Testosterona, Viagra... Onde está o homem impotente?

Quando um homem se sente impotente, de fato, ele se sente. A impotência sexual é um estado do psiquismo, muito antes de ocasionar qualquer alteração hormonal, a qual, afinal, nem sempre acontece. Claro, em alguns casos a referida condição psíquica pode cursar também com deficiência da testosterona, reconhecida por muitos como o hormônio masculino responsável pela potência sexual. Embora a deficiência de testosterona sérica não seja causa necessária nem suficiente para que um homem tenha dificuldade de ereção, essa associação entre o hormônio e a potência está algo impregnada no imaginário coletivo, levando diversas pessoas que sofrem de disfunção sexual a creditarem ao tratamento hormonal a solução para seus problemas. Todavia, não costuma ser a testosterona tratamento pra muita coisa.

A bula da testosterona é muito clara quanto à sua indicação apenas no tratamento de reposição hormonal em homens portadores de condições associadas com hipogonadismo primário e secundário, tanto congênito quanto adquirido. Não se menciona nenhuma outra situação clínica em que a prescrição caberia. Logo, não havendo no homem o diagnóstico da condição clínica chamada de hipogonadismo (deficiência da gônada masculina em produzir testosterona), não está indicada a prescrição hormonal.

Mesmo em casos nos quais se diagnostica hipogonadismo, é preciso levar em conta que a testosterona exógena aumenta o risco de câncer de próstata, informação também presente na própria bula do medicamento. A bula adverte, ainda, que pessoas com doença cardíaca pré-existente, quando submetidas ao tratamento androgênico, podem desenvolver complicações caracterizadas por edema, com ou sem insuficiência cardíaca. Então, questiono: vale a pena o risco de as pessoas injetarem em si esse hormônio, especialmente homens com mais de 50 anos?

Ampliando um pouco esta reflexão, convém salientar que os indivíduos com disfunção erétil apresentam um problema de etiologia habitualmente multifatorial, não raro independente de alterações orgânicas. Portanto, compreender o contexto subjacente à queixa é fundamental, permitindo que o homem fale, por exemplo, sobre o relacionamento com a parceira, sobre haver ou não desejo sexual por ela e/ou outras mulheres, enfim, informações bem mais importantes do que a dosagem de testosterona para início de conversa em uma consulta. Esclareço que, a fim de exemplificar, estou supondo um homem heterossexual e monogâmico, mas isto não quer dizer que em outras situações o raciocínio não seja aplicável.

Nos anos de 1990, com o advento do sildenafil (Viagra®) e demais medicamentos inibidores da fosfodiesterase-5, ocorreu uma mudança significativa no tratamento das chamadas disfunções sexuais, sob a ótica médica convencional. Houve mesmo um grande benefício em termos de manejo sintomático. Por outro lado, os referidos fármacos contribuíram para reduzir o homem a seu sintoma e seu problema a seu corpo.

Seja a testosterona, seja o Viagra ou afins, a retomada da função sexual apenas pela prescrição de medicamentos reproduz o mecanicismo do modelo biomédico de compreensão do processo saúde-doença. Tal modelo toma o fenômeno do adoecimento apenas como uma disfunção biológica, material e mecânica. Neste prisma, o modelo biomédico falha em abordar a dimensão da subjetividade do processo saúde-doença, negligenciando muitas causas que contribuem para o fenômeno, distanciando o médico da realidade do paciente e dificultando o acesso a questões relevantes para os problemas que lhe são apresentados.


Mesmo na disfunção erétil, condição na qual muitas vezes há componentes orgânicos relacionados à etiologia, buscar uma dissociação entre disfunções sexuais exclusivamente psicogênicas daquelas em que há fator físico envolvido é uma forma equivocada de aborda-las, pois os aspectos emocionais estão presentes em quaisquer situações. Se partirmos do paradigma eminentemente biomédico, realmente não há muito mais a oferecer além de uma prescrição. Porém, se levarmos em conta a integralidade, surgirão outras opções de tratamento.

Explorar a narrativa como recurso terapêutico, por exemplo, aparecerá como algo essencial. Nas diversas modalidades que existem para avaliar a subjetividade, a escuta atenta do interlocutor possibilita encontrar caminhos para a cura. O ato de escutar o paciente não apenas sobre sua queixa física, abrindo espaço para ele falar sobre a pessoa que é (ou almeja ser), sua vida e suas angústias, é um poderoso instrumento tanto diagnóstico quanto terapêutico. Trata-se de um recurso que funciona bem melhor que drogas ou exames repetidos, pois não agride o organismo e permite acessar o significado dos sintomas.

É verdade, as disfunções sexuais não correspondem necessariamente a doenças, mas sempre são sintomas. E sintomas, uma vez que são simbólicos, clamam por interpretação. Reconhecendo essa necessidade interpretativa, uma forma eficaz de abordar as disfunções sexuais deve incluir, da parte do profissional de saúde, uma postura psicanalítica.


Elisabeth Roudinesco afirma que o poder da ideologia medicamentosa é tamanho que, quando ele alega restituir ao homem os atributos de sua virilidade, chega a cheirar a loucura. Evitar a medicalização da existência, que na atualidade muitas vezes retira de cena o sujeito, é fundamental para se pensar um novo paradigma de atenção à saúde das pessoas, inclusas as que sofrem na esfera sexual.

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    ---o---
    Imagens da postagem obtidas livremente em:
    http://wallpoop.com/wp-content/uploads/2012/07/sad-.jpg
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    [acesso em 09 out 2017]

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