Enurese, o xixi repleto de significado

Um colega de profissão questionou-me sobre um caso de enurese noturna, o famoso “xixi na cama”, em um menino de 7 anos de idade. A dúvida era sobre a abordagem indicada para essa criança, pois até o momento ela teria recebido apenas tratamento psicológico, sem resolução de seu problema. Na apresentação do caso, o colega mencionou a história familiar do menino como “sem importância para o caso”. Eis aqui, provavelmente, a principal dificuldade do médico em ajudar seu paciente: não considerar o contexto.

A história familiar tem importância sim, e muita, para o caso dessa criança. Somente a partir deste entendimento, poderemos pensar na possibilidade de cura. Conhecer o funcionamento da família da qual a criança faz parte, bem como outros aspectos de seu contexto social, é parte fundamental da investigação e do manejo dos casos de enurese, pois as causas psíquicas são fatores preponderantes à ocorrência desse problema. Isto é particularmente verdadeiro quando já foram descartadas, através de uma abordagem inicial pautada em anamnese, exame físico e exames complementares relativamente simples, algumas condições orgânicas que também cursam com perda urinária.

Infecções do trato urinário, parasitoses intestinais, uropatias obstrutivas, anomalias congênitas de genitália, epilepsia, espinha bífida, diabetes, fecaloma, bexiga neurogênica e retardo mental são as principais doenças que podem ter a perda urinária no rol de sintomas. Afastadas essas possibilidades, menos comuns no diagnóstico de crianças com essa queixa, vale ressaltar que a maioria dos casos de enurese se resolve “espontaneamente” na puberdade. Veremos que aspas são aqui devidas porque, no fim das contas, a resolução da enurese na puberdade nada tem de espontânea, tem sim uma íntima relação com a descoberta consciente da sexualidade, que ocorrerá invariavelmente na adolescência.

O diagnóstico de enurese é definido pela ocorrência repetida de perda urinária na cama ou na roupa, de modo involuntário ou intencional, tanto à noite quanto de dia, em crianças após os 5 anos de idade, quando causas físicas para o sintoma foram excluídas. A prevalência de indivíduos enuréticos varia de 10 a 15% na população pediátrica, acometendo mais comumente os meninos. A maior prevalência nestes também não é obra do acaso, como logo constataremos.

Executar uma abordagem sob a perspectiva da medicina tradicional, visando apenas resolver o sintoma da criança enurética, significa utilizar intervenções comportamentais simples, como o retreinamento e o aconselhamento motivacional. Dispositivos de alarme são considerados a primeira linha de tratamento nesse tipo de abordagem quando as intervenções comportamentais falharam. Ainda nessa linha tradicional, a farmacoterapia estaria indicada quando nenhuma das medidas anteriores obteve êxito; os medicamentos que demonstraram alguma eficácia sobre a enurese são a imipramina, droga de primeira escolha e de uso restrito a crianças com idade maior que 6 anos, e a desmopressina.

Entretanto, o que constantemente se manifesta no corpo como sintoma nada mais é que a expressão visível de um processo invisível de desequilíbrio que ocorre no inconsciente. A medicina tradicional habitualmente equipara o sintoma à doença e, assim, não consegue separar a forma do conteúdo, desprezando a interpretação do sintoma. Isto faz com que somente seja possível “tratar” órgãos e partes do corpo; esquece-se de tratar o mais importante: o ser humano que está doente. Caso estejamos interessados, muito mais que suprimir o sintoma, em promover uma abordagem integral ao problema da criança em pauta, é preciso entender o significado da enurese noturna à luz de outras perspectivas, agregando-as ao tratamento.

A psicanálise entende que, embora sejam desejos inconscientes e incestuosos, todos os meninos têm um desejo centrífugo em seu pênis e todas as meninas têm um desejo centrípeto na vulva: o desejo da penetração do pênis. A partir desta compreensão, em uma das possíveis interpretações para a enurese noturna, ela estaria ligada à não valorização da sexuação, ocorrendo justamente em crianças oprimidas por proibições superegoicas durante o dia, não lhes sendo permitido nem mesmo tocar o próprio sexo. À noite, quando a sexuação barrada o dia inteiro volta a ganhar sua importância, essas crianças urinam na cama. Como as proibições opressoras mencionadas geralmente partem dos pais, não é difícil perceber que são os progenitores, não os filhos, quem costumam precisar de tratamento psicológico nesses casos. A escuta atenta da fala dos pais, em grande parte das vezes, revelará a origem do problema, potencializando mudanças de atitude em prol das crianças.

