Obesidade e alopatia: retrato de uma utopia

Muitas vezes a alopatia é cansativa. Ela cansa quando insiste em iludir as pessoas com promessas esdrúxulas para solucionar determinadas doenças, insolúveis por tal método. Em consequência, gera um trabalho hercúleo no consultório de quem se propõe alertar aqueles que embarcam na referida utopia; trata-se de algo penoso porque numa sociedade doente costuma-se aceitar prontamente os caminhos que se propõem cura-la facilmente de suas mazelas. Afinal, abrir mão desses atalhos implicaria encarar outras estradas, não livres de dores e sofrimento, que precisariam ser (re)construídas.

Antes de prosseguirmos, convém esclarecer aos que não estão familiarizados com o termo, que alopatia significa um método de tratamento que emprega medicamentos, os quais, atuando no organismo vivo, objetivam provocar efeitos contrários aos da doença. Isto serve bem, e por tempo limitado, a um conjunto restrito de patologias, por exemplo, certas infecções. Para a maioria das doenças, no entanto, a alopatia não contribui para a cura; ao contrário, ela mantém o doente na posição em que se encontra quando pretende camuflar seus sintomas.


Considerada por muitos uma epidemia em alguns países ocidentais, como os Estados Unidos, a obesidade talvez seja um dos melhores protótipos para compreendermos a utopia acerca da alopatia, pois a patogenia da condição do acúmulo de peso envolve diversos fatores, entre os quais se destacam balanços energéticos, padrões de atividade física e consumo de alimentos, genética, alterações endócrino-metabólicas e psiquismo. Sobre estes múltiplos atores, medicamentos apresentados como emagrecedores têm pouco ou nenhum valor, de modo que prescrevê-los costuma alimentar o engano de que haveria uma maneira simplista para perder peso.

Não raro, tanto profissionais de saúde quanto pacientes negligenciam a importância, na gênese da obesidade, do fator psiquismo, embora seu papel seja fundamental no processo de acúmulo de gordura no corpo. As ideias do senso comum, relativas ao tratamento do peso excessivo, habitualmente concentram-se nos esforços que devem ser empreendidos pelos gordinhos para alimentarem-se de maneira saudável, evitando toda espécie de junk food, e exercitarem-se com regularidade. Estas atitudes por certo são bastante benéficas, mas como encontrar motivação para executa-las, em meio a uma cultura que prioriza o sedentarismo e a comida industrializada, senão através do trabalho do psiquismo?

Façamos aqui um breve parêntesis a fim de compreendermos, em linhas gerais, o paradigma da integralidade, defendido neste blog, aplicado ao processo saúde-doença. Voltaremos a falar especificamente da obesidade mais à frente.

Os caminhos para a cura de qualquer doença pressupõem que a pessoa doente busque algum reestabelecimento da integração entre corpo e psique, trazendo assim significados à sua condição de sofrimento. Desta concepção decorre a abordagem centrada na pessoa, um método que, diferente da alopatia, tira o foco da doença, embora não negligencie esta última. Entende-se que é preciso esclarecer de que sofre a pessoa, não apenas no corpo, mas também na alma (aqui deve ficar claro que não falo da alma num sentido religioso, mas da psique, como usado por Freud). De outro modo, se a linguagem implícita no sintoma não for decodificada através de uma escuta atenciosa, o sintoma estará condenado à falta de significado e provavelmente não cessará, manifestando-se em outro local do corpo ou em comportamentos doentios diversos dos existentes até então.

Praticar medicina centrada na pessoa é um esforço para reconciliar a medicina clínica com a existencial. Demanda o entendimento da pessoa como um todo. Demanda conhecer a experiência que cada pessoa tem com sua própria doença ou sensação de adoecimento. A partir disso, pactuam-se planos de manejo dos problemas entre o profissional de saúde e a pessoa atendida.

Não é difícil perceber que o método clínico centrado na pessoa tem suas raízes na medicina psicossomática, a qual se estrutura em três pilares centrais:

1. A etiopatogenia somática está comprometida com a função psicológica (ressaltando que comprometimento difere de uma relação reducionista de causa-efeito);

2. A ação assistencial em saúde é um processo complexo;

3. A natureza do ato médico é humanista, portanto a terapêutica deve estruturar-se em função da pessoa.

Então, estamos lidando praticamente com as mesmas coisas quando pensamos em integralidade, medicina da pessoa e psicossomática.

