Ritalina, crianças zumbis e a morte da criatividade

Há quem não veja grandes problemas em medicar crianças com Ritalina® (metilfenidato), embora se trate de uma droga da família das anfetaminas, com mecanismo de ação cerebral similar ao da cocaína. Não é pequena a lista dessas pessoas que aprovam o uso da ritalina. Incluem-se muitos médicos, pedagogos e, principalmente, pais que se dizem dispostos a fazer “tudo pelo bem de seus filhos”, menos a entender aquilo que o comportamento perturbador reflete e a assumir seu quinhão de responsabilidade frente à situação.

Entre os médicos que prescrevem ritalina, há certo consenso em dizer que a droga estaria bem indicada para tratar o famigerado transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Este transtorno, entretanto, pode ser considerado uma doença fabricada e excessivamente diagnosticada. Não estou dizendo que o TDAH inexiste, pois é possível apresenta-lo como síndrome clínica na qual se observam determinados comportamentos, contudo seria um disparate científico categoriza-lo como doença neurológica, como querem a indústria de medicamentos e alguns colegas muito restritos ao paradigma biológico do processo saúde-doença, com a intenção de justificar as prescrições da ritalina.

Não há comprovação de que exista uma doença neurológica que altere somente comportamento e aprendizagem. Os critérios utilizados em questionários para diagnosticar a suposta doença denominada TDAH são normas sociais, não são critérios de doença. Disto decorre uma pergunta essencial: podemos transformar uma norma social em variável biológica e com isto afirmar a presença de uma doença neurológica?

Outro questionamento interessante parte da constatação que o diagnóstico de TDAH está ocorrendo em um percentual extraordinariamente maior de crianças nas últimas décadas. Houve um aumento praticamente exponencial, apontando para o excesso: sobrediagnóstico (overdiagnosis). O que explicaria tal aumento, supondo que o transtorno fosse mesmo uma doença neuropsiquiátrica com bases genéticas? Sob este prisma não se explica.

Aquilo que se rotula como transtorno é na verdade um problema de ordem familiar, social e psíquica. Portanto, falamos de um distúrbio que não será resolvido com a medicalização da infância, embora este processo já esteja em curso, para a infelicidade e alienação das próximas gerações.

O metilfenidato (princípio ativo da ritalina) tem mecanismo de ação similar ao de qualquer outro estimulante, aumentando a concentração de dopamina nas sinapses do sistema nervoso central. Por efeito de toxicidade nesse sistema, a criança submetida à referida droga adota de modo progressivo um comportamento conhecido por zombie like, ou seja, esvaziado de emoções, questionamentos e imaginação, como um zumbi. Tal comportamento pode representar um alívio para pais desesperados, pedagogos despreparados e médicos incompetentes. Assim tem-se indicado a ritalina de forma indiscriminada e o Brasil chegou ao posto de segundo país que mais a consome no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América. 



No sistema nervoso, além do efeito zombie like, a ritalina tem potencial para causar insônia, cefaleia, alucinações, psicose e tendências suicidas. No sistema cardiovascular ela pode causar arritmia, taquicardia, hipertensão e parada cardíaca. Recentemente também foi levantada a possibilidade de que o risco de morte súbita na infância, inexplicável por outros fatores, seja maior entre crianças que consomem drogas estimulantes (como o metilfenidato), segundo reportagem veiculada no Washington Post. Além disso, a droga interfere no sistema endócrino, na secreção dos hormônios de crescimento e dos sexuais.

Todas as publicações de 1980 a 2010 sobre o tratamento de TDAH foram analisadas recentemente. O primeiro dado interessante dessa análise foi que, entre os milhares de trabalhos que “provaram” a eficácia e segurança do metilfenidato, praticamente nenhum pôde ser considerado publicação científica de boa qualidade. A evidência de benefícios do medicamento é baixa na abordagem desse transtorno de comportamento, especialmente entre crianças menores de 6 anos de idade. Por outro lado, nos estudos que preencheram critérios de cientificidade o que se encontrou foi que a orientação de base familiar, voltada para o comportamento dos pais, evidenciou bons resultados, sendo então considerada primeira linha de tratamento.


A melhor alternativa para lidar com essas crianças e adolescentes, rotuladas por atenção deficiente e comportamento hiperativo, é possibilitar-lhes a expressão dos sentimentos, das emoções. Além da já mencionada abordagem familiar, os pequenos sujeitos podem se beneficiar de tudo que lhes permitam expressar-se valorizando o lúdico e o simbólico, por exemplo, a psicomotricidade relacional, plenamente adaptável ao contexto escolar, a psicanálise de crianças e as inúmeras formas de manifestação cultural, como teatro, dança, música, pintura, poesia, etc.