Para exemplificar essa questão psicanalítica, especialmente àqueles que não são estudiosos da área, vejamos o que acontece com os meninos. Em torno dos 28 ou 30 meses, eles perdem repentinamente a capacidade de urinar em ereção, devido à conclusão da formação do verumontano, órgão fisiológico que impede a micção enquanto o pênis está enrijecido. Nessa fase, as crianças se perguntam, afinal, “de que serve um pipi duro como um pedaço de pau se não se pode fazer mais nada com ele?”.

É muito importante que conheçamos essas alterações e tranquilizemos as crianças, explicando que, quando elas forem grandes, poderão novamente lançar um jato em ereção, mas de outra natureza. Também é importante explicar a cada menino que ele não é um caso único nesse sentido, que seu pai foi como ele e que todos os homens um dia foram assim. O que comumente vemos, contudo, são mães que se incomodam ao verem o pênis de seu filho, de tão pouca idade, em ereção. Algumas chegam a querer que a criança continue urinando com o pênis ereto, algo fisiologicamente impossível após certa idade! Elas não conseguem admitir que a ereção não existe para isso...

A necessidade de urinar está muitas vezes relacionada a determinadas situações em que uma pessoa encontra-se psicologicamente pressionada, fato constatado nas situações em que alguém “molha as calças de tanto medo”. Sob a ótica psicossomática, entende-se que a pressão, inicialmente sentida pela psique, é empurrada para baixo, até a bexiga, onde então é materializada como pressão física. Na criança submetida durante o dia todo a um tipo excessivo de tensão (provinda dos pais, da escola, etc.), de tal forma que não consiga se descontrair ou se defender, ou ainda expressar seus desejos, a enurese noturna soluciona dois problemas de uma só vez: concretiza a descontração como uma reação à pressão vivida e, ao mesmo tempo, oferece a chance de condenar pais prepotentes a um desamparo completo. Através desse sintoma específico, a criança é capaz de se livrar de todos os tipos de pressão que sofreu durante o dia.

Portanto, como forma de prevenção e tratamento da enurese, o profissional de saúde que lida com crianças pode estimular os pais a proverem a elas suficiente autonomia em todas as atividades ligadas às suas necessidades e aos desejos inerentes à infância, desde que estes não entravem diretamente a liberdade de ação do outro. Neste prisma, a criança precisa ser livre para explorar o próprio corpo e entender suas partes sexuais, pois isto é de extrema importância para que ela se torne um adulto sexualmente saudável no futuro. O respeito à autonomia a ao livre jogo dos desejos é representado pelas atividades que a criança é estimulada a fazer sozinha, por exemplo, vestir-se, escolher suas roupas, pentear-se e servir-se na mesa, além de ter um canto pessoal para suas roupas e brinquedos. Sim, a criança é um sujeito, não um objeto de gozo dos pais ou de qualquer outro adulto doente.

Comentários

  1. As seguintes referências foram consultadas para a elaboração desse texto:

    - Dethlefsen T, Dahlke R. A Doença Como Caminho: Uma nova visão de cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. 17a ed. São Paulo: Cultrix; 2012.

    - Dolto, F. Seminário de psicanálise em crianças. 1a ed. São Paulo: wmfmartinsfontes; 2013.

    - Zavaschi MLS, Costa F, Lorenzon SF, Netto MS. Saúde Mental da Criança. In: Duncan BB, et al., organizadores. Medicina ambulatorial: Condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4a ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. p. 193-208.


    A imagem do coelho foi obtida em http://kellicardoso.com/criancas/enurese/ (acesso em 20 ago 2015).

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  2. Prezado Bruno.
    Sem palavras... Fico muito grato e feliz pela oportunidade de aprendizado.
    Você tratou esse "delicado assunto" de maneira científica, descontraída e madura.
    Mais uma vez, incentivo que você faça uma coletânea de suas postagens e a transforme em "manual" para leigos e, por que não, para profissionais.
    William Amaral

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  3. Prezado Major William,
    Obrigado pelo incentivo sempre!
    E se conhecer um editor disposto a tornar realidade a ideia desse livro, me avise, hehehe.

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