Após essa breve explanação, voltemos nossa atenção à questão do excesso de peso, salientando que este também é um sintoma. Vejamos, pois, como os problemas com o acúmulo de gordura corporal podem ser analisados sob o olhar da psicossomática, uma via alternativa ao paradigma alopático.

As modernas correntes da psicossomática estão atreladas à psicanálise e impelem-nos a perceber qualquer distúrbio através da observação integral do paciente, melhor dizendo, insere-se a doença na biografia do sujeito. Na obesidade, a quantidade de tecido adiposo conta por vezes histórias dramáticas, repletas de frustrações. Para compreender tais histórias, convém lembrar que o instinto humano é a pulsão, bastante diferente do instinto animal. Assim, nos seres humanos a fome biológica difere do apetite. Como assinalou Alexandre Kahtalian, para o ser humano o objeto de gratificação do instinto é variável, então nem sempre se ingere a comida como alimento. Daí a importância de se compreender o afeto nos pacientes com problema de sobrepeso.

O mesmo autor citado acima afirma que a imagem corporal nesses pacientes geralmente é distorcida da realidade. Trata-se de um contexto em que há imagens corporais introjetadas por conflitos entre o que se é, o que se deseja ser e o que se pode ser. Tais imagens podem ter origem em experiências muito arcaicas de aceitação e rejeição, ainda no seio materno (ou na falta dele), e também na vivência familiar, a qual pode gerar múltiplos comportamentos e fantasias para os significantes comer e aumentar o peso. Ainda, a gordura corpórea pode indicar uma espécie de isolamento e proteção em relação às ansiedades vividas. O excesso de peso pode ter a função de localizar (somatizar) angústias e dificuldades.

Desse modo, o papel fundamental esperado para uma boa relação profissional-paciente em casos assim é “apenas” manter um bom vínculo. A partir deste, situar metas terapêuticas realistas. Além disso, salienta-se que o profissional de saúde, para não se frustrar nem desistir de acolher seus pacientes obesos, deve ter ciência de que tais pessoas, por um mecanismo algo inconsciente, possuem a forte tendência de sabotar seu próprio tratamento em algum momento do percurso.

O caso da obesidade, embora bastante ilustrativo da utopia alopática que por vezes ofusca os sujeitos, certamente não é o único. Constatar e expor esse problema não quer dizer que a alopatia não sirva para nada, afinal, ela tem seu lugar quando prescrita de modo apropriado. No entanto, diante do processo saúde-doença, convém nos libertarmos das amarras que limitam nosso entendimento e reduzem as possibilidades terapêuticas. O corpo físico, enquanto vivo, não está sozinho, não opera de modo saudável nem fica doente sem que haja um substrato psíquico para uma ou outra condição.

Não se trata a psique com alopatia. Então, trata-se com o quê? Bastante pertinentes são as palavras do psicanalista Jorge Sesarino para pensarmos possíveis respostas a essa questão: o corpo é um organismo afetado pela linguagem. O sujeito não vive exclusivamente num organismo, é preciso que a linguagem faça o corpo. O corpo é feito e efeito de afeto, é corpo afetado; os afetos são os efeitos da linguagem no corpo.

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  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Volich RM. Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. 8a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016.
    2. Stewart M et al. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o método clínico. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
    3. McWhinney IR, Freeman T. Princípios da Medicina de Família e Comunidade. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010.
    4. Freud S. Fundamentos da clínica psicanalítica (tradução: Claudia Dornbusch) – coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud. São Paulo: Autêntica; 2017.
    5. Eksterman A. Medicina Psicossomática no Brasil. In: Mello Filho J, Burd M et al (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 39-45.
    6. Kahtalian A. Obesidade: um desafio. In: Mello Filho J, Burd M et al (organizadores). Psicossomática hoje. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 368-375.
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    Imagens da postagem obtidas livremente em:
    https://www.wsj.com/articles/obesity-the-new-hunger-1462919816
    https://www.pinterest.co.uk/pin/416583034268229892/
    http://conscienhealth.org/2013/07/understanding-obesity-and-art/
    [acesso em 26 mar 2018]

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