraizado nas profundezas da vida psíquica dos indivíduos ou no relacionamento do casal, mais especificamente em demandas e conflitos inconscientes entre o par, ainda que a influência de cada um seja diferente no processo. Se uma mulher não concebe um filho, embora afirme querê-lo, isto pode revelar a presença de uma resistência inconsciente à gravidez. No mesmo sentido, a esterilidade masculina pode revelar o medo da responsabilidade e do compromisso que a vinda de um filho acarretaria.


Tudo o que foi dito acima não invalida a abordagem da medicina convencional, apenas agrega valor a ela. Continua sendo importante analisar dosagens séricas dos hormônios sexuais e características ovulatórias passíveis de se observar através de exames complementares. Além disso, ao longo do percurso, em casos selecionados, pode-se considerar a possibilidade de técnicas de reprodução assistida, como a inseminação artificial. Isto, claro, demandaria encaminhamento do casal para ambulatório especializado em infertilidade e traria, como diz o próprio nome, um pouco de artificialidade ao processo. Ao enveredar-se por tais caminhos, deve-se ter bastante cautela para que o acaso não seja responsabilizado pelo infortúnio da infertilidade, algo que perpetuaria um tipo de alienação psíquica a respeito dos sofrimentos e dificuldades da vida.

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  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Eksterman A. Medicina Psicossomática no Brasil. In: Mello Filho J, Burd M et al (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 39-45.
    2. Freud S. Fundamentos da clínica psicanalítica (tradução: Claudia Dornbusch) – coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud. São Paulo: Autêntica; 2017.
    3. Volich RM. Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. 8a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016.
    4. Helman CG. Cultura, saúde e doença. 5a ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
    5. Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. 17a ed. São Paulo: Cultrix; 2012.
    ---o---
    As imagens utilizadas na postagem foram obtidas livremente nos seguintes endereços eletrônicos:
    https://twitter.com/ivfdivas
    http://www.thehealthsite.com/pregnancy/infertility/pcos-endometriosis-and-other-health-problems-that-can-cause-infertility-in-women-b1117/
    http://babysleepconsultant.co.nz/my-baby-making-journey/infertility/
    [acesso em 14 maio 2018]

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