Quando amamentar pode ser ruim

Diversas instituições atentas à saúde infantil recomendam que as crianças sejam amamentadas no seio materno até os 2 anos de idade, incluindo o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), sociedades de pediatria e ministérios da saúde. Os benefícios da oferta de leite materno no peito são inequívocos do ponto de vista nutricional, imunológico e afetivo. No entanto, há questões de afeto na interação mãe-bebê que podem não se configurar tão boas assim.


É justamente sobre um desses casos de afeto desvirtuado na amamentação que o presente texto pretende falar. Antes de prosseguir, contudo, como se trata de um tema que pode suscitar polêmicas ou mal entendidos, devo ressaltar novamente a importância do ato de amamentar no seio, já frisada no primeiro parágrafo, e deixar claro que nós, homens, jamais teremos experiência em amamentação de bebês como pode ter uma mãe que amamenta ou amamentou. Registradas essas ponderações, analisemos o caso real a seguir.

A mãe chegou ao consultório queixando-se que o filho, naquela oportunidade com 1 ano e 4 meses de vida, aceitava pouco os alimentos por estar “muito apegado ao seio”. O problema teria começado desde que se iniciou a alimentação complementar da criança, por volta dos 6 meses de idade. Mesmo durante o breve período da consulta em questão, a médica assistente observou que o menino solicitava a mama. E que a mãe não pestanejava em oferecê-la. Quando a mulher precisou interromper a mamada, ao final da consulta, o infante demonstrou irritação.

A criança em pauta nasceu a termo, após uma gestação sem mazelas orgânicas, e vinha mantendo curvas normais de crescimento e ganho ponderal; estava clinicamente bem, exceto pela presença de uma hérnia umbilical significativa, mas depressível e indolor. A mãe, cuja motivação principal daquela consulta era entender porque o menino “não aceitava bem os alimentos”, parecia bastante incomodada por isso; tratava-se de uma mulher de 30 e poucos anos, que não trabalhava fora de casa na ocasião e já tinha outros 3 filhos.

A médica, com dificuldade para manejar a situação, solicitou-me uma consultoria. Disse que havia encaminhado a família ao nutricionista e pedia alguma outra sugestão diante do caso.

Respondi à colega que ela já havia acertado o diagnóstico quando apontou que o filho da paciente estava “muito apegado ao seio”. Este era o problema, um excessivo apego àquilo que já não deveria mais ser um objeto tão importante para a criança na idade em que se encontrava.

A avaliação de nutricionista poderia ajudar, no entanto não resolveria o problema, tendo em vista que a questão a ser trabalhada estava na relação mãe-filho, não propriamente nos alimentos físicos. A descrição do caso parecia demonstrar que não estava havendo uma adequada separação daquela criança em relação à mãe. Isto geralmente decorre de certa incapacidade da mãe em frustrar o filho, e falo aqui da boa frustração materna, aquela que é essencial para o saudável desenvolvimento psíquico de qualquer criança.

Uma questão que deve ser colocada frente a casos assim é a seguinte: estaria essa mãe disposta a frustrar a criança ou haveria um desejo (inconsciente) da própria mãe em mantê-la, a criança, como bebê?

Sugeri à colega que seria essencial investigar melhor os porquês daquela mãe estar com dificuldade em dizer “não” ao filho. Afinal, as mamas são propriedade da mulher, não da criança, então, se não fosse permitido que o filho as sugasse (interdição), ele não sugaria. Assim, gradativamente o infante precisaria se interessar por outros alimentos (ou passaria fome, algo pouco provável em ambiente no qual exista a oferta de alimentos).

Do contrário, se não ocorresse separação, o vínculo com a mãe poderia permanecer simbolicamente em um nível muito arcaico, quase como uma ligação placentária (a propósito, não me parece obra do acaso a presença da hérnia umbilical no ventre da criança mencionada). Manter esse tipo de ligação não é saudável nem para a mãe nem para o filho, quando em desacordo com a fase do ciclo de vida. Para que se estruture um psiquismo equilibrado no futuro sujeito adulto, há que se ensina-lo desde muito cedo a lidar com certas frustrações (e isto, claro, não implica que se descambe para o lado das frustrações excessivas).


Em situações análogas como a descrita no caso clínico apresentado, haverá certamente algum choro e sofrimento decorrentes da separação, mas já cientes de que necessária se faz tal separação, vale ressaltar que ela pode ocorrer de modo gradativo, inicialmente com a mãe escolhendo uma ou duas refeições do dia para continuar amamentando o filho no seio, reservando os demais horários para outros tipos de alimentos.

Nada melhor do que dizer exatamente para a criança o que vai acontecer: “Fulano, você está crescendo, agora não é mais um bebezinho, então não precisa tomar leite do peito da mãe o dia todo. Daqui por diante, a mãe vai oferecer o peito em tal e tal horário, nos demais momentos você vai se alimentar junto com seus irmãos da comida que temos em casa.” O alimento físico pode e deve mudar, entretanto não se deve deixar de alimentar afetivamente a criança. Afinal, como diria o psicanalista Jorge Sesarino, o corpo é feito e efeito de afeto, é corpo afetado; os afetos são os efeitos da linguagem no corpo.

Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Zimerman DE. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed; 1999.
    2. Dolto, F. Seminário de psicanálise em crianças. São Paulo: wmfmartinsfontes; 2013.
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    http://www.vidamaterna.com/por-que-amamentar/
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    [acesso em 13 nov. 2017]

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