Entre ouvir e escutar o zumbido


Saber ouvir é uma faculdade difícil de se obter; saber escutar, mais ainda. Algumas vezes as pessoas simplesmente não desejam ouvir algo porque aquilo não lhes interessa. Contudo, neste texto não falaremos sobre sujeitos que, por intenção consciente, não querem ouvir, mas sobre indivíduos que não gostam ou se sentem incomodados com o que ouvem. Mais especificamente, falaremos sobre pessoas que não sabem conscientemente sobre o desconforto que lhes causa o conteúdo daquilo que ouvem, e, por não saberem, desenvolvem um sintoma substitutivo e significante daquele material audível não prazeroso. Esse sintoma a que me refiro é conhecido como zumbido.

Pessoas que sofrem de zumbido (sintoma também chamado de tinnitus ou acúfeno) necessitam de uma abordagem de saúde que transite entre critérios subjetivos e objetivos, sendo estes últimos direcionados à pesquisa de causas físicas que têm potencial para ocasionar o referido problema. O tratamento de um zumbido consistiria, assim, em explorar a subjetividade desse sintoma e, quando oportuno, corrigir o fator físico que pode estar desencadeando o desconforto auditivo.

Determinar a etiologia seria o primeiro aspecto a se levar em conta quando se investiga uma pessoa com zumbido. Contudo, estima-se que em 40% dos pacientes não seja possível encontrar uma causa primária para tal queixa. Esse percentual, obviamente, está em conformidade com a visão de especialidade médica focal (neste caso, da otorrinolaringologia), que costuma desconsiderar a subjetividade e procurar sempre por uma causa orgânica como etiologia primária dos sintomas e das doenças.


É verdade que existem causas objetivas de zumbido que devem ser descartadas, porquanto os seguintes diagnósticos diferenciais são considerados: perda auditiva súbita, perda auditiva induzida por ruído, doença de Meniére, otosclerose, cerumen impactado, traumatismo cervical, esclerose múltipla, neurinoma do acústico, otite média, meningite, sífilis, uso de determinados medicamentos (salicilatos, aminoglicosídeos, anti-inflamatórios, diuréticos, quimioterápicos) e disfunção temporo-mandibular.

Embora a lista acima seja um tanto quanto longa, uma vez de posse dela, boa anamnese e exame físico cuidadoso habitualmente são suficientes para que um médico determine a causa objetiva do sintoma, se essa causa existir. Quando não forem suficientes a história e o exame clínico, estes por certo apontarão um norte para determinar os exames complementares eventualmente necessários. Claro, uma vez confirmada causa física, tratamento direcionado a ela deve ser realizado.

Voltando ao sintoma, ressalta-se que não existe nenhuma droga aprovada pela Food and Drug Adminsitration (FDA) ou pela European Medicines Agency (EMEA) para tratamento do zumbido per se, pois os estudos que mencionam algum benefício farmacológico sobre tal sintoma não são reproduzíveis e não sustentam seus achados em longo prazo.

Outras modalidades mencionadas para a supressão do referido sintoma são estimulação elétrica por meio de pulsos, próteses auditivas e diversos tratamentos tidos como alternativos (acupuntura, yoga, aromaterapia, homeopatia, fitoterapia, osteopatia, shiatsu, enfim, o céu é o limite). Assim como os medicamentos alopáticos, todas as demais modalidades de tratamento sintomático para zumbido têm evidência questionável no tocante a seus supostos benefícios.

Tenho observado que a maioria dos pacientes com zumbido procura o consultório médico querendo uma solução simplista para seu problema, preferencialmente uma alternativa em que eles possam manter uma atitude passiva (sim, ainda que pareça estranho, escolher a passividade, de certo modo, não deixa de ser uma ação). Assim, passivos, os indivíduos persistem com a “zoada na cabeça”, para usar a expressão de uma senhora que conheço de meus atendimentos.

