Suicídio na medicina

Debatíamos recentemente num grupo de médicos sobre o triste fim que uma colega potiguar dera à própria vida, ao cometer suicídio. Junto da notícia do fatal incidente envolvendo aquela jovem médica, circulou a informação de que “ela lutava contra a depressão há algum tempo”.

Um acontecimento realmente triste. Entretanto, falei aos colegas a respeito de certa tendência em se colocar alguém na posição de mera vítima de fatos externos, como se, em circunstâncias assim, nada fosse responsabilidade do sujeito e de suas escolhas. Naquela oportunidade diversos apontamentos sucederam-se à minha colocação. Tornou-se um debate rico, motivo pelo qual decidi registra-lo neste blog. A fim de preservar a identidade dos debatedores, utilizo apenas as iniciais de nossos nomes:

G.K. - Que tipo de escolha pode garantir livrar uma pessoa de ser acometida por depressão maior e suas possíveis consequências? Pareceu-me ousada, para um médico, a afirmação do B.T.. Se entrarmos na seara espiritual, a qual me encanta em seus mistérios e compreensões, posso até considerar plausível a colocação do querido colega. Mas se me colocar como cientista apenas da medicina material, da qual nos foi repassado algum conhecimento, acho sim muito "ousada" a colocação dele.

S.C. - Também gostaria de saber a que escolhas ele se refere... Depressão vai muito além de escolhas...

B.T. - Nenhuma escolha é garantia de nada. Mas há quem escolha se analisar ao ver-se em depressão. Outros escolhem apenas tomar antidepressivos. Há quem escolha deixar-se levar por um sistema louco de trabalho com absurdo número de horas por semana, e sequer se detém para pensar que algo está errado em seu ritmo de vida. Outros escolhem deixar o sistema de lado e sair pelo mundo conhecendo gente e lugares novos (mesmo com pouco dinheiro), mas é preciso de fato ter muita coragem para isso. Depressão também é uma escolha, embora na maioria das vezes inconsciente. Caro amigo G.K., vou entender a ousadia como um elogio. Sejamos médicos ousados, caso contrário o sistema pode nos devorar, como devorou a colega do Rio Grande do Norte.

S.C. - As atitudes na vida são escolhas, depressão não, B.T.. E acredite, faço terapia há sete anos, adoro, é excelente para minha vida e acho que todos deveriam fazer. Mas não vou discutir sobre isso. Respeito sua opinião, embora não concorde com essa afirmação.

B.T. - “Demissão subjetiva foi como Lacan designou a posição do sujeito que se deprime: aquele que sofre da única culpa justificável, em psicanálise, a culpa por ter cedido em seu desejo. (...) O desejo, em psicanálise, é por definição inconsciente - e seu objeto, perdido. A posição do sujeito ante o objeto (perdido) de seu desejo determina seu lugar no fantasma, de onde ele ensaia sua versão inconsciente a respeito do que o Outro quer dele. (...)”

“A culpa daquele que se deprime, que se vê abatido e sem razão de viver porque intui que traiu a si mesmo, traiu a via que o representava como sujeito de um desejo marcado pelo significante. E se ele traiu, foi sempre na tentativa de responder a um ideal de Bem, que coloca o bem do outro à frente do bem do sujeito: ‘se é preciso fazer as coisas pelo bem, na prática deve-se deveras sempre perguntar pelo bem de quem’.”

Aspas acima para trechos do livro “O tempo e o cão”, de Maria Rita Kehl (páginas 58 e 59).

S.C. - Já li algumas coisas dela... Mesmo assim ainda acho que não é bem por aí, tendo em vista as disfunções de neurotransmissores dos pacientes em depressão. Fosse da maneira como ela escreve, não precisaríamos de medicação nunca para os pacientes que fazem análise... Enfim, respeito, mas penso diferente dela. E falo como paciente também, não como médica. E paciente que faz terapia.

A.G. - Quem disse que Lacan está certo? Por que não pode existir um neurotransmissor que não conhecemos responsável por isso? Ou essa comida nossa industrializada, cheia de agrotóxico, alterando o equilíbrio de neurotransmissores?

B.T. - A questão é exatamente o paradigma pelo qual se olha os neurotransmissores, a meu ver dois paradigmas possíveis, que se colocam como cerne deste debate. A psiquiatria convencional (ou "biológica") entende que as alterações nos neurotransmissores precederiam o estado depressivo e que tais alterações ocorreriam por acaso (este é o paradigma médico das doenças idiopáticas, das causas desconhecidas e das mutações aleatórias). Por outro lado, a psiquiatria que leva em conta os conhecimentos psicanalíticos compreende que há um sujeito que se deprime (por algum motivo que pode ser descoberto em sua biografia) e ao mesmo tempo ocorrem as alterações nos neurotransmissores (este é o paradigma médico que admite todas as doenças como psicossomáticas e assume a existência de comprometimento psíquico permanente em tudo o que ocorre no corpo, inclusas as alterações neuroquímicas).


