Sobre delírios, alucinações e psicoses

O sujeito chegou ao consultório médico e trouxe uma demanda inusitada e um discurso de conteúdo estranho. Ele falava sobre pessoas que o vigiavam noite e dia, sem descanso. Essas pessoas seriam seus próprios vizinhos e estariam, entre outras ameaças, planejando mata-lo para roubar seu estimado cachorro, ainda que o animal fosse apenas um simpático vira-latas. Apesar da referida estima pelo cão, o sujeito afirmava mantê-lo amarrado todo o tempo, temendo que ele fosse levado pelos ladrões. Tudo isso foi tema da consulta porque o sujeito achava que o médico, de alguma forma, poderia ajuda-lo a solucionar o problema com os vizinhos.

Um familiar do sujeito, que acompanhava a consulta, negou o relato sobre vizinhos à espreita; disse que essas coisas eram invenções da cabeça do sujeito. Este, entretanto, aparentava bastante lucidez, tranquilidade e humor normal enquanto conversa com o médico, não esboçando nenhum estigma que pudesse levantar suspeita, a priori, de uma doença de cunho esquizofrênico, maníaco ou depressivo, ou seja, de transtornos psiquiátricos que podem cursar com sintomas delirantes ou alucinatórios.

Para que esta leitura seja clara também aos que não são profissionais de saúde, comecemos com algumas definições importantes. Do ponto de vista da psiquiatria convencional, chamam-se sintomas psicóticos os delírios e/ou alucinações que podem gerar prejuízos significativos à vida social, ao cotidiano e à autonomia do indivíduo que os apresenta. Delírios são alterações do juízo da realidade e correspondem a uma falsa crença, baseada em uma dedução incorreta sobre a realidade externa, firmemente sustentada, ou seja, convicta por parte do indivíduo, a despeito do que quase todos acreditam e de provas e evidências contrárias. Alucinações envolvem alterações da sensoperceção, portanto estão relacionadas aos cinco sentidos; há a percepção de algo como real pelo indivíduo, mas não existe o respectivo estímulo sensorial.

Enquanto realizava um atendimento em domicílio, acordado após aquela primeira consulta do sujeito, o médico, examinando a moradia e os arredores, tentando ver as pessoas sobre as quais falava e apontava o sujeito, e não enxergando absolutamente nada condizente ao relato dele, deduziu que seu paciente estava apresentando sintomas psicóticos, tanto delirantes quanto alucinatórios.

Uma vez identificados sintomas psicóticos em alguém, o próximo passo é tentar definir suas causas. Primeiramente, recomenda-se excluir condições médicas gerais (doenças neurológicas, metabólicas, reumatológicas e endocrinológicas – por exemplo, hipertireoidismo) e uso de substâncias psicotrópicas ilícitas (tais como Cannabis, cogumelos mágicos e LSD) que potencialmente provoquem tais sintomas.

A seguir, considerando que sejam descartadas as condições anteriormente mencionadas, deve-se pesquisar a presença de transtornos de humor (depressivo ou afetivo bipolar). Há que se levar em conta os critérios diagnósticos corretos para identificar esses transtornos e não diagnostica-los levianamente. Se ficar caracterizada a existência de psicose durante episódio de transtorno de humor, o diagnóstico mais provável será transtorno de humor com características psicóticas. Isto é bastante plausível se, ao ser analisada  a evolução da doença, confirmar-se que os sintomas de humor surgiram previamente e, com seu agravamento, apareceram os sintomas psicóticos.

Finalizando a investigação diagnóstica pelos critérios médicos convencionais, não havendo evidência de transtorno de humor, provavelmente estar-se-á diante de um indivíduo com transtorno psicótico, a saber, esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno esquizofreniforme, transtorno delirante ou psicose breve.

Em quaisquer dos casos acima citados, recomenda-se avaliar o risco de suicídio e alucinações de comando suicida. Os familiares devem manter vigilância contínua acerca dessas possibilidades e eliminar meios potencialmente letais no domicílio para que o paciente cometa o autoextermínio. Tentativa ou risco de suicídio é indicação de hospitalização, mas é importante lembrar que isso diz respeito a um plano concreto para executar o ato, o que difere de ideação suicida, ou seja, o suicídio ainda no campo das ideias. Fica evidente como pode fazer diferença para a condução do caso a existência de um bom suporte familiar para o paciente.

Se parássemos por aqui, com uma visão reducionista da saúde mental, o tratamento de pacientes psicóticos provavelmente ficaria restrito à mera prescrição de medicamentos antipsicóticos. Estes fármacos, especialmente os mais modernos de sua classe, certamente são importantes no cuidado dessas pessoas, mas estão longe de ser o ponto crucial do tratamento.