No entanto, a sociedade, de modo geral, parece bastante impaciente perante determinadas ações criativas das crianças, afinal, perguntar, simbolizar e criar podem expor nossas fraquezas individuais e mazelas sociais. Incomodados, muitos adultos não perdem a oportunidade de abafar os questionamentos dos pequenos pela via da substância química. A isto se soma o interesse da indústria farmacêutica, que age de diversas formas para alimentar seu mercado milionário, inclusive financiando entidades de familiares e profissionais ligados à “defesa das pessoas com TDAH”. Defendendo-as de quem mesmo?

Aqui cabe bem a seguinte transcrição do trecho de um texto publicado no Diário do Centro do Mundo: a vida contemporânea, que envolve pais e mães num turbilhão de exigências profissionais, sociais e financeiras, não deixa espaço para a livre manifestação das crianças. Elas viram um problema até que cresçam. É preciso colocá-las na escola logo no primeiro ano de vida, preencher seus horários com “atividades”, diminuir ao máximo o tempo ocioso, e compensar de alguma forma a lacuna provocada pela ausência de espaços sociais (incluindo familiares) e públicos. Já não há mais a rua para a criança conviver e exercer sua “criancice”. E ainda querem encontrar explicação para a hiperatividade e o déficit de atenção na genética...

Se alguém ganha com a prescrição de ritalina, definitivamente não é o paciente, especialmente quando se trata de uma criança. Devemos considerar que o cérebro e a psique estão em pleno processo de desenvolvimento durante a infância. Não é difícil deduzir que submetê-los aos efeitos nocivos de psicofármacos pode ter consequências mentais catastróficas. Que perfil de adulto está se moldando através dessa medicalização da existência? Talvez um perfil que se encaixa perfeitamente nos interesses escusos de um projeto tenebroso de alienação dos sujeitos.


Comentários

  1. EVIDÊNCIAS E REFERÊNCIAS:
    1. Agency for Healthcare Research and Quality. Attention deficit hyperactivity disorder effectiveness of treatment in at-risk preschoolers; long-term effectiveness in all ages; and variability in prevalence, diagnosis, and treatment. 2011. Disponível em: https://www.effectivehealthcare.ahrq.gov/index.cfm/search-for-guides-reviews-and-reports/?pageaction=displayproduct&productID=818 [acesso em 08 jul 2017].
    2. Amado R. Ritalina, a droga legal que ameaça o futuro [internet]. Diário do Centro do Mundo – DCM. 2013 [acesso em 21 jun 2017]. Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/ritalina-a-droga-legal-que-ameaca-o-futuro/.
    3. Insel T. Are children overmedicated? National Institute of Mental Health. 2014. Disponível em: https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2014/are-children-overmedicated.shtml [acesso em 07 jul 2017].
    4. John M. Attention deficit hyperactivity disorder in children and adolescents. Eisenberg Center for Clinical Decisions and Communications Science. 2012. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK99165/ [acesso em 08 jul 2017].
    5. Molina BSG et al. The MTA at 8 Years: Prospective Follow-Up of Children Treated for Combined Type ADHD in a Multisite Study. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2009 May; 48(5): 484–500. doi: 10.1097/CHI.0b013e31819c23d0. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3063150/ [acesso em 07 jul 2017].
    6. Moysés MAA. A droga da obediência [entrevista a Perozim L]. Carta Capital. 2011. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/a-droga-da-obediencia [acesso em 21 jun 2017].
    7. Moysés MAA. A ritalina e os riscos de um ‘genocídio do futuro’ [entrevista a Gardenal I]. Portal Unicamp. 2013. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro [acesso em 21 jun 2017].
    8. Ritalina: o monstro da infância [internet]. Portugal Mundial. 2013 [acesso em 21 jun 2017]. Disponível em: http://portugalmundial.com/2013/07/ritalina-o-monstro-da-infancia/#.
    9. Smith BL. ADHD among preschoolers: identifying and treating attention-deficit hyperactivity disorder in very young children requires a different approach. American Psychological Association. 2011. Disponível em: http://www.apa.org/monitor/2011/07-08/adhd.aspx [acesso em 07 jul 2017].
    10. Vedantam S. Study finds possible link between childhood deaths and stimulants for ADHD [internet]. The Washington Post. 2009. Disponível em: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2009/06/15/AR2009061502833.html [acesso em 07 jul 2017].
    ---o---
    Links para acesso livre às imagens utilizadas na postagem:
    http://labelsarefortins.deviantart.com/art/Zombie-Child-293257729
    http://vreckovka.deviantart.com/art/Zombie-Child-331132737
    http://www.ideiademarketing.com.br/category/criatividade-2/
    [acesso em 08 jul 2017]

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  2. Bruno,
    obrigado por sua atenção e dedicação ao TDAH!!

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    1. Caro Elcio,
      Penso que devemos escutar mais, a fim de melhor compreendermos as crianças e os jovens. O texto acima é de fato meu protesto contra a violência química banalizada que está acontecendo nestes dias.
      Volte ao blog sempre que quiser!

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