Há diversas teorias sobre a fisiopatologia do zumbido ancoradas na visão médica cartesiana. Em uma delas, afirma-se que tal sintoma originar-se-ia devido a um desequilíbrio GABA-glutamato (neurotransmissores) no sistema auditivo aferente, que se manifestaria finalmente por um reordenamento neuronal do córtex auditivo primário, provocado pela toxicidade excitatória do glutamato e pela neuroplasticidade do sistema nervoso central, originando-se assim uma “epilepsia auditiva” (termo que, em linhas gerais, parece-me ter muito a ver com aquele escolhido pela senhora que mencionei).

De certo modo, entretanto, todas as teorias da medicina ortodoxa terminam por esbarrar nas limitações da ciência que se propõe ser apenas objetiva, e cujo ponto de partida costuma ser o acaso. Este tipo de cientificismo não admite ser a consciência (como regra a porção inconsciente dela), algo invisível e não objetivável, a origem de tudo aquilo que se pode mensurar, palpar, ver, enfim, tornar objetivo.

Já mencionei que a abordagem subjetiva também precisa ser valorizada, notadamente nos casos de zumbido. Os próprios otorrinolaringologistas admitem a dificuldade em objetivar o referido sintoma e tomam-no como um problema de difícil solução. Não por acaso, demonstrou-se que o zumbido frequentemente está associado a ansiedade e depressão.

A fim de trabalhar a subjetividade intrínseca ao problema desse sintoma, precisamos compreender que a capacidade de ouvir é a expressão corporal da obediência e da humildade. Quem não está ouvindo bem, por um motivo qualquer, em alguma instância de seu inconsciente não deseja obedecer. Orelhas saudáveis mostram nossa capacidade de escuta, não apenas escutar a palavra, mas também escutar o silêncio de onde a palavra se origina e para onde ela volta. Um problema auditivo, como o zumbido, denota, pois, uma dificuldade para realizar o ato de escutar.


Cabe aqui apontar uma diferença aparentemente sutil entre os verbos “ouvir” e “escutar”, mas que de fato existe. Enquanto o primeiro verbo denota uma ação mecânica que torna possível nosso sentido de audição, o segundo, embora dependa da ação mencionada, pressupõe uma atenção maior àquilo que é dito pelo outro, atrelando acolhimento, empatia e compreensão às palavras, sempre repletas de significado.

Não será a primeira vez, nem a última, que mencionarei a importância do método psicanalítico como uma excelente ferramenta para acessar a subjetividade que deve ser integrada à investigação de um sintoma ou uma doença. E, especialmente no tema em pauta, em que aprender a escutar é prerrogativa para a cura, a psicanálise tem notável valor.

Percebemos, pois, que a abordagem multiprofissional, particularmente envolvendo médico e psicólogo, é fundamental no manejo de pessoas com zumbido que almejam melhor saúde; para não mais ouvi-lo, é preciso escuta-lo e dar sentido a ele. A abordagem citada, que não se resume a um tipo de olhar exclusivamente objetivo, também é essencial em qualquer outra condição que se pretenda tratar sob a perspectiva da integralidade.


Comentários

  1. Evidências e Referências:
    1. Peña A. Bases fisiopatológicas del tratamento del tinnitus neurosensorial: Rol de sistema auditivo eferente. Rev. Otorrinolaringol. Cir. Cabeza Cuello. 2008; 68(1):49-58. Disponível em URL: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-48162008000100008 (acesso em 21 ago. 2016).
    2. da Rosa MRD, de Almeida AAF, Pimenta F, Silva CG, Lima MAR, Diniz MFFM. Zumbido e ansiedade: uma revisão da literatura. Rev. CEFAC. 2012; 14(4):742-754. Disponível em URL: http://www.scielo.br/pdf/rcefac/v14n4/73-11.pdf (acesso em 21 ago. 2016).
    3. Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. São Paulo: Cultrix; 1983 (17. ed. 2012).
    4. Leloup J-Y. O corpo e seus símbolos: Uma antropologia essencial. 23. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; 2015.
    5. Nasio J-D. Psicossomática: As formações do objeto a. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2012.
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    (acesso em 22 set. 2016)

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