Nesse ponto terminou o debate do grupo naquele dia, entretanto cabem aqui alguns comentários adicionais. Penso que a “medicina material”, usando o termo de meu colega G.K., é aquela na qual se enquadra a psiquiatria biológica, que ao tentar esvaziar-se dos atributos do sujeito e ignorar o inconsciente, vê-se atordoada, atônita ou sem explicação diante de um ato suicida. Comumente, sob tal ponto de vista que ignora o imaterial, afirma-se que as pessoas deprimidas “lutam contra a depressão”, como se a doença fosse algo estranho ao sujeito, como se não fosse produzida pelo próprio doente. Então, seria preciso “combatê-la”, a qualquer custo. Entope-se o sujeito de antidepressivos e isto, paradoxalmente, aumenta a chance de suicídio, notadamente na faixa etária dos jovens (conforme citado outrora neste blog, fazendo referência ao livro de Peter GØtzche).

Analisando o suicídio por outra perspectiva, a do inconsciente, sabe-se que tal ato é consequência de uma significativa perda da capacidade pessoal em lidar com os afetos dolorosos, levando a uma desagregação do Eu. Essa capacidade de elaboração dos afetos é extremamente variável entre as pessoas e também no mesmo indivíduo ao longo da vida.

Cada um que atenta contra a própria vida, cometendo um suicídio, o faz por razões singulares. Uma psicanalista escreveu num texto sobre a temática: vingança, raiva, autopunição, culpa, desesperança, vergonha, humilhação, inferioridade são estados afetivos comumente narrados pelas pessoas com ideias suicidas, mas sob estes subjazem outros que no momento não estão acessíveis à percepção da pessoa. Esses afetos vão se tornando intoleráveis, as ideias suicidas vão aparecendo, preparações para o ato começam a ser construídas e em determinado momento o controle egóico entra em falência e o ato ocorre.

Mais a frente, no mesmo texto mencionado, ressalta-se a importância de se levar a sério as ideias de alguém que pensa em se matar, pois quanto mais cedo se identifica tais ideias, maior é a possibilidade de que a pessoa receba ajuda terapêutica para reconciliar-se com aquela parte de si que deseja sobreviver. O objetivo da terapia, portanto, é auxiliar a pessoa a encontrar significados que tornem suportáveis a dor de viver no mundo que quer deixar. Assim, talvez, suas convicções suicidas se modifiquem.


Na contramão do entendimento que a psique exige, ouvi a seguinte fala de um colega psiquiatra, ao ser questionado por outro médico sobre como manejar o tratamento com drogas psiquiátricas: “Se não há resposta com a dose inicial do antidepressivo, aumentamos a dose. Se não há resposta com a dose máxima, adicionamos outro psicofármaco. E assim por diante.” Esta conduta estaria baseada em que tipo de “ciência”?

Sem negligenciar a possibilidade dos danos neuronais promovidos pelos agrotóxicos, tampouco subestimando as descobertas das neurociências acerca dos neurotransmissores e da epigenética, abstendo-me de entrar no mérito da questão sobre Lacan (estaria ele certo ou errado?) e entendendo que as drogas antidepressivas podem até ser úteis em determinadas situações, estou convencido de que não é mais possível exercer uma medicina apenas do corpo.

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  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Kehl MR. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. 2a ed. São Paulo: Boitempo; 2015.
    2. GØtzche PC. Medicamentos mortais e crime organizado: como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica. Porto Alegre: Bookman; 2016.
    3. Gonçalves SM. Suicídio e psicanálise. Blog de Psicanálise – Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 2014. Disponível em: https://psicanaliseblog.com.br/2014/08/21/suicidio-e-psicanalise/ [acesso em 15 fev 2018].
    4. Guimarães Filho PD. Investigações científicas e questionamentos à “psiquiatria biológica”: a psicanálise tem a ver com isto? Blog de Psicanálise – Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 2015. Disponível em: https://psicanaliseblog.com.br/2015/06/29/investigacoes-cientificas-e-questionamentos-a-psiquiatria-biologica-a-psicanalise-tem-a-ver-com-isto/ [acesso em 15 fev 2018].
    ---O---
    Imagens da postagem obtidas livremente em:
    https://orig00.deviantart.net/1b36/f/2010/124/4/e/the_suicidal_optimist_by_schizophrenicsmile.png
    https://img00.deviantart.net/4c38/i/2005/269/b/e/suicide_apocalypse_by_nadalin.jpg
    http://wondergressive.com/wp-content/uploads/2012/10/tumblr_map209kS2z1rerguxo1_500.jpg
    [acesso em 15 fev 2018]

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