Mas, imaginando que o amigo leitor espere algo a mais deste texto e tenha acompanhado com facilidade o raciocínio até este ponto, estamos prestes a extrapolar os limites da psiquiatria cartesiana. Vejamos como a seguir.

O profissional de saúde que utiliza o diagnóstico como ferramenta de trabalho deveria considerar a limitação dessa ferramenta, haja vista ela não ser capaz de oferecer uma análise desprovida de erro ou de vieses. No entanto, o que se vê atualmente, da parte de muitos desses profissionais na abordagem dos problemas de saúde mental, é uma devoção irrestrita aos manuais e aos compêndios psicopatológicos, em detrimento à perspectiva subjetiva de cada indivíduo.

É fato que os diagnósticos são úteis até certo ponto, mas deixar de compreender a pessoa em sua singular história traz muitas implicações ao tratamento, tornando ainda mais distante a cura. Importa muitíssimo conhecer o ser humano que se esconde atrás dos sintomas, propiciar ao sujeito entrar no cenário terapêutico. Isto se faz através da escuta ativa dos problemas da pessoa (lembrando que escuta ativa não é aconselhamento, tampouco juízo de valor!).


Nesse sentido, alguns questionamentos poderiam ser feitos ao sujeito nosso personagem, de forma a estimular sua narrativa: Por que você acha que essas pessoas escolheram você para vigiar? Você tem alguma explicação sobre o fato de seus familiares não enxergarem essas pessoas? Você gostaria que sua família fizesse algo a respeito delas? O que você acha que um profissional de saúde poderia fazer para lhe ajudar com essa situação, considerando que você veio falar sobre ela no consultório?

A psicanálise demanda atenção tanto aos fatores conscientes quanto inconscientes para a realização de um diagnóstico, pois exige do terapeuta a capacidade de distinguir aquilo que pertence a ele mesmo (juízo de valor) e o que se refere ao outro. Destaca-se, portanto, a importância essencial do diálogo significativo, fruto da relação existente de transferência e contratransferência entre analista e analisando.

Para entender o conceito de psicose à luz da psicanálise, será preciso lembrar que o psiquismo é composto por três estruturas: id, ego e superego. O id é um reservatório de energia instintiva, repleto de desejos e pulsões não influenciadas pelas demandas do mundo exterior, ou seja, da realidade; diz-se que o id é movido pelo princípio do prazer e que dele derivam as demais estruturas psicológicas. O Ego é direcionado para a realidade e busca satisfazer as necessidades através de meios socialmente aceitos, atuando de acordo com o princípio da realidade; logo, o ego opõe-se ao id em relação ao princípio do prazer. O superego, por fim, é a consciência ou a censura; ele é uma estrutura da personalidade formada pelas leis e padrões da cultura vigente na qual o sujeito está inserido.

Entendidas as definições acima, as psicoses implicam um processo de deterioração das funções do ego, a tal ponto que haja, em graus variáveis, algum sério prejuízo do contato do sujeito com a realidade. A psicose, portanto, tem como núcleo estruturante a prevalência do princípio do prazer sobre a realidade, prejudicando as funções do ego (distanciamento do ego). Dessa forma, o contato do indivíduo psicótico com seu mundo externo caracteriza-se como um ambiente restrito ao seu próprio universo psíquico, ou seja, um mundo apenas seu. Nessa personalidade psicótica, a natureza da angústia é de fragmentação. Não há organização do superego, pois o que domina é a organização do id, que direciona o sujeito a um conflito com a realidade. Logo, a relação com o outro é fusional.


Segundo Zimerman, os objetivos básicos da análise em pacientes psicóticos são:

- promover a constância objetal interna e a constância da percepção da realidade externa e a integração das dissociações;

- desenvolver a capacidade do domínio sobre os estímulos resultantes das frustrações, tendo em vista que estes pacientes se desorganizam frente a situações novas, não estruturantes;

- a transição do imaginário para o simbólico;

- e a formação do sentido de identidade.


A tendência dos psicanalistas contemporâneos que tratam pacientes psicóticos pelo método analítico é combinar a este método diversas formas de psicoterapia, grupos de autoajuda, atendimento do grupo familiar, instituições que proporcionem uma "ambientoterapia", medicações psicotrópicas, entre outras formas de abordagem.

Embora não seja apropriado afirmar que um médico, sem formação para tal, esteja executando psicoterapia ou outras modalidades de terapia psicológica, creio ser bastante útil, em especial aos médicos de família, agregar e utilizar recursos da psicologia em sua prática, haja vista a presença marcante dos determinantes sociais das doenças no contexto primário de atenção à saúde, determinantes estes que demandam compreensão. Não se fazem necessários recursos muito rebuscados para tal finalidade, haja vista a disponibilidade de recursos psicológicos que requerem intervenção mínima do profissional, por exemplo, a escuta atenta das narrativas do paciente.

