A senhora Pensadora e a passividade de nossos dias

Semana passada, no final de uma consulta focada na abordagem familiar, a senhora Pensadora (nome fictício), que viera buscar ajuda para tratar um transtorno de ansiedade, fez-me uma pergunta bastante inteligente: “Aonde vamos chegar com isso?”, referindo-se à técnica de abordagem familiar. 

Para muitos, um questionamento desse tipo soe inconveniente, como se a pessoa duvidasse daquilo que o profissional estudou e está oferecendo em resposta à demanda trazida em consulta. Para outros, entretanto, perguntas assim refletem a disposição de alguém que está de fato interessado em um tratamento integral, cuja base são o questionamento e o aprendizado contínuos.

Não tenho intenção de relegar o conhecimento da medicina convencional a um plano sem importância, até porque dele me utilizo diuturnamente durante meus atendimentos. A senhora Pensadora, inclusive, está sendo medicada, temporariamente, com um inibidor seletivo de recaptação da serotonina. Contudo, não é difícil enxergar que há bastantes limitações em abordagens que entendem as doenças como entidades isoladas e desviam-se da compreensão do ser humano que está doente.

O reducionismo das doenças tornou-se algo tão comum que a própria sociedade acolheu-o como o jeito certo de cuidar da saúde. Incontáveis pessoas vão ao médico esperando apenas ouvir passivamente o que ele tem a dizer sobre o processo fisiopatológico. Na sequência, anseiam submeter-se a exames complementares e, definido o diagnóstico, receber a prescrição de medicamentos que, se seguida à risca, em tese lhes trará a cura.

Mas a doença não se resume ao diagnóstico e a cura não é um processo passivo. Se a pessoa doente não abandona a condição de “paciente”, ela apenas prolonga os sofrimentos relacionados às doenças. Paciente, portanto, é uma denominação bastante inapropriada para alguém que precisa tornar-se ativo sobre a própria saúde, transformar-se a partir do entendimento do significado da doença em sua vida.

Na contramão da passividade, a abordagem familiar é um recurso terapêutico que visa explorar os contextos sociais dos indivíduos, especialmente as relações no ambiente familiar. Ela possibilita aumentar o nível de consciência do indivíduo frente às situações que interferem direta ou indiretamente sobre sua saúde, tendo por base os pressupostos do pensamento sistêmico e dos determinantes sociais das doenças, assuntos já pincelados neste blog em outra oportunidade.

Algumas representações gráficas, como o genograma (exemplificado de modo simplório a seguir), costumam ser utilizadas nas consultas de abordagem familiar. Essas representações são construções conjuntas entre o profissional de saúde, quem as desenha, e a pessoa índice (ou sujeito índice), quem fornece as informações que permitem esquematizar as relações sociais a serem analisadas. Dessa forma, o genograma sempre é um ponto de vista (entre muitos possíveis) sobre determinada situação, nunca se trata de uma verdade absoluta.

O processo de análise do esquema familiar e social começa tão logo se inicia a representação. Sua capacidade como recurso terapêutico será diretamente proporcional à disponibilidade da pessoa índice em falar abertamente sobre as histórias e sentimentos a respeito dos personagens reais ali representados. As narrativas propiciam um ambiente favorável à livre associação de ideias pelo sujeito que vem se tratar. O ambiente terapêutico, por sua vez, será tanto mais favorável ao sujeito quanto maior a habilidade do profissional de saúde em auxilia-lo a interpretar as associações e a conduzir o processo de forma mais isenta e sensível possível.

Assim, partindo de uma concepção integral e sistêmica do tratamento dos problemas de saúde, a abordagem familiar é utilizada não apenas para entender o contexto dos sintomas e das doenças, mas também como um dos pilares do próprio tratamento. Conforme o processo de tomada de consciência possibilita ao sujeito índice novas ideias e novos significados sobre sua vida, comportamentos mais saudáveis ele poderá adquirir, os quais afetarão de modo benéfico não apenas a si, mas também a seu entorno.

Não por acaso, existem evidências científicas favoráveis à abordagem familiar nos cuidados de saúde. A fim de corroborar essa informação, cito uma metanálise de 52 ensaios clínicos randomizados (totalizando 8.896 pacientes), comparando intervenções-padrão e intervenções envolvendo a família, em doenças cardiovasculares, câncer e artrite. Demonstrou-se que o envolvimento da família resulta em resultados significativamente melhores. O mesmo estudo verificou, ainda, que intervenções envolvendo mudanças nas relações familiares tenderam a ser mais eficazes do que intervenções meramente psicoeducativas. Os efeitos descritos foram moderados, porém amplos, significativos e estáveis durante longo período de tempo.

Entre diversas situações que podem se beneficiar da abordagem familiar, cabe destaque para casos de doenças crônicas em que os sintomas estruturam as relações familiares, pessoas que frequentemente se apresentam com doença aguda, sintomas sem explicação física (“pacientes psicossomáticos”), presença de violência intrafamiliar e transtornos psiquiátricos.

Voltando à pergunta da senhora Pensadora, respondi acreditar que o caminho que escolheremos percorrer será muito mais relevante para seu tratamento do que sabermos exatamente aonde chegaremos trilhando essa estrada. Até porque, se existem verdades, uma é esta: sobre o amanhã não se sabe.


Há que se considerar também que, embora incerto, as chances de o amanhã ser melhor do que hoje aumentam significativamente quando a vida é pensada. Isto é viver, o resto é ser levado pelas correntes (ou ser amarrado por elas). Finalizo este texto tomando emprestadas as sábias palavras de C. G. Jung: Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chama-lo de destino.

Comentários

  1. As seguintes referências foram consultadas durante a elaboração do texto:

    - Hartmann M, Bäzner E, Wild B, Eisler I, Herzog W. Effects of interventions involving the family in the treatment of adult patients with chronic physical diseases: a meta-analysis. Psychother Psychosom. 2010;79(3):136-48. Disponível em URL: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20185970 (acesso em 07 mar. 2016).

    - Fernandes CLC, Falceto OG, Wartchow ES. Abordagem Familiar. In: Duncan BB et al. (organizadores). Medicina ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. p. 86-98.

    - McDaniel SH, Hepworth J, Dohert WJ. Terapia familiar médica: um enfoque biopsicossocial às famílias com problemas de saúde. Porto Alegre: Artmed; 1994.

    As imagens utilizadas na postagem foram obtidas livremente nos seguintes endereços eletrônicos (acesso em 09 mar. 2016):

    - http://www.ewallpapers.eu/w_show/thinking-about-you-1920-1080-6919.jpg

    - http://2.bp.blogspot.com/-fLl8ndp2-ZU/UCvtnXxmZuI/AAAAAAAAARY/fCbG7yo_4vs/s1600/GENOGRAM+VOORBEELD.jpg

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  2. Excelente! Não há necessidade em tratar todo sintoma com remédios. Mais felizes seríamos, e menos doentes, se todos os profissionais da saúde agissem assim.

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    1. Oi, Lígia!
      Penso que qualquer sintoma, antes de ser silenciado, precisa ser compreendido, pois os sintomas sempre têm algo a nos dizer sobre nós mesmos.
      Os medicamentos têm o seu papel em aliviar certos desconfortos, mas eles não são capazes de nos proporcionar a tão necessária interpretação da doença. Somente assim conseguimos abrir caminho para a cura.
      Seja sempre muito bem vinda neste blog, obrigado pela leitura!
      Abraços

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