A vivência da psicose impõe ao sujeito um trabalho constante de reconstrução de sentidos, de tal modo que processos interpessoais possam conformar novos e possíveis cenários de existência. Ao estudar os sonhos, Freud aprofundou a discussão acerca das narrativas e sua relação com a temporalidade da experiência humana. Ele propôs que o conteúdo repetido em diferentes vivências do sujeito, ao longo de tempos remotos, é condensado e sonhado a partir da atemporalidade do inconsciente. Com base nessa teoria freudiana, acredita-se que o trabalho narrativo contribua para pesquisar a experiência psicótica, na medida em que permite o compartilhamento social de tal experiência, sem destituí-la de suas singularidades.

Assim, valendo-se de suas narrativas, os pacientes psicóticos podem adentrar para o espaço político (em um sentido social), recheando-o com suas vivências que historicamente foram relegadas a um plano de exclusão. As narrativas apresentam potencial para exprimir experiências com a intensidade e a peculiaridade que lhe são próprias, embora o profissional de saúde não deva perder de vista as contradições e hesitações que marcam a organização do vivido pelo paciente psicótico. O desejável é que o profissional de saúde não se sobreponha à narrativa, mas tampouco se anule sob o pretexto de uma neutralidade positivista.

Concluindo esta breve exposição psicanalítica sobre a psicose, registre-se que a transformação da experiência emocional intolerável em algo tolerável só é possível pelo pensamento; assim, é de suma importância que o analista, lidando com um paciente psicótico, localize em qual estágio da evolução neurobiológica está detida a capacidade de pensar do sujeito. O objetivo do método analítico restringe-se a um trabalho de restituição com os pacientes psicóticos, pois se pode dizer que eles nunca chegarão à cura; a atividade interpretativa do método visa a um desenvolvimento cognitivo que auxilie a parte não psicótica do paciente a observar, a pensar e a não fugir das verdades.

Finalmente, uma reflexão. A neurociência tem comprovado que tanto os aspectos explícitos da vida quanto seus aspectos implícitos indiretos conspiram para criar nossas experiências mentais; sendo assim, nosso cérebro, utilizando ou não os cinco sentidos, não está gravando uma visão, um ruído ou qualquer outra experiência sensorial. O cérebro CRIA a experiência. Sob este prisma, muitas de nossas suposições mais básicas sobre nós mesmos, e sobre a sociedade, são falsas. Portanto, quem estaria sofrendo com alucinações e delírios: as pessoas “normais” ou as psicóticas?


Comentários

  1. Referências:

    1. Leite RCF, Franco RS. Psicoses no contexto da Medicina de Família e Comunidade. In: Gusso G, Lopes JMC (organizadores). Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 1ª ed. 2012. p. 1985-1989.

    2. Brasil. Biblioteca Virtual em Saúde. Atenção Primária à Saúde. Segunda Opinião Formativa. ID: sof-1052. 2009. Disponível em URL: http://aps.bvs.br/aps/quando-indicar-internacao-para-pacientes-deprimidos/ (acesso em 26 mar. 2016).

    3. Lins SLB. Psicose – diagnóstico, conceito e reforma psiquiátrica. Mental. 2007; 8:39-52. Disponível em URL: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/mental/v5n8/v5n8a03.pdf (acesso em 26 mar. 2016).

    4. Zimerman DE. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed; 1999. 478 p.

    5. Helman CG. Cultura, Saúde e Doença. Porto Alegre: Artmed; 5. ed. 2009. 431 p.

    6. McWhinney IR, Freeman T. Manual de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed; 3. ed. 2010. 471 p.

    7. Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR, McWilliam CL, Freeman TR. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed; 2. ed. 2010. 376 p.

    8. Miranda L, Campos RTO. Narrativa de pacientes psicóticos: notas para um suporte metodológico de pesquisa. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2010; 13(3):441-456. Disponível em URL: http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v13n3/a05v13n3.pdf (acesso em 26 mar. 2016).

    9. Mlodinow L. Subliminar: Como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar; 1. ed. 2014. 347 p.

    ---------------------

    As imagens do filme Psicose foram obtidas respectivamente e livremente em:

    http://s2.glbimg.com/bW1hjzOXH0_PdUSkTl2XeJOOimI=/i.glbimg.com/og/ig/infoglobo1/f/original/2015/09/26/blog_psicose.jpg E http://saladadecinema.com.br/wp-content/uploads/2015/12/4017.jpg (acesso em 19 abr. 2016).

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  2. Muito interessante!

    Será que planejavam mata-lo para roubar o seu cachorro?
    Quem sabe pode ser verdade dele, mas por um outro motivo.

    O que é real?
    O que é surreal?

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